por Diana Junkes

No prefácio que escreve para Signantia Quasi Coelum, Signância Quase Céu, de Haroldo de Campos, em 1979, João Alexandre Barbosa diz que o poeta é “o cosmonauta do significante”. Ali expõe a inseparabilidade das vertentes do trabalho haroldiano: o criativo, o transcriativo e o crítico, todos marcadamente poéticos, regidos pela busca da materialidade da palavra, por meio da qual, em grandes navegações galácticas, Haroldo ultrapassou o signo. Pode-se dizer que sua obra assume duas perspectivas: uma impulsionada pelo rigor inventivo e outra pela significativa abertura ao diálogo, ao trânsito cultural, poético, acadêmico.

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Além das inúmeras viagens que realizou pelo mundo, como professor e poeta, Haroldo de Campos costumava enviar seus livros a amigos, intelectuais, artistas e também a acervos de museus e bibliotecas universitárias em todos os cinco continentes, sobretudo Europa e Américas. Um rápido exame em seu acervo epistolar revela, de imediato, troca de cartas mantida com universidades no Havaí e no Japão além das mais conhecidas, como Yale e Harvard. Notam-se correspondências muito pessoais e/ou pautadas pelo convívio intelectual*: de Octavio Paz a Max Bense, de Julio Cortázar a Roman Jakobson, de Emir Rodriguez Monegal a Murilo Mendes, de Paulo Leminski e Roberto Piva a Cabrera Infante e Severo Sarduy, que fazem lembrar o que disse o filósofo Jacques Derrida em depoimento de 1996 sobre o poeta: “Sempre desejamos estar no caminho de Haroldo, pois há mais de um nele, desejo de caminhar a seu lado, isto é, a seus lados, tão utópico cada vez que ao lado há caminho”.

Desse modo, a vocação para a alteridade levou a distintas partes do planeta a produção haroldiana e, ao mesmo tempo, trouxe um grande respeito pelo seu trabalho dentro e fora do país. Sem dúvida alguma, no que tange ao exterior, um dos nomes mais emblemáticos é o de David Jackson, da Universidade de Yale, que foi amigo pessoal de Haroldo de Campos e talvez o primeiro a ter notícias, por carta, da conclusão do fundamental ensaio “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”. David Jackson pesquisa, divulga e orienta trabalhos sobre a obra do autor sistematicamente, ao longo de muitas décadas. Na América do Norte, destaco ainda as contribuições de Charles Perrone, da Universidade da Flórida, e de Odile Cisneros, da Universidade de Alberta/Canadá, que tem se dedicado à tradução de Galáxias (1984) para o inglês. Além desses, é importante mencionar as leituras empreendidas pela reconhecida crítica Marjorie Perloff.

No âmbito da América Latina, entre outros, sobressai o nome de Rodolfo Mata, da Universidade Autônoma do México, pesquisador e interlocutor de Haroldo. Além dele, vale destacar o trabalho de Amalia Sato, da Argentina, que além do diálogo estabelecido com o poeta, por longo tempo, no âmbito da revista Tokonoma, acaba de traduzir para o espanhol o livro Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem (1977). Por fim, não se pode falar dos estudos latino-americanos voltados a Haroldo de Campos sem mencionar Gonzalo Aguilar, da Universidade de Buenos Aires, que tem importante papel na divulgação de sua obra não apenas na América Latina, mas na Europa também; sobre ele e sobre a poesia concreta, de modo mais amplo, Aguilar tem dedicado, há muitos anos, variados estudos.  

Por fim, sublinho o alcance do pensamento de Haroldo de Campos na Itália, impulsionado pelo trabalho de Andrea Lombardi, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que, além de trabalhos anteriores, em 2016, com o apoio da Fundação Biblioteca Nacional, traduziu em parceira com Gaetano D’Itria vários ensaios para o italiano. O livro foi publicado pela Oedipus, com o título de Traduzione, Transcreazione Saggi. O leitor do volume é presenteado com uma nota introdutória de Umberto Eco, que relembra seu primeiro encontro com Haroldo de Campos, em Roma, em 1962. Tais diálogos, que perduram até hoje sob a forma de pesquisas e traduções e podem ser captados na correspondência com esses e muitos outros estudiosos e tradutores, explicam, em parte, a boa recepção e difusão de todas as vertentes do pensamento haroldiano dentro e fora do Brasil.

