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por Walmeri Ribeiro - https://orcid.org/0000-0002-6274-5361

Em 1990, Roy Ascott, ao escrever sua contribuição para o painel Computers and art: issues of content, organizado pela College Art Association de Nova York, nomeia o texto com uma pergunta: “Existe amor no abraço telemático?”. Essa questão, que muito nos instigou na criação em arte telemática, talvez nunca tenha nos atravessado tanto quanto a partir de 2020, quando a vida passou a ser mediada e o que até então era apenas mais uma forma de experimentação artística tornou-se a única possibilidade de criação, conexão e contato.

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Ascott aponta a década de 1980 como o período em que se presenciaram o desenvolvimento e a convergência das tecnologias de computação e de telecomunicações, inserindo-se as mídias eletrônicas – vídeo, som, sensoriamento remoto e sistemas cibernéticos –, assim como a influência dessa possibilidade tecnológica sobre a sociedade e o comportamento individual. Para o autor, esse desenvolvimento parecia “questionar cada vez mais a verdadeira natureza do que é ser humano, ser criativo, pensar e perceber e, sem dúvida, nossa relação com o outro e com o planeta como um todo” (ASCOTT, 2009, p. 305).

No campo das artes, o conceito de presença tornou-se um estímulo de investigação ético-estético-político

Quarenta anos depois, já com um grande avanço tecnológico, sobretudo nas redes de transmissão e armazenamento de dados, as questões apontadas por Ascott tornam-se não apenas emergentes diante da convergência de meios, mas também urgentes, frente à crise sanitária e humanitária que estamos vivendo. 

 Em 2020, com a pandemia ocasionada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), toda a sociedade se viu imersa no desafio de reinventar os modos de ser, estar, viver, conviver e estabelecer laços de afeto e de presença. No campo das artes, sobretudo das artes da cena, o conceito balizador de presença tornou-se, então, um estímulo de investigação ético-estético-político, atravessando não apenas a criação e a curadoria, mas também os modos de fruição.

Da pergunta sobre a existência de amor no abraço telemático passamos para outra: “Como criar campos de afecção, de presença, de pensamento crítico e de amor por meio do suporte telemático?”. A urgência nos lançou, como artistas, a uma busca por novas experimentações e possibilidades para manter vivas as potências do corpo e do encontro nas artes da cena.

Imagem de um corpo agachado desfocado num campo com grama, floresta ao fundo e com um céu avermelhado.
"Escavar o Escuro" (2015), Daniela Paoliello (imagem: Daniela Paoliello)

Arte telemática; arte e telemática; arte criada com/para o suporte telemático

Telemática é um termo utilizado para designar redes de comunicação mediadas por tecnologia computacional, ou seja, uma tecnologia que propõe a interação entre seres humanos (“sistemas naturais”) e máquinas (sistemas artificiais de inteligência e percepção). Compreendendo a transmissão e o armazenamento de dados, as possibilidades geradas pela telemática a partir da ruptura com o distanciamento geográfico físico nos dão amplo acesso a diferentes camadas culturais, geográficas, sociais e mesmo individuais.

A partir dessas tecnologias, desde a década de 1980, vários artistas se dedicaram a experimentações no campo da arte telemática e da arte mediada por sistema telemático. Segundo Mario Costa, “pareceu-se ser possível entender que a dimensão estética do futuro, no sentido próprio de ‘sensorialidade do porvir’, ter-se-ia substancialmente configurado a partir das redes de neotecnologias comunicacionais...” (COSTA, 1997, p. 312) – o que o autor chamou de “estética das redes” em 1983. Um dos aspectos favoráveis dessa “estética” seria a expansão ou a extensão do corpo humano a partir da combinação entre dispositivos robóticos e telemática.[1]

Roy Ascott apontou, também na década de 1980, várias perspectivas para a arte telemática, entre elas a capacidade de ações criativas, de uma experiência “vívida e intensa”, e a amplitude do conhecimento em função de uma “cultura telemática possibilitando uma visão global por meio de interação da rede com outras mentes, outras sensibilidades, outros sistemas de percepção e de pensamento planeta afora” (COSTA, 1997, p. 311). 

Ao longo das décadas, vimos também o desenvolvimento de uma “estética digital” (GIANNETTI, 2006), com o avanço nas experimentações em arte interativa, ambientes imersivos, ambientes híbridos etc. Ou seja, houve uma intensificação das relações entre arte, ciência e tecnologia no campo da chamada mídia arte.

