por Fabia Fuzeti e Gabriela Torrezani
Foram 48 dias de confinamento quase total. O governo da Espanha anunciou a quarentena na noite de 14 de março, para início já no dia seguinte. Foram 1.152 horas vendo os dias, as incertezas e os medos passarem pela única janela do nosso apartamento. É uma janela grande, felizmente. Dá para uma rua de pedestres que, até então, costumava ser bem agitada.
De um dia para o outro, a Espanha parou. Da janela, víamos pouco ou nenhum movimento. Havia dias em que a melancolia parecia tão estática quanto as árvores que temos à nossa frente. Mas aí um vento batia, balançava os galhos secos de frio e a melancolia ficava um pouco menos compacta.
Quando o governo espanhol estabeleceu a quarentena, já era tarde demais para nós duas. Havíamos contraído o vírus em uma reunião de trabalho, na qual tivemos contato muito próximo com uma pessoa infectada. Então, nosso isolamento começou com febre, calafrios, dores no corpo e medo. Medo da doença, do futuro incerto, da crise financeira anunciada.
Vivíamos os últimos dias do inverno, quando ainda fazia frio e as árvores estavam totalmente peladas, espetando o céu. Vimos da janela as folhas nascerem e o verde tomar conta do nosso quarteirão. Os pássaros voltaram, trazendo seu canto. Depois de alguns dias, numa saída para ir ao supermercado, ficamos surpresas ao ver a Gran Vía, uma das principais avenidas da cidade, completamente vazia. E transformada, vestida com suas novas cores de primavera.
Da nossa janela (claro, de onde mais seria?) podíamos ver a fila dos correios formada na rua em frente ao prédio, algumas pessoas passando com seus carrinhos de compra a caminho do supermercado, o gato do vizinho deitado sobre o ar condicionado tomando sol. Nós, aliás, fazíamos malabarismos quase felinos para alcançar um único raio de sol que entrava no canto do quarto durante escassos 30 minutos.
Para vários brasileiros que moram na Europa, o longo inverno é cruel. Passamos o Natal longe da família, o Ano-Novo é gelado e sem graça, sofremos vendo pelas redes sociais os amigos lavando a alma no Carnaval brasileiro. A chegada da primavera simboliza o fim de muitos meses de frio e galhos secos, a chegada de temperaturas mais altas e atividades ao ar livre. Em 2020, nós vivemos essa passagem dentro do microapartamento, sem percebê-la muito bem – a não ser pela coceira no nariz e nos olhos devida ao pólen, que encontra seu caminho por qualquer brecha.
Vinte e três de abril foi particularmente triste. O dia de São Jorge é muito importante aqui em Barcelona, já que ele é o padroeiro da cidade. A festa é celebrada como um dia dos namorados, e a cidade fica tomada por barraquinhas de livros (sim, 23 de abril também é o Dia Mundial do Livro, então os catalães juntaram as duas coisas em uma festa muito bonita). Neste ano, não teve nada disso, obviamente. Os casais de namorados tiveram que inovar para celebrar de outras formas – em especial os que estavam há quase 40 dias sem se ver pessoalmente, cada um em seu apartamento. O plano é que a celebração de Sant Jordi 2020, como chamam, aconteça em julho.
Os contágios aqui na Espanha diminuíram e as mortes, que chegaram a mais de mil por dia, estão abaixo de 200. Os hospitais já não estão em colapso. O governo iniciou o plano oficial de "desconfinamento gradual". Serão quatro fases progressivas que vão durar, no mínimo, duas semanas cada. Ao final, teoricamente, chegaremos a uma nova normalidade.
No dia 26 de abril, depois de cinco semanas confinadas em tempo integral, as crianças ganharam o direito de brincar por uma hora diariamente, acompanhadas de um adulto. E agora chegou a nossa vez!