Até aqui mencionei alguns dos estudiosos e poetas que conheceram e mantiveram contato com Haroldo de Campos, mas se deve sublinhar que, no período recente, há presença significativa de jovens pesquisadores da obra haroldiana no exterior que dão continuidade e fôlego à sua presença. Entre eles, destaco:  Adam Shellhorse, da Universidade da Pensilvânia, que atualmente prepara livro sobre a sua obra e incursões (pós)utópicas; Jasmin Wrobel, da Universidade Livre de Berlim, que escreveu uma brilhante tese de doutoramento sobre Galáxias, explorando as implicações políticas e estéticas do neobarroco, e tem vasta produção de ensaios sobre o tema; Gabriel Borowski, da Universidade Jaguelônica de Cracóvia, que ministra aulas sobre poesia concreta e também desenvolve estudos críticos sobre Haroldo de Campos; e Max Hidalgo, da Universidade de Barcelona, que tem atuação marcante no contexto europeu e talvez seja hoje um dos maiores conhecedores da dinâmica do acervo de Campos na Casa das Rosas. Esses pesquisadores circulam por inúmeros eventos acadêmicos, por espaços museológicos e culturais, impulsionando cada vez mais o interesse por essa obra múltipla e de tamanha envergadura, sem perder de vista a importância de sua interlocução com pesquisadores brasileiros, o interesse permanente pela babélica biblioteca haroldiana e os vínculos com o Centro de Referências Haroldo de Campos, na já mencionada Casa das Rosas, que visitam frequentemente durante viagens ao Brasil.

Iniciei este texto falando do cosmonauta do significante, e creio que pelo exposto se atesta que não só do significante, mas cosmonauta em amplo espectro, eis o que foi Haroldo, fazendo jus às metáforas cosmogônicas associadas a seu trabalho e sua personalidade curiosa, inquieta, fáustica. Há, porém, algo mais nesse poeta que merece destaque. Seu grande cosmopolitismo, sua urbanidade, a ligação não só com sua cidade natal, São Paulo, mas com tantas outras espalhadas pelo globo. E nada a meu ver comprova mais esse cosmopolitismo do que algo que eu mesma vivi, em experiência recente, flanando pelas ruas de Paris, quando me deparei com Galáxias na flânerie da livraria La Compagnie, em Saint German.  

Desfez-se o spleen que por ventura povoasse minhas inquietações de poeta, crítica e cidadã brasileira em tempos tão absurdamente sombrios. Diante de meus olhos, a bela tradução de Inês Oseki Dépré – amiga, interlocutora e tradutora de Haroldo de Campos por tantos anos, responsável pela divulgação de sua obra na Europa e em países de língua francesa – estava bem ali, iluminando os campos e espaços tão vastos que o poeta e pesquisador ainda e sempre continuará a percorrer, expandindo-se constelarmente, rompendo fronteiras, inventando transfronteiras.

* Dos nomes citados, Octavio Paz, Max Bense, Julio Cortázar, Murilo Mendes, Paulo Leminski, Roberto Piva, Guillermo Cabrera Infante e Severo Sarduy são escritores; Roman Jakobson é linguista; Emir Rodriguez Monegal é crítico literário.

 

Diana Junkes é professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Dedica-se ao estudo da poesia brasileira contemporânea, particularmente da obra de Haroldo de Campos. É autora de As Razões da Máquina Antropofágica: Poesia e Sincronia em Haroldo de Campos (Ed. Unesp), Clowns Cronópios Silêncios (Ed. Urutau), Sol Quando Agora (Ed. Urutau) e Asas Plumas Macramê (Ed. Laranja Original).

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