No entanto, grande parte das experimentações artísticas desenvolvidas entre a década de 1980 e os anos 2000 trazia como questão ético-estética o aprimoramento de ferramentas, de tecnologias e de interfaces, assim como temas inerentes à criação em rede (sendo essa suporte e procedimento de criação). No campo das artes da cena, essas experimentações – muitas vezes nomeadas “dança e tecnologia”, “teatro e virtualidade” etc. – buscavam desenvolver ferramentas tecnológicas para composição com corpos virtuais, ampliando os aspectos sensoriais potencializados pelo aparato técnico. Também se dedicavam a questões inerentes à própria cena, como possibilidades de criação com corpos a distância; temporalidade e delay; corpo misto; e ampliação do sistema perceptivo e sensorial.

A proposta foi investigar como gerar campos de afeto, relações de presença e possibilidades de outros modos de engajamento sensível e crítico a partir do uso do suporte telemático

Em 2010, a convite da artista e pesquisadora Ivani Santana, integrei um grupo de artistas pesquisadores no desenvolvimento de uma experiência nomeada Laboratorium Mapa D2. Composto de três grupos de pesquisa em artes[2] e três núcleos de desenvolvimento em tecnologia computacional e de rede,[3] o projeto integrava diferentes linguagens artísticas – dança, teatro, música, cinema, performance e arte interativa – na investigação e na exploração da aplicabilidade das tecnologias de informação e comunicação (TICs) no desenvolvimento de performances telemáticas envolvendo ambiente virtual e interatividade. Essa pesquisa-criação se desdobrou em workshops, mostras de processo e open labs, realizados no Teatro Universitário de Fortaleza e no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Teve como trabalho final a instalação Frágil, apresentada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio) durante o evento Desafios da arte em rede.

Com ênfase em pesquisa, criação e experimentação no campo da arte com mediação tecnológica, sobretudo entre corpo, cena e telemática, o projeto tinha como objetivo investigar a própria telemática como procedimento de criação, ou seja, a rede como um meio que determina condições artísticas e estéticas específicas.  

Assim, ao mesmo tempo que colaborávamos para o desenvolvimento de plataformas e softwares específicos para a criação artística em telemática, pesquisávamos especificidades e potencialidades da criação cênica mediada por aparatos técnicos. Criar para e com a rede telemática é um outro modo de pensar corpo, composição, atuação, temporalidade e corporeidade, desdobrado da interação entre corpo e aparatos técnicos, como câmeras, sensores, próteses, telas etc.

Contudo, do meu ponto de vista, o que estamos vivendo no campo da experimentação e da criação artística em rede em tempos pandêmicos alarga as questões que norteavam a pesquisa e o trabalho em arte e telemática antes de 2020. Não estamos mais falando em criações desenvolvidas com e para a rede, mas sim investigando como gerar campos de afeto, relações de presença e possibilidades de construção de outros modos de engajamento sensível e crítico, como sociedade, a partir do uso do suporte telemático.

Por outro lado, é claro que todas as experimentações e desenvolvimentos tecnológicos, todo o conhecimento emergente das pesquisas sobre as relações entre arte, ciência e tecnologia são hoje fundamentais para impulsionar a criação em rede. Mas nossa questão atual permeia outros campos ético-estético-políticos a serem investigados.

Afinal, não há como não ver quando se vive em frente às telas de computadores e celulares. Mas, atenção, ver não significa ser afetado. É preciso cuidado

Ações ético-estética-políticas para (sobre)viver em um mundo em ruínas

Como artistas do corpo, da cena e da presença, no momento que vimos impossibilitadas as relações presenciais diante de uma crise sanitária e humanitária, nos dedicamos a um campo de experimentações e emergências poéticas. 

Rapidamente o mercado lançou plataformas e softwares para ser utilizados como espaços virtuais de reuniões, seminários, aulas, consultas médicas, encontro com família e amigos, criações e apresentações artísticas. Galerias, museus e centros culturais transformaram a rede em espaços de visitação. Os processos curatoriais se reinventaram, propondo espaços de encontro, diálogos, discussões coletivas, mostras e exposições expandidas.

A vida se tornou uma tela.

As crises sociais, políticas, econômicas e ambientais receberam olhares mais próximos. Afinal, não há como não ver quando se vive em frente às telas de computadores e celulares. Mas, atenção, ver não significa ser afetado. É preciso cuidado.   

