por Cassia Sandoval e Julieta Regazzoni

Em 2018, o Itaú Cultural (IC) realizou a quinta edição do evento Todos os Gêneros: Mostra de Arte e Diversidade, cujo intuito  foi debater a questão da soropositividade na produção artística contemporânea no Brasil e no mundo. Mesmo após 40 anos do surgimento da doença, as pessoas que são soropositivas ainda enfrentam enormes preconceitos pela falta de conhecimento da sociedade sobre o assunto. Em março de deste ano, uma edição especial da Revista Observatório, Convivência Intercultural: Perspectiva Latino-americana, com artigos de Gilberto Vieira e Leandro Colling, trouxe os principais conflitos gerados às questões LGBTTIQ+ para uma convivência intercultural, e apresenta algumas pistas a respeito de um debate que deve estar atrelado a uma discussão mais ampla sobre raça, classe e território.

Em entrevista ao site do IC, Marcelo Morais, diretor do Festival BixaNagô, fala sobre a relação entre soropositividade e periferia e os impactos da pandemia atual para as pessoas soropositivas e para o próprio evento, que trabalha questões como LGBTI+, HIV/aids e racismo.

Graduando em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas, Marcelo concentra seus estudos em cultura de massa, juventude negra e periferias. Trabalhou na implementação do Plano Juventude Viva e foi coordenador-adjunto do Programa Transcidadania da Prefeitura de São Paulo. No ambiente privado, atuou com empresas ligadas à construção de instrumentos de avaliação e estruturação de áreas de responsabilidade social.

Como surge a ideia do festival e qual é o significado de seu nome? Poderia explicar mais o conceito “bixanagô”?

O Festival BixaNagô foi criado por Ezio Rosa e por mim, com a proposta de trazer para o “mundo real” debates que já aconteciam nas redes sociais desde 2014, com uma página de comunicação para debater as temáticas relacionadas à construção de masculinidades de homens negros periféricos e ao HIV/aids entre jovens negras e negros LGBTI+ periféricos.

A partir do incômodo e da percepção da realidade de jovens da periferia, o canal de comunicação, que era coordenado por Ezio, atraiu outras pessoas, que foram se unindo e dando forma ao que hoje é o BixaNagô. 

BixaNagô é uma expressão genérica para denominar todas as pessoas pertencentes à comunidade LGBTI+, negras e negros que estão nas periferias, seja nas periferias geográficas das cidades, seja nas periferias das prioridades públicas, dos debates e das demandas sociais.

Você poderia contar como foi a realização do primeiro festival e o que levaram em consideração na sua construção? Houve alguma articulação com outros atores, como os setores público e privado ou coletivos? 

Em 2018, quando tivemos a notícia de que um dos membros do coletivo BixaNagô havia contraído o vírus do HIV, sentimos a necessidade de comunicar de forma mais verborrágica o que era a vivência de jovens periféricas e periféricos soropositivos e publicizar de outras maneiras os dados de pesquisas e dos boletins epidemiológicos, que, assim como as páginas policiais, mostram a população negra no topo das estatísticas de mortes em decorrência da aids.

Ainda que o Brasil seja referência em estudos e políticas de saúde voltadas para a prevenção e o controle da infecção por HIV, somos também o país onde o racismo e o estigma contra as pessoas negras com HIV agem de forma brutal. O Festival BixaNagô nasce como um grito para ecoar a voz dessas pessoas que foram silenciadas pelo racismo.

Para a primeira edição acontecer foram fundamentais as parcerias que conseguimos estabelecer com a Unaids Brasil, a Budweiser, a Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo e a Coordenação Municipal de Políticas para LGBT, além do Mundo Pensante, espaço que desde o primeiro momento acreditou na proposta e nos acolheu de forma muito carinhosa.

Tivemos três dias de programação, com 23 atividades e mais de 1.500 pessoas circulando pelo espaço. Não conseguimos falar tudo o que queríamos, mas conseguimos falar o necessário, com rodas de conversa e oficinas que pautaram temas estratégicos para potencializar algumas demandas e ecoar em outros espaços.

Como as questões de pessoas vivendo com HIV/aids são afetadas pelo racismo? Como é possível relacionar esse assunto com o atual momento de pandemia?

