Revista Observatório 32 | Representação e representatividade: a obra de arte de autoria negra em circulação
14/06/2022 - 08:10
por Deri Andrade
Resumo: Protagonista de mostras emblemáticas realizadas em importantes organizações culturais e galerias do Brasil atualmente, a obra de arte de autoria negra tem sido examinada no limiar das fronteiras entre o mercado e as instituições artísticas. Este artigo apresenta estudos de caso citando exposições e dados colhidos por mapeamentos recentes que apontam as lacunas de um sistema ainda desigual, na busca por analisar e compreender os atuais cenários de produção e circulação de artistas negros(as).
Em 2020, um estudo publicado no site Projeto Afro[1] escancarou a disparidade de raça e de gênero na representação de artistas negros, indígenas e brancos pelas galerias de arte do circuito paulistano. O autor foi o pesquisador e também artista Alan Ariê, e a pesquisa, desenvolvida durante o ano de 2019, apontou dados quantitativos e qualitativos sobre artistas de 24 galerias de arte da cidade de São Paulo. Entre as diferenças indicadas, notou-se que, dos 619 nomes levantados, apenas 46 eram pessoas não brancas. Se pensarmos que a capital paulista é uma das que mais concentram espaços de arte no Sudeste, entre museus, institutos, centros culturais independentes e galerias, vemos como esses números são alarmantes.
Entretanto, existem esforços para que ocorram mudanças efetivas nesse cenário. No intervalo dos últimos anos, notamos uma exponencial discussão sobre o racismo e suas conjunturas. Estimulado seja por agentes mobilizadores nas plataformas digitais – impulsionados principalmente pelos debates gerados por assassinatos de pessoas negras –, seja pelo histórico de luta dos movimentos negros ao longo de décadas,[2] o mercado das artes visuais e as instituições têm pensado em pautas que se complementam, uma vez que os temas raciais acabaram se tornando uma necessidade em comum.
Tal efeito é sentido nas agendas de grandes instituições culturais no país. Em artigo publicado na revista O Menelick 2º ato em 2020, o antropólogo e crítico de arte Alexandre Araujo Bispo realizou um importante levantamento sobre a “abundância”, segundo ele, da circulação dos trabalhos de autoria negra nesses espaços. Tomando como ponto de partida a atuação de Emanoel Araujo, artista, curador e diretor-fundador do Museu Afro Brasil, em São Paulo, e seus esforços anteriores, o autor traça um percurso entre os anos de 2016 e 2019, quando se fizeram notar trabalhos e nomes de artistas até então desconhecidos do grande público nas programações dessas instituições. Ao lado de referências como Rosana Paulino, Paulo Nazareth e Flávio Cerqueira, foi possível conhecer a fartura dessa produção contemporânea naquele triênio.
Citemos três mostras realizadas em São Paulo como exemplo. Aberta em 2015 e em cartaz no prédio da Pina Estação até 2016, Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca abarcou um vasto período da produção de artistas negros – ou afrodescendentes, como se preferiu marcar em seu título. Com curadoria do então diretor da instituição, Tadeu Chiarelli, a mostra dividiu em núcleos essa complexa e diversa produção artística, do século XVIII até a contemporaneidade. De acordo com o catálogo, foram apresentadas ao público mais de 106 obras do acervo da Pinacoteca, entre pinturas, gravuras, desenhos, esculturas e instalações. Com o projeto, Chiarelli homenageou Emanoel Araujo, diretor da instituição de 1992 a 2002 e responsável pelo alto ingresso de obras de artistas negros na coleção nesse período.
No mesmo ano de 2016, diante dos acirrados debates gerados pela repercussão da prática de blackface em um espetáculo apresentado no seu teatro, o Itaú Cultural organizou uma série de encontros reunindo artistas e pensadores de diversas áreas no âmbito cultural. Ao longo de meses, músicos, artistas plásticos, atores e escritores, dentre outros, trocaram com o público seus anseios e apresentaram trabalhos que ratificaram, mais uma vez, a importante contribuição negra para as artes e a cultura no país. Como fruto dessas conversas, ocorreu a mostra Diálogos ausentes,[3] com curadoria de Diane Lima, também responsável pela realização dos encontros, e Rosana Paulino.
