por Maria Inês de Almeida

Com a presença dos mestres, participei de um banquete de pensamentos ancestrais, tradições, experiências, saberes e sabores. Anapuaka Tupinambá introduziu na sala Ana Mumbuka, vinda do quilombo do Jalapão, famoso pelo capim dourado, onde o “povo da circularidade tece a vida com as mãos”. O ensino das costureiras do capim dourado é que os elementos da natureza tecem teias, numa perspectivava “contracolonialista”. Encontros – ou “confluências”, como diria Nego Bispo – podem ser presenciais, “artesanais”, ou virtuais, “sintéticos”, assim como os objetos da vida cotidiana. E os mestres tecem também pela internet. “Estamos pensando como cupim ou como abelha?”; “Vamos continuar a dançar numa festa mortal?” – as questões da mestra nos fazem refletir sobre a importância de escolhas para a sociedade desejada. Devemos aprender que “não somos superiores a nada” e a respeitar todas as formas de vida: “Analfabetos são os que não reconhecem a capacidade de leitura dos outros”.

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Nego Bispo contou como aprendeu o quanto são importantes o saber e a transmissão. Chamou a atenção para a “mercantilização do saber”, um dos grandes problemas modernos. Mais do que patrimonializar o saber, deve-se pensar nele como um rio que vai confluir. A “linguagem cosmológica”, dos ecossistemas e elementos da natureza é a primeira grande confluência. Depois, a das diferentes sociedades, sustentada pela sabedoria de cada uma. Na confluência, tradução e transmissão, assim Ana Mumbuka resume a questão: “A gente não perde conhecimento, a gente reedita”. Como Nego Bispo reitera, na transmissão, os saberes tradicionais não precisam entrar para a “linguagem acadêmica”, pois são “orgânicos”. A contracolonização, na Universidade, teria a ver com um método de ensino que privilegia a trajetória e não a teoria. O que os mestres tradicionais querem espalhar são “sementes de vida”, não conceitos. A confluência seria entre vivos, e não apenas entre humanos, e seria diferente da influência. No entanto, as formas de vida urbanas trazem o significante “apartamento”, que tem a ver com “apartar”.

“Vem ver comigo a cor do mundo mudar” – lindo mote para pensar o audiovisual. Os títulos, inspirados na poesia de Thiago de Melo, foram dados por Daniel Munduruku e deixaram os participantes com predisposição poética. A poesia cumpre mais uma vez seu papel de desalojar o pensamento, tirar do lugar-comum. Takirawã Pataxó contou que começou a filmar em 2018, na aldeia onde é professora há 12 anos e pesquisa o protagonismo da mulher em sua sociedade. Quer, com seu filme, A Força da Mulher Pataxó, mostrar o ponto de vista feminino. Riane Nascimento, da Eparrêi Filmes, com o filme Maria, sobre uma transexual, quer descolonizar os pensamentos, “plantar uma sementinha”, democratizando no Recôncavo Baiano os meios de produção do cinema, essa “ferramenta de poder”. Gilmar Galache Terena, da Ascure, fala da influência de Ivan Molina (realizador Quechua) e da escola de Cuba em sua formação: “Nosso jeito não é como o do Vincent Carelli” (que seguiria Jean Rouch), mas, ao mesmo tempo, reconhece a forte influência de Paulo Freire, cuja pedagogia está na raiz do método do Vídeo nas Aldeias… A Circularidade dos Saberes. Observei que, apesar dos grandes avanços conceituais da produção audiovisual nas comunidades tradicionais, alguns condenam o cinema “ocidental” feito por “brancos”. Pergunto: Será que o cinema realmente não contribuiu nada para a resistência e as lutas contracolonizatórias?

Telma Pacheco Tremembé iniciou a mesa da Cura com seu belo texto: “Eu começo assim: nós somos destinados a nascer…” E seguiu falando dos protetores e guardiões, o céu e a terra, das vozes que ouvia desde criança e do ensino de sua avó: “A cura vem do coração e sai por nossas mãos”; “Eu acredito que a cura está em nós”. Depois, Lucely Pio, de Cedro de Mineiros, uma das autoras de Farmacopéia Popular do Cerrado, contou que o Centro de Plantas Medicinais do seu quilombo é uma herança do sábio Chico Moleque, escravo que comprou sua liberdade e sua terra. Nesse Centro, já catalogaram 450 espécies nativas do Cerrado e criaram 90 fórmulas de remédios, desde 1989. “A gente cuida muito das mãos”. Trabalham ali com geoterapia, aromaterapia (espírito da planta), florais (essência da flor). Realizam capacitação da comunidade para três tipos de farmácia: itinerante, caseira e básica. “Estamos falando de três conhecimentos ao mesmo tempo”, disse João Paulo Tucano, fundador do Centro de Medicina Indígena. Alertou-nos para o fato de que não se deve considerar “simplesmente o princípio químico ativo” dos remédios indígenas, pois se trata de uma lógica diferente. Na lógica dos povos do Rio Negro, o corpo é terra, ar, água, fogo, os elementos do planeta. “Como explicar o fato de, entre 8.000 pessoas Tucano, apenas 3 morrerem de Covid19?”. O grande desafio do momento seria “trazer os conceitos do Rio Negro para a Antropologia”.