Em 2 de maio, 69.120 minutos depois do começo da quarentena, pudemos sair para passeios de uma hora ou para praticar atividade física. Agora, sim, vivenciamos uma Barcelona que exala primavera, com o seu típico céu azul, um calor que permitiu o uso mais que desejado de uma regata... E pólen a dar com pau.
A nossa experiência do primeiro dia de desconfinamento faz jus àquele meme “expectativa versus realidade”. Falamos mil vezes sobre qual seria a primeira coisa que iríamos fazer quando pudéssemos sair. Aonde iríamos, o que comeríamos. Imaginamos cenas de filme, uma cidade quase vazia, um cachorro brincando na grama enquanto raios de sol passavam entre os galhos das árvores. Ou correríamos até a praia, para cair no mar e deixar o sal levar toda as energias ruins do confinamento.
A realidade? As praias estão fechadas, assim como metade dos parques da cidade, inclusive o nosso favorito, que fica aqui perto de casa. Então, fomos para outro menorzinho. Havia muitíssima gente nele, nas ruas, nas ciclovias. Em alguns pontos, estabelecia-se o que, em português, chamamos – maravilhosamente – de muvuca. É claro, nós não éramos as únicas pessoas em Barcelona vendo a vida pela janela há meses e loucas para sair de casa. Todos estavam contando os minutos para que esse momento chegasse.
Vimos bastante gente seguindo as recomendações corretamente e um bom número de pessoas fazendo tudo errado: correndo em bando, conversando em rodinhas, saindo fora do seu horário designado…
Levar uma baforada úmida de um corredor saltitante que passa pingando suor não é nada agradável. E, se para nós essa sensação é apenas de desagrado, não podemos deixar de pensar nas pessoas que ainda não tiveram a doença e, por isso, não têm a tranquilidade de estarem possivelmente imunizadas. Elas devem sentir muito medo ao sair na rua.
Medo de encostar em algo contaminado. Pânico de o corredor-afoito-da-quarentena baforar gotículas virulentas na sua cara. Apreensão de estar fazendo algo errado, de não estar cumprindo as regras e, por isso, levar uma multa ou bronca da polícia. No fundo, não sabemos quantas daquelas pessoas dando seu sonhado passeio estavam pisando em ovos – ou correndo em ovos, no caso dos mais atléticos.
Temos receio também de que a transmissão aumente com essas saídas da população, de que os casos voltem a subir, mais pessoas morram e percamos a pequena liberdade que acabamos de conquistar.
Se tudo caminhar (lentamente, não correndo) de maneira positiva e dentro do esperado, passaremos à fase 1 do desconfinamento no dia 11 de maio (veja no box abaixo como são as fases do desconfinamento). A retomada será gradual e cautelosa. Se a curva de contágios voltar a subir, a qualquer momento, o presidente espanhol Pedro Sánchez pode mudar, adiar ou até revogar o plano de desconfinamento.
Ainda temos uma dura crise financeira pela frente. Ficamos imaginando: será que aquele pequeno restaurante que amamos sobreviverá? Poderemos visitar novamente nossos lugares favoritos? E será que nós, nossos amigos e colegas teremos trabalho e condições de pagar as contas?
Convivemos, ainda, com o medo da evolução da doença no Brasil, onde estão nossas famílias e amigos. Aliás, o medo tem estado de mãos dadas com a melancolia durante toda a quarentena. Os dois sentados ao nosso lado, olhando a vida passar pela janela do quarto. Talvez ainda demore muito para essa sensação constante de medo passar. Não só no nível individual, mas também coletivamente.
Nos jornais e programas de TV daqui, o termo "nova normalidade" está em alta. Por definição, é impossível retomar algo novo, não é? Então, o que estaremos retomando? O que veremos da nossa janela? Qual vai ser o peso e a cor da melancolia nesse novo mundo, nesse novo normal?
Pelo menos já é primavera, hoje caminhamos ao sol, vimos ruas e rostos que não víamos há quase dois meses e nos sentimos um pouco mais livres. E pudemos vir aqui contar algo novo, em tempos em que sair para dar uma voltinha é uma grande vitória.