Outra exposição que merece destaque é Histórias afro-atlânticas, realizada pelo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp) e pelo Instituto Tomie Ohtake em 2018. Com os 130 anos da Abolição da Escravidão no Brasil como pano de fundo, a mostra teve curadoria assinada por Adriano Pedrosa, Ayrson Heráclito, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo. Reconhecida internacionalmente, Histórias afro-atlânticas integrou a série Histórias, na qual o Masp tem ancorada sua programação, tomando o conceito de descolonização como base para criar uma complexa teia de desdobramentos. Foi exposta ao público uma seleção de 450 trabalhos de 214 artistas, datados do século XVI ao XXI, conforme indicado no texto de apresentação. Essa produção artística foi organizada em oito núcleos, com “Mapas e margens”, “Cotidianos”, “Ritos e ritmos”, “Retratos”, “Modernismos afro-atlânticos” e “Rotas e transes: Áfricas, Jamaica e Bahia” no Masp; e “Emancipações” e “Resistências e ativismos” no Instituto Tomie Ohtake. Atualmente, a mostra faz uma itinerância por museus dos Estados Unidos.
Para a pesquisadora e curadora Alecsandra Matias de Oliveira, parte desse movimento pode ser atribuído às ideias que atestam os anos de 2010 como centrais nas discussões do “pluralismo estético”, das “relações entre modelos estéticos e etnográficos” e da “descolonização dos acervos”. Segundo ela, essas mostras “trazem à tona a discussão sobre o etnográfico, sobre a ‘estética do outro’ e sobre os mecanismos de circulação e legitimação que são evocados, quando se trata de uma arte deslocada do eixo eurocêntrico" (OLIVEIRA, 2018). Assim como Alexandre Araujo Bispo, que recorre aos mesmos conceitos para discutir essa produção nos espaços institucionais, Oliveira ratifica a ideia de validação empregada pelo calendário artístico citado anteriormente, uma vez que os dados levantados pela pesquisa que abre este texto são parte integrante de uma cadeia de efeitos que gera e é gerada por esse circuito.
Sobretudo nos últimos dez anos, mostras e eventos liderados por agentes negros ou com a sua participação alcançaram outro lugar de destaque na esfera cultural
Diante do exposto, a produção de autoria negra no Brasil parece ter encontrado um ambiente para a sua aceitação. Sobretudo nos últimos dez anos, mostras e eventos liderados por agentes negros ou com a sua participação alcançaram outro lugar de destaque na esfera cultural. Em seus estudos, o antropólogo e curador Hélio Menezes (2018) constata tal fato ao analisar o conceito de arte afro-brasileira diante dessas transformações. Ele percorre anos de debates acadêmicos sobre o seu uso, examinando a criação de instituições como o Museu Afro-Brasileiro, em Salvador, e o já citado Museu Afro Brasil, em São Paulo, locais de salvaguarda do patrimônio histórico, artístico e cultural do povo negro.
Ao contrário desses museus, dedicados ao tema desde a sua fundação, outras instituições têm sedimentado caminhos na busca pelo preenchimento de lacunas impostas por anos de uma história da arte no Brasil que escamoteou a produção de autores negros. Assim como em relação à exibição e/ou à aquisição de obras de arte de autores negros e não brancos, os museus caminham a passos lentos quando o assunto é representatividade em seu quadro de funcionários e colaboradores nos setores de curadoria, coordenação e direção. Em um mapeamento também publicado na plataforma do Projeto afro, a pesquisadora, educadora e curadora Luciara Ribeiro indaga: “Quem são as curadoras e curadores negras, negros e indígenas brasileiros?” (RIBEIRO, 2020).