No último ano, a Unaids Brasil, que financia desde 2008 uma pesquisa que envolve cerca de 2 mil pessoas em todo o país, aplicou pela primeira vez a metodologia do Índice de Estigma em Relação às Pessoas Vivendo com HIV/Aids, constatando que a maioria absoluta das pessoas pesquisadas já havia passado por alguma situação de constrangimento ou preconceito ligada aos estigmas do HIV.

Esse fator é ainda mais gritante se agregarmos HIV e negritude às variáveis, que nos dão uma das fórmulas da exclusão e tornam evidente quem são as pessoas que morrem em decorrência da aids no Brasil. Essas mortes são, em sua maioria, resultantes do racismo estrutural que impera na sociedade e condena pessoas negras à pobreza e a lugares de subalternização. Precisamos considerar que pessoas portadoras de doenças crônicas precisam de tratamentos que abrangem não só a ingestão de medicamentos, mas cuidados relativos a alimentação, prática de exercícios físicos e processos de saúde preventiva. Esses tratamentos que cuidam das pessoas de forma integral chegam precariamente às periferias.

Fico pensando nessa relação com a infecção de Covid-19 e os efeitos que vão ser somados aos estigmas do HIV e do racismo. O Ministério da Saúde divulgou, no dia 10 abril, dados desagregados que mostram que o coronavírus é mais letal entre pessoas negras do que entre pessoas brancas. São índices que revelam mais uma vez quem historicamente tem prioridade para viver.

Ainda sobre o estigma e a racialização, você vê alguma possibilidade de melhora na convivência em sociedade?

A sociedade brasileira está estruturada a partir de teorias eugenistas e racistas e na estigmatização de populações periféricas. Sabemos que essa estrutura só vai ter fim com o acúmulo de debates que as sociedades podem promover sobre o tema. Entendemos nosso papel como um instrumento, um veículo que vai ecoar as vozes de pessoas silenciadas pela falta de investimentos públicos nas periferias, pessoas que estão às margens dos investimentos em saúde, educação, cultura e em tantas outras pautas.

Dar visibilidade a pessoas que foram apagadas e esquecidas é o trabalho dos grupos que dedicam sua ação à luta contra o racismo, a LGBTfobia e a xenofobia. E, para isso, é importante que todas as camadas da população estejam dispostas a dialogar e trocar para a superação dessas mazelas sociais. Como Gilberto Vieira menciona em artigo da Revista Observatório, a convivência cultural plena depende de que todos os estratos da sociedade sejam identificados, reconhecidos e incluídos. Nós acrescentamos que esses processos necessitam vir por meio de caminhos participativos que enxerguem essas pessoas como sujeitos das suas próprias histórias, com possibilidade de construir as suas narrativas e identidades, com poder de escolha sobre seu futuro.

Quais os próximos passos do festival?

Hoje contamos com um grupo de 11 pessoas – entre produção, curadoria, comunicação e captação de recursos – trabalhando para que o BixaNagô aconteça. Estamos, desde o segundo semestre de 2019, intensificando nossas captações com empresas e poder público para a realização da edição 2020, prevista para dezembro. Neste ano, vamos ter como norte da programação debates voltados para a cultura funk, a cultura LGBTI+ e os reflexos da infecção por HIV nas periferias, além da construção de uma série de programações, como os Rolezinhos BixaNagô, que são espaços de convergência cultural com a finalidade de colocar o debate acerca dos estigmas do HIV em espaços públicos.

O Festival BixaNagô existe para lembrar que nossa existência só é possível porque diariamente desobedecemos um sistema que nos condena ao apagamento social. Porque nos mobilizamos para ser sujeitos de nossas histórias, para construir nossas narrativas a partir de nossas vivências. E, para isso, precisamos contar com o apoio de pessoas que estão em lugares estratégicos para articular a existência de espaços como BixaNagô.
 

Cassia Sandoval é produtora formada em Produção Cultural pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) em 2012 e atua no cenário cultural há mais de 10 anos. Trabalhou no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), na Euforia Produções e foi produtora executiva do Festival Sonora SP Soma. Hoje atua com Diego Moraes, Jesuton e, como coordenadora de projetos, com a gravadora Kuarup.

Julieta Regazzoni é produtora executiva e trabalha desde 2004 em projetos culturais. Foi gerente de projetos no Grupo Vegas, participou da produção da Virada Cultural São Paulo, produziu turnês de artistas argentinos no Brasil e integrou a equipe de conteúdos da Campus Party Brasil, entre outros projetos. 

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