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por Silvana Ferreira

Saúde mental são duas palavrinhas muito prezadas e utilizadas hoje em dia. No entanto, não foi sempre assim: esse campo tem uma longa história de estigmatização baseada em uma visão da loucura que fez com que aqueles que padeciam de transtornos mentais fossem excluídos e silenciados. Em razão disso, ao longo do século 20, em especial após a Segunda Guerra Mundial, pôde-se observar em vários países iniciativas que visavam garantir a inclusão social e os direitos dos pacientes portadores de transtornos mentais, movimentos estes chamados de reforma psiquiátrica. No Brasil, a reforma psiquiátrica resultou em uma importante reestruturação da rede de cuidados da saúde mental e na Lei Federal no 10.216/2001, que garante os direitos dos pacientes com transtornos mentais.

Saúde mental é um tema que voltou a ganhar destaque a partir do início do século 21, dando prestígio a um campo do conhecimento antes silencioso e silenciado. E isso se deu especialmente porque, nos últimos 20 anos do século XX, o mundo assistiu a um aumento expressivo na frequência dos transtornos mentais e de suicídios; esses últimos, além de aumentarem em número, apresentaram uma modificação de comportamento epidemiológico – evento tradicionalmente mais frequente na população idosa e de meia-idade, o suicídio passou a ocorrer cada vez mais em faixas etárias mais jovens.

Em 2001, em seu Relatório Mundial da Saúde[1], a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a saúde mental já havia sido negligenciada por tempo demasiado e que as consequências podiam ser mensuradas nos dados epidemiológicos relativos a esse campo. A OMS indicou que a saúde mental deveria ter destaque nos esforços no cuidado à saúde, por ser essencial para o bem-estar geral das pessoas, das sociedades e dos países. O relatório apontou que a carga social e econômica causada pelos transtornos mentais era enorme e crescente, e que a depressão se configurava como a primeira causa de incapacidade e a quarta doença mais prevalente no mundo, sendo previsto que nos 20 anos subsequentes ela subiria para o segundo lugar nesse triste ranking.

O relatório ressaltou as relações da saúde mental com a saúde física e da primeira com as condições sociais e econômicas. Propôs que os países-membros desenvolvessem ações para prevenção, promoção e restauração da saúde mental e que as consolidassem em políticas públicas, pois não haveria saúde na ausência de saúde mental. Apesar disso, apenas resultados modestos foram alcançados nestes 20 anos.

Entre as os gráficos do relatório, o mapa interativo “Parcela da população com transtornos mentais e abuso de substâncias psicoativas" dá a ideia da frequência de transtornos mentais ao redor do mundo. No entanto, devido ao subdiagnóstico, que é mais frequente nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, em razão da escassez de serviços especializados, o mapa dá uma estimativa tanto da parcela da população acometida por transtornos mentais como da presença de serviços de saúde mental.

Nos países em desenvolvimento essa situação é ainda pior. Quando, por exemplo, consideramos as taxas de suicídio como indicador de saúde mental, observamos que, enquanto as taxas mundiais de suicídio diminuíram a partir dos anos 2000, provavelmente em decorrência da ampliação e da instalação de medidas de prevenção, nos de baixa renda ou com significativa desigualdade social, como o Brasil, essas taxas, pelo contrário, subiram.

Gráfico 1 - Taxa de suicídio de 2000 a 2019 (mortes por suicídio/100 mil habitantes/ano)[2] Fonte: Organização Mundial da Saúde (via Banco Mundial)

O exposto está ilustrado no gráfico acima, no qual se observa uma tendência mundial de queda do número de mortes por suicídio ao longo dos primeiros 20 anos do século XXI, ao passo que no Brasil a tendência ainda se mostra ascendente. Enquanto o índice mundial caiu 9,8% entre 2010 e 2016, no Brasil houve um aumento de 7% no mesmo período: em 2010 registravam-se 5,7 suicídios a cada 100 mil habitantes e, em 2016, esse número havia subido para 6,1[3]. Houve, em especial, um aumento no número de suicídios entre homens.

Em relação à frequência e à gravidade dos transtornos mentais, pode-se analisar sua evolução acompanhando sua cota de participação no fardo causado pelos agravos à saúde como um todo. A cota de incapacidade causada pelos transtornos mentais em relação àquela causada por todas as outras doenças aumentou no mundo inteiro, e, nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil, esse aumento foi mais acentuado.

Gráfico 2 - Participação dos transtornos mentais e relacionados ao uso de substâncias psicoativas na carga global de doenças[4] Fonte: Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde, Carga Global de Doenças

O gráfico acima expressa a relação entre os transtornos mentais e abuso de substâncias e a carga global de doenças, e é calculado com base nos anos de vida perdidos ou vividos com incapacidade. Observa-se que desde 1990 os transtornos mentais vêm se tornando causa cada vez mais importante de incapacidade e morte quando comparados aos outros problemas de saúde da população mundial. Esse crescimento é constante no mundo todo e chega a 50% entre 1990 e 2017.