Assim como em relação à exibição e/ou à aquisição de obras de arte de autores negros e não brancos, os museus caminham a passos lentos quando o assunto é representatividade em seu quadro de funcionários e colaboradores nos setores de curadoria, coordenação e direção
Em suas análises, ela buscou compreender primeiramente quem são esses curadores “e, posteriormente, como tais atuações colaboram com o campo curatorial nacional” (RIBEIRO, 2020). A pesquisa começou em setembro de 2019 e, até aquela publicação, reunia cerca de 76 nomes de curadores(as) negros(as) e 20 de indígenas, de acordo com a autora. O mapeamento foi integrado à Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria de Exposição, que conta com o Laboratório de Curadoria de Exposições Bisi Silva; a Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG); o Núcleo de Pesquisa do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam); o Laboratório de Arte-Educação, Curadorias e Histórias das Exposições da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab); o caderno Vida & arte do jornal O povo; e a Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).
À época, de acordo com os dados obtidos, “apenas 20% dos curadores indígenas e negres atuavam em alguma instituição, enquanto 80% não têm outra saída que não seja apostar na carreira independente/autônoma” (RIBEIRO, 2020). Assim como no mapeamento sobre a presença em galerias de arte, o estudo citado expôs as feridas de um sistema complexo e paradoxal. Isso porque, ainda que essas instituições abram suas portas para os trabalhos de artistas negros, não fazem o mesmo para profissionais negros capacitados.
À época, de acordo com os dados obtidos, “apenas 20% dos curadores indígenas e negres atuavam em alguma instituição, enquanto 80% não têm outra saída que não seja apostar na carreira independente/autônoma” (RIBEIRO, 2020).
Destaquemos duas instituições, porém, que insistem no oposto. Comandada pela artista, galerista e curadora Igi Lola Ayedun, a Hoa é a primeira galeria de arte do país dirigida por negros e dedicada a destacar artistas negros e indígenas. Sua sede, em São Paulo, e seu espaço em Londres concentram um calendário de apresentações dos artistas representados, com participações em importantes feiras de arte dentro e fora do território nacional, ao mesmo tempo que organizam uma primeira residência artística de mentoria e acompanhamento. Por sua vez, a Diáspora Galeria, dirigida por Alex Tso, apoia-se nos mesmos princípios ao propor que tanto a sua equipe de gestão quanto o seu grupo de artistas e parceiros sejam compostos integralmente de pessoas racializadas. Sua sede ocupa parte da Casa Pretahub, em São Paulo, fundada pela empreendedora Adriana Barbosa, idealizadora do Festival feira preta, que há 18 anos destaca criadores afro-brasileiros.
Segundo o relatório publicado anualmente pelo Artprice,[4] respeitado portal que analisa o mercado de arte global, em 2021, observou-se uma “notável ascensão de artistas não brancos [...] transformando a paisagem dos principais museus, feiras de arte e coleções particulares, assim como todo o mercado de arte” (tradução nossa). Há alguns anos, é evidente o destaque que as artes afro-americana, afro-britânica e do continente africano têm recebido nesse circuito global, o que o portal chama de “Black Renaissance” [Renascimento negro]. Entre os dez artistas contemporâneos nascidos em África com maior volume de vendas em leilões no biênio 2020-2021, Amoako Boafo (Gana, 1984) está na primeira colocação, com um faturamento superior a 1 milhão de dólares. O artista se dedica à pintura e é representado pela Mariane Ibrahim Gallery, que tem sede em Chicago, nos Estados Unidos, e também está presente em Paris.