A arte passou a ser, então, cada dia mais “útil” (BRUGUERA, 2017). Um respiro para muitos. Um espaço de experimentação, investigação e, sobretudo, ativismo para a maioria de nós, artistas.

Tivemos, sim, que nos reinventar. Conhecer e aprender – para quem não trabalhava com mediação tecnológica – ou revisitar todo o conhecimento adquirido ao longo dos anos em arte e telemática, arte e tecnologia e mídia arte. Revisitamos teorias e práticas artísticas, mas o que vimos e continuamos a acompanhar foi sobretudo um lançar-se aos desafios da nossa época em busca de modos ético-estético-políticos de criação de campos de afecção. A arte se fez urgente, como o respirar.

Em tempos de distanciamento social, como artistas da cena, fomos lançados à investigação de ações ético-estético-políticas que estabeleçam relações de presença. A processualidade e a experiência tornaram-se o centro de nossas investigações

Muitos projetos pensados para o ambiente presencial tomaram, num primeiro momento, outras formas e se tornaram ações mediadas pela rede. Outros já nasceram pensados para uma fruição desse tipo. É o caso de Conexão Mulheres da Improvisação, com sete artistas pesquisadoras de diferentes universidades brasileiras e do exterior que se reuniram para investigar formas e dispositivos de engajamento, gerando campos de afecção e estado de presença a partir da arte com mediação telemática.

Inicialmente, participamos de dois seminários, propondo “conferenciAções” que envolviam o público. Para essa conferência, ainda experimentando as plataformas, suas limitações e suas possibilidades, decidimos compartilhar com um público amplo o nosso próprio processo de composição e discussão:

O convite que nós da conexão mulheres da improvisação fazemos a todas e todos presentes aqui conosco nesta manhã é um convite para o sentir, para o pensar, para o agir em tempos de URGÊNCIA (...) Para esta “ConferenciAção” nos colocamos em experiência, abertas a potencialidades emergentes dos nossos encontros e de novas temporalidades. Nos colocamos em meditação, em ação, em movimento, em performance, numa busca por uma potência de agir e pensar o sensível, o sutil, o poético. Pensar a força do gesto performativo na construção de rupturas e deslocamentos dos corpos e dos modos de ser e estar no mundo que habitamos, e pelo qual somos habitados (RIBEIRO, 2020, p. 109).

No entanto, sabíamos que, para criar engajamento e possíveis campos de afecção, era necessário ir além, desenvolver experimentos artísticos que, por um lado, nos lançassem a uma experiência que colocasse em pauta as singularidades e o contexto que estamos vivendo, mas, por outro, nos instigassem a pensar ações coletivas possíveis para um mundo outro, que ainda virá.

 E, assim, desenvolvemos [IN] submersa, uma instalação performativa que propunha uma imersão por salas virtuais interconectadas, pelas quais os participantes se deslocariam de acordo com escolhas realizadas por uma das integrantes da Conexão Mulheres da Improvisação, seguindo uma ordem de fruição aleatória. Dessa forma, nenhum participante teria a mesma experiência, e tampouco poderia construir sua trajetória individualmente.

Esse trabalho foi desenvolvido e mediado pela plataforma Zoom, explorando suas possibilidades e limitações técnicas e tecnológicas daquele momento.

Imagem de um corpo sentado desfocado num campo com grama, flores brancas pequenas e vermelhas.
"Escavar o Escuro" (2015), Daniela Paoliello (imagem: Daniela Paoliello)

[IN] submersa também foi apresentada na Bienal internacional de dança do Ceará, em março de 2021, para 70 participantes. Pela especificidade da obra, não há registro arquivado. Essa foi e continua sendo uma experiência imersiva, para ser experienciada e ativada de forma coletiva por corpos individuais presentes virtualmente numa mesma sala ao mesmo tempo, mas podendo estar em geografias, temporalidades e contextos distintos.

Dessa experiência compartilho a videoinstalação [Coexistir-Coexistence], que integrava uma das salas virtuais da bienal.

Parto de [In] submersas para exemplificar poéticas emergentes em tempos pandêmicos. Poéticas do encontro, da conexão e da construção de imaginários coletivos, ainda que com corpos físicos habitando e habitados por contextos distintos.

Em tempos de distanciamento social, como artistas da cena, fomos lançados ao desafio e à responsabilidade, ao campo da investigação de ações ético-estético-políticas que alimentem, estimulem e estabeleçam relações de presença, cultivando imaginários coletivos. A processualidade e a experiência tornaram-se o centro de nossas investigações e a rede passou a ser apenas o meio pelo qual investigamos, nos conectamos e convivemos.

