O Itaú Cultural (IC) celebrou, neste 10 de novembro, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, seus 35 anos de atuação no cenário artístico-cultural brasileiro, ocasião especial não apenas para a sua própria trajetória, mas também uma oportunidade para homenagear figuras referenciais na construção e na transformação da nossa cultura. Uma noite emocionante para todos que, de alguma forma, estiveram – e ainda estão – presentes na história da organização.

O Prêmio Milú Villela – Itaú Cultural 35 Anos celebra dez figuras de destaque na arte e na cultura, em reconhecimento às suas trajetórias longevas e definitivas. Realizado pela primeira vez em 2017, quando o IC completou 30 anos, a premiação foi renomeada nesta edição para homenagear Milú Villela, presidente da organização entre 2001 e 2019. Uma mulher que escolheu batalhar pela educação, pela arte e pela cultura no país.

Construída a partir de cinco verbos – aprender, criar, experimentar, inspirar e mobilizar –, que dialogam com o fazer e o pensar do IC, o prêmio contempla duas personalidades e/ou coletivos em cada uma das categorias: Leda Maria Martins e Nego Bispo (Aprender), Claudia Andujar e Léa Garcia (Criar), Cátia de França e Ói Nóis Aqui Traveiz (Experimentar), Danilo Miranda e Neon Cunha (Inspirar) e Inaicyra Falcão e Marcos Terena (Mobilizar). A definição dos nomes partiu da comissão interdisciplinar formada por gestores do IC – Aninha de Fátima Sousa, Edson Natale, Eduardo Saron, Galiana Brasil, Sofia Fan e Tatiana Prado – e convidados – Daniel Munduruku, Dione Carlos, Inês Bogéa, Joel Zito Araújo, Moacir dos Anjos e Zélia Duncan.

“Os trabalhos e as causas dessas pessoas não são só importantes, mas são transformadoras. Transformadoras da realidade de um povo, de uma missão. Estamos falando de pessoas que transformam pelas margens, que fazem uma mudança não só nas vidas delas, mas na vida de todos”, anunciou a jornalista Cris Guterres, mestre de cerimônias, no começo da noite.

Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú – e que trabalhou diretamente com Milú ao longo de nove anos de sua gestão –, destacou a importância de celebrar a vida a partir de campos do afeto, do encontro e da resistência e de buscar um país mais justo e igualitário.

“É uma instituição – num país tão complexo – nos campos da cultura e das artes que completa 35 anos. Estou emocionado por ter a oportunidade e o privilégio de homenagear uma pessoa que é a junção destes cinco verbos, que é a Milú Villela. Certamente os nossos artistas, suas poéticas e nossa capacidade de, junto com essa arte, fabular o presente e o futuro nos darão anos de transformação deste país. E não há outra forma a não ser juntar arte, cultura e educação. Hoje, vocês vão encontrar pessoas que representam isso em suas vidas e trajetórias”, disse Saron.

Na sequência, Ricardo Villela Marino, CEO da Operação do Itaú na América Latina e filho de Milú, falou sobre a emoção e a honra da mãe pelo reconhecimento: “Uma homenagem tão importante e necessária a essa mulher que participou tão ativamente na construção de pontes, na articulação de programas e pessoas para sonhar e fazer esse Brasil melhor. Uma mulher que construiu equipes e legados. Milú está muito comovida com esta decisão do Itaú Cultural de fazer este prêmio em seu nome. De saber que ela é celebrada pela equipe que ela formou, orientou e transmitiu ideias, e que a acolheu tão bem durante duas décadas. E por saber que sua trajetória de trabalho está ainda mais conectada às dez pessoas que receberão as homenagens”.

Dez figuras referenciais e premiadas

Aprender

Leda Maria Martins

Professora, doutora, escritora, teatróloga, possui uma trajetória de destaque na academia, passando por instituições de ensino em Minas Gerais, Nova York e no Rio de Janeiro, da posição de aluna à chefia de departamentos. Sua obra acadêmica e seu pensamento são indispensáveis na investigação do teatro contemporâneo e na percepção da cultura no Brasil.