Desconfinamento na Espanha – Horários de saída
- Das 6h às 10h da manhã: adultos entre 14 e 70 anos
- Das 10h às 12h: maiores de 70 anos
- Das 12h às 19h: crianças até 14 anos
- Das 19h às 20h: maiores de 70 anos
- Das 20h às 23h: adultos entre 14 e 70 anos
Nas cidades com menos de 5 mil habitantes, a divisão de horários não se aplica.
Os passeios podem ser feitos em grupos, desde que todos vivam na mesma casa, em um raio máximo de 1 km. Os exercícios físicos devem obrigatoriamente ser realizados individualmente, mas não há limite de área.
É proibido usar o transporte público ou bicicletas públicas para se deslocar para a realização de exercícios.
As crianças devem sair acompanhadas de um adulto responsável e podem levar patinetes, bicicletas, skates ou bola. Cada adulto pode acompanhar até três crianças. Para todos os grupos, o uso de máscaras é aconselhado, mas não obrigatório.
As fases da desescalada na Espanha
O plano para chegar à nova normalidade é composto de quatro fases. Cada uma delas terá, no mínimo, duas semanas (que é o tempo de incubação do coronavírus SARS-CoV-2), e poderá ser alterada de acordo com os acontecimentos. Se os casos voltam a aumentar, tudo pode mudar.
O plano não será seguido igualmente em toda a Espanha. As etapas em cada região serão seguidas a depender de quatro indicadores: capacidade do sistema de saúde; situação epidemiológica; medidas de proteção coletiva; e dados de mobilidade e socioeconômicos. Se tudo correr como planejado, a Espanha chegará à nova normalidade no final de junho.
- Fase 0 – Preparação
Já estamos na fase 0. Ela estabelece intervalos de horários para que diferentes faixas etárias possam sair na rua com riscos reduzidos.
A partir de 4 de maio, os comércios poderão reabrir para atendimento com hora marcada. Haverá um horário reservado para idosos.
Os restaurantes poderão servir comida para retirar (antes, apenas delivery era possível).
Acontecerá o retorno dos treinamentos individuais no esporte profissional.
- Fase 1 – Inicial
Abertura das áreas externas dos restaurantes e bares, que poderão atender até 30% de sua capacidade.
Abertura dos hotéis, com restrição das áreas comuns e podendo atender até 30% da capacidade.
Espetáculos culturais com menos de 30 pessoas em lugares fechados ou com 30% da capacidade do local, e até 200 pessoas em espaços abertos.
Lugares de culto, museus e espaços culturais voltam a abrir com 30% da capacidade.
Velórios e sepultamentos serão permitidos para grupos pequenos.
- Fase 2 – Intermediária
Os restaurantes e bares poderão abrir a área interna, mas o atendimento só poderá ser feito nas mesas, excluindo os balcões.
Cinemas e teatros poderão funcionar com ⅓ de sua capacidade e assentos reservados.
As apresentações culturais poderão ser realizadas para até 50 pessoas.
As escolas poderão funcionar para aulas de reforço.
Aumento da capacidade dos locais de culto para 50%.
Será liberado o deslocamento para casas de campo ou de praia, desde que estejam dentro da mesma província.
Casamentos pequenos poderão ser celebrados.
Reabertura dos shopping centers com 30% da capacidade.
- Fase 3 – Abertura
Shopping centers e comércio poderão abrir com 50% da capacidade.
Serão diminuídas as restrições de capacidade em restaurantes e bares.
Abertura das praias.
Discotecas e bares noturnos poderão funcionar com ⅓ da capacidade.
Fonte: La Moncloa.
Fabia Fuzeti, 44, é jornalista e fotógrafa. Gabriela Torrezani, 28, é produtora audiovisual e doula. As duas são casadas e vivem em Barcelona. Escrevem o blog de viagens Estrangeira.