No cenário brasileiro, o artista Gustavo Nazareno (Três Pontas, MG, 1994) ganhou destaque na edição de 2021 de uma das maiores feiras de arte da América Latina, a SP-arte. Na ocasião, ele foi nomeado ao EFG Latin America Art Award, prêmio de aquisição organizado pela revista ArtNexus e pelo banco EFG International. Nazareno tem se dedicado à pintura e ao desenho, com destaque para a figuração, pesquisando também sobre a mitologia dos orixás e sobre a força do panteão iorubano dessas entidades na diáspora africana. Como ele, outros artistas negros descobrem na prática uma forma de articular as narrativas de suas poéticas. Assim, se a pintura, por um lado, parece ter caído no gosto da especulação do mercado de arte, por outro, é por meio dela que artistas negros(as) que passam a ser seus próprios representantes, rompendo com os lugares nos quais, por décadas, o olhar de artistas brancos os colocou.
como citar este artigo
ANDRADE, Deri. Representação e representatividade: a obra de arte de autoria negra em circulação. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/revista-observatorio/arte-autoria-negra-circula%C3%A7%C3%A3o-mercado-galerias. Acesso em: .
Deri Andrade é alagoano e vive entre São Paulo e Belo Horizonte, onde atua como pesquisador, curador e jornalista. É bacharel em comunicação social, com habilitação em jornalismo, pelo Centro Universitário Tiradentes (Unit); pós-graduado em cultura, educação e relações étnico-raciais pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (Celacc/USP); e mestrando em estética e história da arte pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP. Como resultado de um mapeamento de artistas negros no âmbito nacional, desenvolveu a plataforma Projeto Afro. Tem passagens por instituições culturais como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), a Unibes Cultural e o Instituto Brincante. Atualmente, integra a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e é curador-assistente no instituto Inhotim. Pesquisa a correlação entre conteúdo e forma nas poéticas de artistas negros(as/es).
Referências bibliográficas
ARIÊ, Alan. Negrestudo: mapeamento de artistas representades pelas galerias de arte de São Paulo. Projeto Afro, São Paulo, 2020. Disponível em: https://projetoafro.com/editorial/artigo/negrestudo-mapeamento-artistas-representades-pelas-galerias-de-arte-de-sao-paulo/. Acesso em: 2 fev. 2022.
BISPO, Alexandre Araujo. “Abundância” e vulnerabilidade: fomento, criação e circulação das artes negras entre 2016 e 2019. O Menelick 2º ato, São Paulo, 2020. Disponível em: http://www.omenelick2ato.com/artes-plasticas/abundancia-e-vulnerabilidade-fomento-criacao-e-circulacao-das-artes-negras-entre-2016-e-2019. Acesso em: 16 jan. 2022.
CHIARELLI, Tadeu (org.). Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2016.
ENWEZOR, Okwui; OKEKE-AGULU, Chika. Contemporary African art since 1980. Bolonha: Damiani, 2009.
MENEZES NETO, Hélio Santos. Entre o visível e o oculto: a construção do conceito de arte afro-brasileira. 2018. 234 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. A “onda negra”: arte visual afro-brasileira, legitimação e circulação. Jornal da USP, São Paulo, 5 out. 2018. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/a-onda-negra-arte-visual-afro-brasileira-legitimacao-e-circulacao/. Acesso em: 16 jan. 2022.
RIBEIRO, Luciara. Curadorias em disputa: quem são as curadoras e curadores negras, negros e indígenas brasileiros? Projeto Afro, 2020. Disponível em: https://projetoafro.com/editorial/artigo/curadorias-em-disputa-quem-sao-as-curadoras-negras-negros-e-indigenas-brasileiros/. Acesso em: 2 fev. 2022.
[1] Plataforma de pesquisa, mapeamento e difusão de artistas negros(as/es) idealizada pelo autor deste artigo. Disponível em: www.projetoafro.com. Acesso em: 9 abr. 2022.
[2] É exemplo das conquistas desses movimentos a implementação da Lei nº 10.639, de 2003, que inclui a obrigatoriedade do estudo da história e da cultura afro-brasileira nos ensinos Fundamental e Médio; e da Lei nº 12.711, de 2012, que estabeleceu cotas para vagas em universidades e institutos federais.
[3] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=bOS-5iJaMt4&list=PLaV4cVMp_odyLQQGpOkhVTmdTcFK2J76M. Acesso em: 17 maio 2022.
[4] Disponível em: https://www.artprice.com/artprice-reports/the-contemporary-art-market-report-2021. Acesso em: 18 maio 2022.