Com uma taxa estimada de 87,9 homicídios por cem mil habitantes em 2017, a cidade de Fortaleza (CE) lidera a lista das capitais mais violentas do Brasil de acordo com a última edição do Atlas da Violência. Como em números anteriores da pesquisa, das vítimas de todo o país, a grande maioria (75,5%) é de pessoas negras – índice que cresceu 33,1% em dez anos, evidenciando a manutenção do processo histórico que torna a desigualdade racial nos indicadores de violência letal cada vez mais profunda.

É sobre essa realidade que se debruça Gente de Lá, espetáculo solo de dança contemporânea que, de forma simbólica e sensível, denuncia a perseguição e a matança estrutural da população negra e periférica no território nacional. Criado na capital cearense pelo artista Wellington Gadelha, que também apresenta a peça, a composição mescla movimentos cênicos e elementos visuais partindo da investigação realizada por seu autor do que ele chama de “corpo roleta-russa”, um corpo inserido num jogo de sorte ou azar que a qualquer momento pode engrossar as estatísticas.

“[O conceito] surge como resposta ao que vivia e vivo. [...] Percebo que entre um corre e outro, uma ida a determinado lugar ou não, fico em situação de jogo o tempo todo. Posso ser alvo!”, enfatiza. Movimentando-se em meio a sacos plásticos pretos, cordas, camisetas vermelhas, sirenes, caixas de som – e criando narrativas com cada elemento –, Gadelha encena no palco o que para ele tem sido a principal dança do que chama de um corpo preto-favelado-urbano. “Danço a perda, danço a morte, danço o afrontar, danço a vida. Gente de Lá fala de vida!”, esclarece.

Parte da apresentação de Gente de Lá (imagem: Renato Mangolin)

Morador de Autran Nunes, bairro localizado na zona oeste de Fortaleza, o artista leva para cada apresentação o barro do chão onde mora, terra que, como ele conta, foi difícil de obter pela mercantilização do material que quando criança via em dunas. “Depois que consegui não abro mão. É uma forma de dançar com meu bairro”.

Apoiado pelo Rumos Itaú Cultural 2017-2018, o espetáculo teve sua estreia em março deste ano no bairro Bom Jardim, na capital cearense, e já foi apresentado em associações comunitárias e espaços de arte e cultura dos bairros Mondubim, Pirambu, Barra do Ceará e Jangurussu, todos de Fortaleza, e também em São Paulo (SP). De forma independente do instituto, passou ainda pelo Rio de Janeiro (RJ), por Zurique, na Suíça, e por Santiago e Valparaíso, no Chile.

“O trabalho foi se transformando, assim como meu corpo.  E, sim, meu corpo se modificou na medida que, agora, ele sabe mais o que quer, para onde vai e aonde quer chegar. Não é à toa que cruzamos as favelas, o pacífico, fomos à Europa para poder dizer de onde a gente é e para que e por que estamos nesse fronte. [...] Gente de Lá não trabalha com formação de plateia, mas com fortalecimento de povo”, enfatiza Gadelha, que chama a atenção para a potencialidade do trabalho em estimular a articulação de artistas de diferentes territórios que vêm e tratam de realidades semelhantes.

Disparar contra

Montado com a participação de Thereza Rocha, Gente de Lá foi inicialmente desenvolvido em 2017 no Laboratório de Criação em Dança da Escola Porto Iracema das Artes como parte do projeto Afrontamento. A proposta de ação cênica foi desenvolvida em parceria com Priscilla Sousa e Alexandre Fernandes e contou com tutoria de Luiz de Abreu e colaboração de Leonardo França.

Além de resultar na proposta cênica do espetáculo, o projeto desdobrou-se na Plataforma Afrontamento, que serve como um espaço de cuidado e ainda oferece consultoria técnica a outros artistas vindos de periferia que desejam concorrer com seus projetos em editais de incentivo à cultura. Mas o artista ressalta que a ideia é ir além: “Nós não queremos só aprovação em editais, queremos construir eles”, declara.

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