A situação hoje é dramática. Em 2020, a OMS relatou em documento[5] que, pouco antes da pandemia de covid-19, a depressão atingia 264 milhões de pessoas no mundo, com reflexos importantes na economia global, mortalidade e perda de qualidade de vida, em especial na população mais jovem. Ansiedade e depressão foram consideradas responsáveis por um prejuízo de 1 trilhão de dólares ao ano, tanto pela incapacidade laborativa como pela necessidade de investimentos em saúde cada vez maiores. Além do aumento na frequência, o início dos casos de transtornos mentais se tornou mais precoce (por volta dos 14 anos), e isso se relaciona à mortalidade por suicídio, que se configura como a segunda causa de morte para jovens entre 15 e 29 anos, precedida apenas por violência/acidentes.

Mais amplamente, em todas as faixas etárias, encontramos uma expectativa menor de vida para os portadores de transtornos mentais, que vivem de 10 a 20 anos menos que a população em geral. Quando pensamos nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, o supracitado relatório traz a triste realidade: de 76% a 85% das pessoas com transtornos mentais não têm acesso a tratamento, apesar das evidências de que intervenções eficazes podem ser desenvolvidas em contextos com poucos recursos. Os países gastam uma média de apenas 2% de seu orçamento de saúde na saúde mental. Em áreas de conflito e em países subdesenvolvidos, onde o investimento e a organização dos serviços de saúde são ainda mais precários, estima-se que um em cada cinco habitantes vão ter um diagnóstico de transtorno mental ao longo da vida.

Em relação ao estigma e à qualidade de vida, menos da metade dos países-membros da OMS tem políticas públicas de saúde mental em conformidade com as convenções internacionais de direitos humanos e, independentemente da faixa de desenvolvimento econômico do país, a violação desses é uma constante na realidade das pessoas com transtornos mentais. Enquanto no imaginário social são vistos como um risco, os “loucos” são, na realidade, vítimas de uma estrutura social estigmatizante, o que inclui os serviços de saúde. Para finalizar o cenário, há escassez absoluta e relativa de profissionais especializados para o manejo dessas condições, havendo hoje, globalmente, aproximadamente 1 a 1,3 profissional de saúde mental para cada 10 mil pessoas. No Brasil, a proporção é de 0,5 profissional para 10 mil habitantes, situação complicada ainda mais pela concentração destes nas áreas urbanas das regiões mais desenvolvidas do país[6] [7].

Considerando que, desde 2020, com a pandemia, a humanidade experimenta uma situação traumática e os indivíduos vivem situações até então inimagináveis, com quarentenas, internações, escassez de insumos, trabalho remoto e solidão, entre outras, pode-se imaginar que a saúde mental mundial está em um momento de fragilidade.

Obra do artista Bispo do Rosário, chamada Cama Romeu e Julieta. A  trata-se de uma banco em madeira, com dois tecidos cobrindo um azul e beje, e o outro branco por cima. E por cima de tudo á vários retalhos cobrindo tudo de diversas cores.
imagem: Cama Romeu e Julieta/ Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

A OMS define saúde mental como um “estado de bem-estar no qual o indivíduo desenvolve suas habilidades pessoais, consegue lidar com os estresses da vida, trabalha de forma produtiva e encontra-se apto a dar sua contribuição para sua comunidade”[8]. Nesse contexto, a concepção de saúde mental ultrapassa a ideia da ausência de transtornos mentais[9], e o ambiente social, econômico e físico ao qual pertence o indivíduo passa a ser considerado responsável pelos agravos à sua saúde mental e pela eclosão de grande parte dos transtornos mentais comuns, com especial participação da desigualdade social[10]. É aí que se inserem a pandemia e a previsão de deterioração das condições mundiais de saúde mental: como fonte de estresse e sofrimento e, ainda, como fator agravante das desigualdades sociais e econômicas entre as diferentes regiões do mundo. A presença de saúde mental se torna condição necessária não apenas para a saúde como um todo, mas também para a plena expressão das habilidades individuais e coletivas relacionadas ao pensamento, às emoções, à interação social, à capacidade de prover o próprio sustento, garantindo a sobrevivência, e à possibilidade de aproveitar a vida.

É impossível definir uma noção única de “saúde mental”[11], ou seja, a ideia ou sensação de “bem-estar” pode variar de indivíduo para indivíduo e, mais ainda, ser diferente nas diversas culturas, com formas singulares de ver e entender o mundo. Assim como a arte, a saúde mental pode ser considerada única, uma expressão do sujeito em sua cultura, um fenômeno complexo, rico e multideterminado.

Assim como a arte, a saúde mental pode ser considerada única, uma expressão do sujeito em sua cultura, um fenômeno complexo, rico e multideterminado

A promoção, a proteção e a recuperação da saúde mental, por sua vez, além de serem consideradas preocupações fundamentais para o bem-estar dos indivíduos, das comunidades e sociedades, devem passar a incluir estratégias intersetoriais, pois apenas estas contemplam ações nos determinantes sociais dos transtornos mentais e agravos à saúde mental da população por todo o mundo. As ações devem incluir todas as etapas de vida dos indivíduos, desde o nascimento, garantindo cuidadores afetivos, segurança social, acesso a alimentação, educação e arte, entre outros, e precisam ser universais, ou seja, em toda a sociedade, transcendendo a área da saúde. Aspectos comunitários, culturais e psicológicos devem ser levados em conta nos âmbitos local, estrutural, ambiental e político[12].

