Vale mais o coração: 20 anos da morte de Cássia Eller
29/12/2021 - 10:02
por Duanne Ribeiro
Em 2001, seu último ano de vida, Cássia Eller “estava plena, feliz, superprodutiva”, conta Marcos Hermes, fotógrafo que trabalhou com ela desde 1999. A cantora, instrumentista e compositora havia lançado então seu disco de maior sucesso, o Acústico MTV, em uma trajetória já com cinco álbuns de estúdio e outros dois ao vivo. Cássia, adiciona Marcos, “chegou a me dizer que estava muito cansada e que tiraria férias depois do ano-novo de 2001”. Antes do réveillon, no dia 29 de dezembro, ela morreria de infarto do miocárdio.
Ao longo das duas décadas que se seguiram à sua morte, completadas hoje, a obra de Cássia permaneceu tendo impacto. Até 2019, foram produzidos 14 álbuns com o seu trabalho, entre antologias, shows e gravações de estúdio. Neste dezembro, abrindo a celebração dos 60 anos da musicista – a comemorar em 10 de dezembro de 2022 –, foi lançado um blues inédito interpretado por ela, “Espírito do som”. Eleita pela revista Rolling stone em 2008 como a 40ª maior artista da música brasileira, sua importância parece hoje indiscutível.
Essa importância, além dos traços marcantes da sua criatividade e da sua personalidade, é o foco desta reportagem. Assim como Marcos, conversam com a gente sobre Cássia a escritora e musicista Beatriz Helena Ramos Amaral, autora de Cássia Eller: canção na voz do fogo, e Cesinha, baterista de Cássia Eller (1994), Veneno antimonotonia (1997) e Veneno vivo (1994) – show relançado na íntegra em Todo veneno vivo (2019). Como de costume, fizemos uma playlist com músicas indicadas pelos entrevistados. Ouça:
Originalidade, versatilidade e integridade, sem concessão
Publicado em 2002, Cássia Eller: canção na voz do fogo fará 20 anos quando a cantora faria 60. Beatriz explica que o livro é um “retrato da trajetória” de Cássia, com base no estudo das canções, das letras, de entrevistas (com a cantora e outros músicos) e críticas sobre a sua produção. Atraída “pelo timbre de voz, pelas singularidades de interpretação, pelo bom gosto de repertório, pelo imenso poderio vocal e pelo mimetismo realizado por ela em cada obra”, a pesquisadora se dedicou a analisar esses elementos todos.
Para a escritora, Cássia “é uma das mais importantes intérpretes da música brasileira”. De fato, na voz dela ouvimos, com outra potência, composições dos Beatles e dos Rolling Stones, de roqueiros como Renato Russo, Nando Reis e Cazuza a sambistas como Ataulfo Alves, Chico Buarque e Riachão. Ela “gostava de sentir-se plenamente identificada com as canções que interpretava”, defende Beatriz, “e se tornava uma espécie de coautora de cada obra. Assim representou uma geração. Com capacidade mimética desmedida, avançou sobre fronteiras, visitou gêneros brasileiros distintos – com predominância do rock – e nos legou uma das mais fantásticas obras musicais da contemporaneidade”.
Em suma, afirma a autora de Cássia Eller: canção na voz do fogo, “o que mais a marca, além da imensa originalidade e versatilidade, é a integridade artística, o fato de ter mantido sua independência e coerência sem nenhuma concessão ao mercado. A obra de Cássia é uma lição para as novas gerações”.
Olé nos cinegrafistas e salgadinhos pisados sobre a mesa
Cesinha reencontrou Cássia recentemente: ele foi um dos músicos que deram vida nova a “Espírito do som” – o lançamento retrabalha uma gravação ao vivo da década de 1980, quando a cantora tinha 22 anos. A esse áudio foi acrescentado o instrumental de Marfa Kurakina (baixo), Kadu Mota (guitarra), Pedro Fonseca (piano e órgão) e Rodrigo Garcia (violão) – além, claro, de Cesinha, que se reaproximara da família Eller via Porangareté, a gravadora responsável pela música. “Rodrigão veio aqui em casa e gravamos sobre o áudio original e um violão que ele gravou para organizar a base”, conta o baterista. “Foi emocionante tocar com uma Cássia muito nova e sempre visceral. Eu amei o resultado!”
Tendo tocado pela primeira vez com a intérprete na gravação de Cássia Eller, Cesinha entrou na banda após o lançamento do DVD Violões (2010) – depois dos discos citados acima, ele, então em turnê com Caetano Veloso, ainda gravou com ela “Gatas extraordinárias”. “Uma vez na turma”, conta o baterista sobre o tempo em que esteve no grupo, “éramos uma ‘banda de rock’, com todas as loucuras e bobeiras. Ficamos todos muito amigos!”
Dessa época, ele recorda várias histórias de Cássia: “Lembro dela no bis do show Veneno vivo no Palace em São Paulo, cantando ‘Pro dia nascer feliz’ e andando sobre as mesas da plateia, pisando os salgadinhos... ou dando olé nos câmeras do Programa livre, do Serginho Groissman, correndo pelo cenário enquanto cantava...”. Parece então que “1º de julho” dizia a verdade – Cássia era fera, bicho, anjo e mulher: “Eram muito marcantes na personalidade dela os saltos da extrema timidez à explosão de energia. Também uma liberdade de comportamento muito além de regras e parâmetros”.
Sensível, autêntica, intensa. Mulher, mãe, pessoa simples
“Meu primeiro projeto com Cássia foi em 1999”, diz Marcos. “Aliás, o álbum Com você... meu mundo ficaria completo foi o primeiro da minha carreira no mercado fonográfico. Depois produzimos as fotos de making of do Acústico MTV, em 2000, e na sequência, já em 2001, a gravação do Acústico.” Desses contatos de trabalho, o fotógrafo destaca a estadia da banda em um sítio em Teresópolis, cidade no interior do Rio de Janeiro: “Sem a menor dúvida, esses dias, os ensaios do Acústico, foram os momentos mais especiais. Ali eu pude registrar a Cássia mulher, mãe, pessoa simples. Ali ficamos amigos”.
Em 2018, Marcos lançou Brasilerô, livro que reúne 30 anos de trabalho fotográfico e que traz as imagens feitas no sítio em Teresópolis. Ainda sobre esse ensaio comenta ele: “Os registros da intimidade tornaram público o quão Cássia era uma mãe dedicada, artista autêntica e que deixou muita saudade. A risada dela ecoa em mim até hoje”. Nós, que não a conhecemos, podemos sentir um pouco desse riso, por exemplo, nas cenas do Acústico MTV: no show, ela, sorridente, debochada, jocosa, parece se divertir todo o tempo.
“No nosso último encontro”, narra Marcos, “ela se declarou fã do meu trabalho, me deu um beijo na boca e se despediu.” A partir dessa relação “divina, especialíssima”, define ele quem foi Cássia Eller: “Uma pessoa sensível, autêntica, intensa, que, quando aceitava alguém na ‘família’, era pra sempre”. Agia ela desse jeito “sem saber que o ‘pra sempre’ sempre acaba”? Se sim, também por saber que nada consegue mudar o que ficou.
***
Saiba mais sobre Cássia Eller na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.