Durante nove meses, uma sala na Rua Major Sertório, no bairro da República, na região central de São Paulo, serviu de residência artística para 14 jovens da periferia da cidade, com idades entre 18 e 24 anos. Lá, eles foram encorajados, entre outras atividades, a refletir sobre o papel político e social do cinema, a transformar suas ideias em narrativas e, ao fim do projeto, a produzir dois curtas-metragens: um de ficção e outro documental. A residência artística Mulheres Negras: Projetos de Mundo é coordenada pela cineasta e produtora cultural Dayane Rodrigues Barbosa, de 37 anos. “Mulheres, negros e LGBTs ainda não têm o protagonismo que merecem no cinema nacional. Há coisas positivas acontecendo, não dá para ignorar, mas ainda está distante do ideal”, avalia essa paulista de Santos. “Um dos objetivos do nosso projeto é a busca do protagonismo em todas as frentes da produção audiovisual: elenco, direção, roteiro, produção-executiva... Só assim teremos um cinema que nos representa de verdade”.
A inspiração para o projeto surgiu em setembro de 2016, durante o lançamento do documentário homônimo. Dirigido por Dayane Rodrigues, a Day, em parceria com Lucas Ogasawara, Mulheres Negras: Projetos de Mundo dá voz a nove mulheres negras brasileiras, como a filósofa Djamila Ribeiro, a rapper Preta Rara e a socióloga Aldenir Dida Dias, que, ao longo de 25 minutos, falam da dor de viver em um país racista e misógino. À época do lançamento, Day foi convidada a exibir seu documentário em inúmeras cidades, como Campinas, Salvador e Brasília. Segundo a cineasta, sua obra ajudou o público a pensar o que é racismo no Brasil. “A população queria entender a situação da mulher negra no país. Como tenho formação em Filosofia, entendi que essa demanda poderia ser acelerada pela formação em audiovisual. Foi quando tive a ideia de fazer da residência artística um desdobramento do documentário”.
Day Rodrigues garante que Mulheres Negras: Projetos de Mundo superou toda e qualquer expectativa que ela poderia ter. O documentário nasceu como o TCC do Curso de Especialização em Gestão Cultural, do Centro de Pesquisa e Formação do SESC. Em julho de 2017, na 21ª edição do Cine PE – Festival Audiovisual, do Recife, ganhou nas categorias direção e júri popular. Logo, começaram a surgir as primeiras propostas de trabalho. Como a direção do videoclipe da música Papo Reto, da dupla Dani Nega e Craca. Não bastasse, o episódio Racismo e Resistência, da série Quebrando o Tabu, do GNT, dirigido pela cineasta, foi indicado ao prêmio internacional Mipcom Diversify TV Excellence Awards 2019, em Cannes, na França. “Sou mulher, negra e filha de nordestinos. Consegui furar essa bolha e ocupar um lugar de protagonismo”, orgulha-se a cineasta que teve no documentarista Eduardo Coutinho (1933-2014) uma de suas mais fortes referências na sétima arte. “Era muito fã dele. Sempre que lançava algo, procurava assisti. Senti muito sua perda”, lamenta.
Para selecionar os “residentes” da residência artística MN:PM, Day Rodrigues estabeleceu quatro critérios: raça, idade, gênero e territorialidade. Cada um tinha que preencher uma ficha de inscrição e gravar um vídeo, com a história que gostaria de contar no projeto. Em apenas três dias, foram mais de 100 inscritos. Desses, 50 foram pré-selecionados para a próxima etapa: rodas de conversa para explicar aos candidatos o que era o projeto e saber deles porque gostariam de participar. Tão difícil quanto selecionar os “residentes”, admite a produtora cultural, foi escalar os 20 educadores. Entre outros nomes, convidou Joyce Prado, cineasta e especialista em Roteiro Audiovisual pelo Centro Universitário SENAC; Gilberto Sobrinho, professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Universidade de Campinas (Unicamp), e Jandilson Vieira, formado em Educação em Artes pela Universidade São Judas Tadeu (USJT).
Ao todo, o projeto pode ser dividido em três etapas: Primeiro olhar, Travessia e O que é um filme?. A primeira delas visa estimular a escrita do participante. Na segunda, o corpo docente – formado, em sua maioria, por profissionais do audiovisual – oferece subsídios para reflexão. “É o momento de descolonizar nosso olhar”, descreve Day. A terceira fase é aquela em que residentes e educadores debatem o audiovisual no Brasil e ponderam sobre o lugar que gostariam de ocupar nesta indústria.
Findas as três etapas iniciais, é chegada a hora de partir da teoria para a prática. "O projeto foi finalizado com dois sets de filmagem, com a presença das e dos jovens residentes e profissionais do audiovisual, estes últimos mediando a parte prática a partir de suas experiências no mercado, disponibilizando assim o conhecimento de produção para a nova geração de realizadores negros da cidade de São Paulo", avisa a cineasta.