Se há algum tempo já vínhamos nos perguntando qual o papel do artista e da arte frente aos desafios, crises e catástrofes da atualidade, quando o mundo parou em 2020 não havia mais tempo para perguntar, era hora de agir. Num primeiro momento, o medo nos paralisou como sociedade, mas a certeza da importância da arte nesse contexto nos lançou ao movimento. Afinal, viver em um mundo em ruínas, ou melhor, sobreviver nas e às ruínas do antropoceno requer novas formas de agir, de pensar, de estar no mundo e de fazer mundos possíveis.

É nesse momento que estamos, de reinvenção.

No entanto, é importante ressaltar que, ao mesmo tempo que nós, artistas e pesquisadores, estamos investigando como criar relações de presença e campos de afecção, gerando “potências de afeto” e “potências de agir” (LATOUR, 2020) em busca de alimentar o pensamento crítico, a sensibilização e a desautomatização dos corpos, os pesquisadores e as empresas de tecnologia estão aprimorando as ferramentas – softwares e hardwares – e a infraestrutura de telecomunicação. E, enquanto o mundo segue em uma reatualização diária em busca de outras formas de viver, conviver e estabelecer laços de afeto e efeito de presença, um intenso processo extrativista, como sua política devastadora, continua tentando cegar todos os nossos órgãos sensoriais vitais, criando corpos insensíveis e nos acostumando à violência – esta, sim, potencialmente infinita (ARAOZ, 2020, p. 20).

 

Expediente da Revista Observatório 30

Como citar este artigo

RIBEIRO, Walmeri. Como criar campos de afecção por meio do suporte telemático? Por ações ético-estético-políticas na ressensibilização dos corpos. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. Disponível em: [https://www.itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/revista-observatorio/como-criar-campos-afeccao-atraves]. Acesso em: . DOI: https://www.doi.org/10.53343/100521.30.03

 

Walmeri Ribeiro é artista e pesquisadora. Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordena o Laboratório de Pesquisa em Performance, Mídia Arte e Questões Ambientais (BrisaLAB) da instituição. É também professora dos programas de pós-graduação em artes da UFF e da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ). Com pós-doutorado pela Concordia University, do Canadá, desenvolve o projeto de pesquisa e criação artística Territórios Sensíveis desde 2014, com financiamento do Prince Claus Fund, do Goethe-Institut (2019-2021) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) (2019-2022).

 

Referências

ARAOZ, Horacio Machado. Mineração, genealogia do desastre: o extrativismo na América Latina como origem da modernidade. São Paulo: Elefante, 2020.

ASCOTT, Roy. Existe amor no abraço telemático?. In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia: passado, presente e desafios. São Paulo: Editora Unesp; Itaú Cultural, 2009. 

BRUGUERA, Tania. Talking to power / Hablándole al poder. San Francisco: Yerba Buena Center for the Arts, 2017.

COSTA, Mario. Corpo e redes. In: DOMINGUES, Diana (org.). A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Editora Unesp, 1997.

GIANNETTI, Claudia. Estética digital: sintopia da arte, a ciência e a tecnologia. Belo Horizonte: C/Arte, 2006.

LATOUR, Bruno. Diante de gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

RIBEIRO, Walmeri. Mulheres da improvisação (MI): ações e reflexões sobre presença frente aos desafios contemporâneos. In: LAKKA, Vanilton; GUIMARÃES, Daniela; AQUINO, Dulce; QUEIROZ, Clécia; ALVIM, Valeska; AMÂNCIO, Alysson (org.). Quais danças estarão por vir? Trânsitos, poéticas e políticas do corpo. Salvador: Anda, 2020.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

 

Notas:

[1] “[...] revelava-se em condições de conduzir o corpo, ou melhor, a corporeidade, a toda parte, e permitia introduzir a noção de corpo misto, ubiquitário e coletivo” (COSTA, 1997, p. 312).

[2] Laboratório de Poéticas Cênicas e Audiovisuais da Universidade Federal do Ceará (LPCA/UFC), coordenado por Walmeri Ribeiro e Héctor Briones; Poéticas Tecnológicas, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), coordenado por Ivani Santana; e Núcleo de Artes e Novos Organismos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Nano/UFRJ), coordenado por Guto Nóbrega e Malu Fragoso.

[3] Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Universidade Federal da Paraíba (UFPB); e Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP).

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