“Educação como prática da liberdade” foi o tema tratado por Almir Suruí, criador da Universidade do Saber do Povo Paiter Suruí, falando da educação tradicional, mas reconhecendo a importância das novas tecnologias da informação. “Qual futuro nós queremos?”, perguntou, apontando o grande desafio da escola. A interculturalidade, como a da criação da marca Café Suruí em parceria com a empresa 3 Corações, seria uma resposta efetiva para a pergunta. Miriam Aprígio, da Tabatinga, defendeu o enfrentamento das ameaças aos direitos quilombolas através do trabalho dos educadores negros nas escolas do entorno, focando em currículos interculturais. “Como dialogar com a universidade?” foi o desafio proposto por Arlindo Baré.

O escritor Cristino Wapichana apresentou Irineu Nje’a, que mostrou sua literatura atrelada às poéticas orais na Casa de reza da aldeia (cantos, danças, rezas... enfim, rituais de cura). Ytanajé Cardoso Munduruku em seguida contou histórias de resistência de sua avó Ester, de mais de cem anos. Sua escrita será garantia dessa resistência (“Estudar e escrever para resistir”). Ele se formou documentando a língua, os discursos e memórias Munduruku, processo que culminou no romance de ficção Canumã, que “vai ajudar na casa da língua”. Seu desejo é escrever o “imaginário dos Munduruku na Amazônia”: “Tudo o que escrevo tem base na oralidade”.

E o contingente de publicações de autoria coletiva indígena dos últimos trinta anos? E a experiência literária nas terras indígenas, com as próprias línguas? Literatura indígena não seria apenas a que se quer ficção… A educação básica nacional, o mercado editorial, a crítica literária e o senso comum talvez sejam os responsáveis por esse entendimento redutor. Apesar desse parâmetro da literatura ocidental, defendo que a página de um livro indígena é uma constelação de signos oriundos sobretudo dos mitos. Trabalho coletivo e oralidade estão ali. Política, territorial e comunitária: a literatura produzida nas aldeias não caberia nas prateleiras e catálogos das bibliotecas ou livrarias. Nem ficção, nem “literatura infantil”. Talvez apenas projetos gráficos.

Telma Taurepang iniciou a conversa sobre a “resistência guardiã”, cantando em homenagem aos antigos: “O canto diz que precisamos nos pintar com o barro pra resistir”. Sandra Andrade se referiu aos índios como parceiros: “Nossos cantos, nossas danças são nossa resiliência, de onde tiramos nossa força”, disse, cantando um trechinho do Reinado de São Benedito. Kirexu Yxapyry contou como entendeu a história de usurpação dos povos originários desde a carta de Pelo Vaz de Caminha. O “marco temporal” agora seria mais uma excrescência do poder estatal brasileiro contra os povos originários. A esperança é que a mentalidade em geral esteja mudando, com a ameaça de destruição da vida no planeta. O farto banquete de saberes dos povos tradicionais foi fechado com o emblemático canto R&B e trap de Kaê Guajajara.

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Maria Inês Almeida foi professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) de 1994 a 2016, desenvolveu pesquisas, como bolsista do CNPq, com a experiência literária indígena. Liderou o Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterras, criando o Acervo Indígena da UFMG, coordenando o curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas da UFMG e realizando a edição de 130 obras de autoria indígena e o projeto MIRA! Artes Visuais Contemporâneas dos Povos Indígenas. Atualmente, atua como professora visitante sênior no Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre (Ufac), onde coordena o Laboratório da Interculturalidade. Maria Inês é também autora dos livros 12 Trabalhos de H (1995), 22 Arcanos (2005), Desocidentada: Experiência Literária em Terra Indígena (2009) e coautora de Na Captura da Voz: as Edições da Literatura Oral no Brasil (2004).

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