Falando em arte, cultura e saúde mental e em suas inter-relações: (a) a arte é expressão cultural e favorece a expressão subjetiva daqueles que padecem de transtornos mentais (expressão artística como forma de terapêutica); (b) a conexão interpessoal provocada pela arte pelo reconhecimento comum de signos daquela cultura reforça a sensação de pertencimento dos indivíduos, combatendo o estigma e servindo de instrumento de inclusão social (não há uma “arte dos pacientes psiquiátricos”, a arte é de todos); e (c) a arte é potência atávica de todas as culturas e representa a dimensão da experiência humana que vai além do funcionamento dos nossos corpos e mentes.

Para terminar, se não há saúde sem saúde mental (“no health without mental health”) e não há saúde mental sem uma sociedade mais igualitária, é nesse sentido que os esforços devem se concentrar. Como diziam os Titãs (1987) em verso da letra da música “Comida”[13]: “A gente não quer só comida / A gente quer comida, diversão e arte / A gente não quer só comida / A gente quer saída para qualquer parte”. Saúde mental é um conceito complexo, que inclui as mais diferentes dimensões da experiência humana. A gente quer a garantia dos direitos de todos, equidade e uma sociedade mais justa. A gente quer saúde mental.

>>Acesse aqui a facilitação visual do Estado da Arte da Saúde Mental a partir das reflexões de Silvana Ferreira.

Como citar este artigo

FERREIRA, Silvana. Estado da arte da saúde mental. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/revista-observatorio/estado-arte-saude-mental. Acesso em: .

Silvana Ferreira é médica psiquiatra, mestre em psicanálise, psiquiatria e saúde mental e doutora em saúde coletiva. É professora adjunta do Departamento de Especialidades Médicas/Psiquiatria e professora titular da disciplina de saúde mental da Estácio/Idomed. É membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e da American Psychiatric Association (APA).


[1] WORLD HEALTH ORGANIZATION. The world health report 2001: mental health – new understanding, new hope. Geneva: World Health Organization, 2001. Disponível em: https://www.who.int/whr/2001/en/whr01_en.pdf. Acesso em: 21 fev. 2022.

[2] OUR WORLD IN DATA. “Suicide Rate, 2000 to 2019 (World x Brazil)”. Our World in Data. Disponível em: <https://ourworldindata.org/grapher/suicide-rate?country=BRA~OWID_WRL>. Acesso em: 29/03/2022.

[3] DEL-BEN, C. M. et al. Emergências psiquiátricas: manejo de agitação psicomotora e avaliação de risco suicida. Medicina (Ribeirão Preto), Ribeirão Preto, v. 50, n. supl. 1, p. 98-112, jan.-fev. 2017. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rmrp/article/view/127543/124637. Acesso em: 21 fev. 2022.

[4] OUR WORLD IN DATA. “Mental disorders as a share of total disease burden, 1990 to

2019”. Our World in Data. Disponível em: <https://ourworldindata.org/grapher/mental-and-substance-use-as-share-of-disease?tab=chart&country=BRA~OWID_WRL>. Acesso em: 29/03/2022.

[5] WORLD HEALTH ORGANIZATION. United Nations policy brief: covid-19 and the need for action on mental health. Geneva: World Health Organization, 2020.

[6] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Mental health atlas 2020. Geneva: World Health Organization, 2021. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240036703. Acesso em: 21 fev. 2022.

[7] SCHEFFER, M. et al. Demografia médica no Brasil 2018. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP; Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; Conselho Federal de Medicina, 2018. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240036703. Acesso em: 21 fev. 2022.

[8] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Mental health: strengthening our response. Geneva: World Health Organization, 2018. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/mental-health-strengthening-our-response. Acesso em: 21 fev. 2022.

[9] GAINO, Loraine Vivian et al. O conceito de saúde mental para profissionais de saúde: um estudo transversal e qualitativo. SMAD, Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, Ribeirão Preto, v. 14, n. 2, p. 108-116, 2018. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/smad/article/view/149449/151279. Acesso em: 21 fev. 2022.

[10] WORLD HEALTH ORGANIZATION; CALOUSTE GULBENKIAN FOUNDATION. Social determinants of mental health. Geneva: World Health Organization, 2014. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/112828/9789241506809_eng.pdf?sequence=1. Acesso em: 21 fev. 2022.

[11] GALDERISI, S. et al. Toward a new definition of mental health. World Psychiatry, Naples, v. 14(2), p. 231-233, 2015. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4471980/. Acesso em: 21 fev. 2022.

 

[12] WORLD HEALTH ORGANIZATION; CALOUSTE GULBENKIAN FOUNDATION, op. cit.

[13] COMIDA. Intérprete: Titãs. Rio de Janeiro: BMG-Ariola: 1987.

Veja também