Ensaio, moda e crítica: três elementos da obra de Gilda de Mello e Souza
13/12/2019 - 11:18
por Duanne Ribeiro
Em lembrança de seu centenário de nascimento, a filósofa, crítica cultural e professora Gilda de Mello e Souza (1919-2005) recebeu uma homenagem na Fundação Ema Klabin, em São Paulo. Os convidados – alunos seus e pesquisadores que tiveram influência de seu trabalho – abordaram diversas facetas da obra e da personalidade de Gilda. Nesta matéria, com base nas falas de alguns dos participantes – Renato Janine Ribeiro, Sílvio Rosa Filho, Jorge Coli, Priscila Loyde Gomes e Brunno Almeida Maia –, apresentamos três assuntos de destaque na jornada: o ensaio, a moda e a crítica.
Esta apresentação, esta reportagem, também tem um toque de ensaio – inspirados por Gilda, conversamos com as falas da jornada, aventurando certas interpretações do que foi dito, deixando em aberto os resultados e convidando o leitor para completar espaços.
Gilda de Mello e Souza foi professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Fundou a revista desta seção, a Discurso. É autora de O Espírito das Roupas: a Moda no Século Dezenove (1987) – reedição de sua tese de doutorado que ganhou em 2019 nova edição; Exercícios de Leitura (1980); O Tupi e o Alaúde: uma Interpretação de Macunaíma (1979); A Ideia e o Figurado (2005) e A Palavra Afiada (2014). Era, além disso, prima de segundo grau do escritor Mário de Andrade – forte influência em sua trajetória – e esposa e parceira intelectual do crítico literário Antonio Candido.
Prosa artesanal
“Um pé no conceito e um pé na imaginação, na fantasia”, descreve a professora Priscila Loyde Gomes, “o bom ensaio é justamente esse encontro feliz”. Essa qualidade, que ela afirma nos ensaios de Gilda, mostra então que o ensaísmo tem um caráter de ventura – é a união (arriscada?) de campos às vezes muito distanciados.
Sílvio Rosa Filho, filósofo, reelaborando o título de um livro de Gilda, fala de seus textos como exercícios de liberdade. Novamente aqui os ensaios têm essa abertura ao possível. No caso da autora em pauta, além disso, são marcados pela “elegância e combatividade” e pela “musicalidade da argumentação”, ainda segundo Sílvio. Justeza do estilo, postura afirmativa, encanto melódico – em outras palavras, aquilo que Priscila definia e que ele reforça quando diz que a filósofa tinha “disciplina de artista e prosa artesanal”.
Com essa prática, Gilda debatia cinema, literatura, teatro, artes visuais. Havia nisso tudo, disseram os palestrantes, sempre uma reflexão sobre o Brasil – como diz Sílvio, em uma percepção do que é o pensamento brasileiro, dos seus limites e possibilidades ou, como diz Priscila, do país como ideia e como “modo de ser”. Ademais, em Gilda, diz o filósofo, encontramos meios para “renovar nosso sentimento do mundo e da sociedade”.
Caligrafia do gesto
Gilda é pioneira no estudo da moda. Sua tese de doutorado (que se tornaria O Espírito das Roupas), defendida em 1950, antecede em 17 anos uma obra de grande destaque na área, O Sistema da Moda, do semiólogo Roland Barthes. Na autora, existe uma defesa da “moda como arte”, comentou o pesquisador Brunno Almeida Maia. Arte, disse ele, que só “se completa no movimento” – e, claro, no corpo.
“A moda é uma história das formas porque modifica a concepção do nosso corpo”, disse Brunno. Há na moda, ressaltou, uma “caligrafia do gesto”; pela moda, uma “construção da gestualidade”. Ademais, o costureiro, o modista são técnicos que “visam e resolvem problemas”. Movimento, corpo e técnica – para entender a moda, então, temos de vê-la nessa relação entre roupa, caimento, momento da indústria, momento do uso.
Talvez isso possa elucidar outra frase do pesquisador: “A percepção das formas é o que faz a passagem do estético ao social em Gilda”. As formas, constituídas na resolução de problemas e no entendimento do corpo, fazem uma mediação entre as vivências individuais e as épocas.
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Atenção ao que está à frente
O crítico Jorge Coli e o filósofo Renato Janine Ribeiro foram alunos de Gilda. Jorge, para ilustrar o modo de pensar da filósofa, contou uma história. Ele e Renato divergiam a respeito da interpretação de um filme do diretor Charlie Chaplin. Em certo ponto, ela se voltou para o primeiro e disse: “Você tem razão”. Antes que ele pudesse se felicitar, ela se virou para o segundo e falou: “Você tem razão”. Depois, demonstrou como por uma troca de ótica ambas as posições podiam conviver, e iluminavam âmbitos distintos.
“Ela nunca se fechava em um processo demonstrativo”, comentou Jorge, depois usando uma expressão que já vimos em Sílvio Rosa Filho, “ela sempre renovava a leitura”.
A crítica que Gilda exercia, notou Renato, tinha uma “atenção ao que está à frente”, isto é, à obra (convicção, aliás, que lembra a da crítica de arte Aracy Amaral). “Em vez de ir do contexto ao texto, do entorno à obra”, como outras correntes de análise aceitam, ela seguia “da obra ao entorno”. O aprofundamento no trabalho artístico como abertura à sociedade, ao mundo, nos próprios termos da operação criativa que foi realizada.
Por fim, esse pensamento da arte, da filosofia, do Brasil, precisa ser entregue de forma que comunique. Ou, como resume Jorge, retomando outra orientação de Gilda, “se você quiser fazer um trabalho intelectual honesto, escreva com clareza”.