“Eu só quero agradecer. Primeiro a Nossa Senhora do Rosário por ter me abençoado, me nutrido, me protegido e me consolado nas coisas mais difíceis. E são muitas. Quero agradecer a comissão pela generosidade. Nunca achei, e isso não é retórica, que eu fazia jus a um prêmio, mas estou muito feliz em recebê-lo. É o primeiro que recebo. A todos e todas que em minha vida me trouxeram até aqui. E são muitos e muitas. E dedicar esse prêmio à minha mãe, cuja vida inteirinha foi dedicada a mim e à possibilidade de que eu pudesse ter uma vida menos dura do que ela teve. Assim como dedico ao meu filho. As duas pontas da vida. Hoje, ambos são já meus ancestrais. Dedico também a todo o povo de reinado, para todo e qualquer povo preto, branco, não branco, não preto, de qualquer matriz. Este prêmio é para todo povo, pois de povo somos.”

Nego Bispo

Antônio Bispo dos Santos é muito conhecido no universo quilombola brasileiro e cada vez mais reverenciado como pensador na academia. Acompanhou a Constituição de 1988, coordenou mais de 15 ocupações no Piauí e é membro da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (Cecoq/PI).

“Fogo! Queimaram Palmares, nasceu Canudos. Fogo! Queimaram Canudos, nasceu Caldeirões. Fogo! Queimaram Caldeirões, nasceu Pau de Colher. Fogo! Queimaram Pau de Colher… e nasceram, e nasceram tantas outras comunidades que os vão cansar se continuarem queimando. Porque, mesmo que queimem a escrita, não queimarão a oralidade. Mesmo que queimem os símbolos, não queimarão os significados. E, mesmo que queimem nossos corpos, não queimarão a ancestralidade. Vivas as vidas porque todas as vidas são necessárias. Dito isso, eu quero agradecer a minha geração por ter compreendido que educar, adestrar, catequizar, colonizar é tudo muito parecido. Exatamente por isso, a minha geração, na qual me incluo, me ensinando e não me educando. Quero agradecer a comissão por acolher a nossa trajetória; esse prêmio não é para o nosso nome, é para a nossa trajetória. Quero parabenizar o Itaú Cultural por ter compreendido que uma das melhores maneiras de se cuidar dos saberes é contribuindo com quem cuida das memórias.”

Criar

Claudia Andujar

Nascida na Suíça, naturalizou-se brasileira, virou fotógrafa, morou em aldeias indígenas e se tornou defensora incansável desses povos. Tornou-se fotojornalista, descobriu o universo indígena, a Floresta Amazônica, e se encantou com os Yanomami. É autora de milhares de fotografias e dezenas de livros, e participou de mais de uma centena de exposições no Brasil, na América Latina e do Norte e na Europa.

“Eu comecei a trabalhar nos anos 1970 com os Yanomami, e por causa deles é que, hoje à noite, estou aqui. Os Yanomami vivem na Amazônia brasileira, é um povo grande, e estou muito ligada a eles até hoje. Imagino que vou continuar a defendê-los. Meu trabalho começou por causa da fotografia e, obviamente, para eu entender quem são os Yanomami. Até hoje a gente trabalha junto. Eles confiam em mim e eu acredito neles como gente.”

Léa Garcia

A trajetória de sete décadas da atriz reflete a história das artes dramáticas nacionais e como as diferenças raciais são determinantes em nosso país. Léa sempre teve consciência de sua cor e agiu em prol desse ativismo. Participou do grupo Teatro Experimental do Negro (TEN), com Abdias Nascimento, fez cinema e televisão. Foi reconhecida por sua luta nas artes da cena, alterando textos e abordagens que reproduziam o racismo estrutural.

“Quero expressar minha emoção de estar aqui presente junto a todos e entre esses dez premiados. E poder celebrar o Prêmio Milú Villela e exaltar os 35 anos de atividade do Itaú Cultural junto à educação, à cultura, ao ativismo e à arte como essenciais na transformação da sociedade. Eu agradeço a Milú Villela pelo seu legado, como também a comissão pelo reconhecimento da minha trajetória enquanto profissional da cultura, enquanto atriz e enquanto mulher negra. Eu sou porque nós somos.”

Experimentar

Cátia de França

Cantora, compositora, instrumentista e escritora, Cátia é cultuada desde seu primeiro disco, 20 palavras ao redor do Sol (1979). Ela seguiu uma rota errática no cenário artístico: lançou outros cinco discos (tem dois inéditos), com canções regravadas por diversos intérpretes; publicou livros e compôs trilhas para o teatro e o cinema.

“Saúdo a todos os presentes, peço licença para louvar aquele que chega primeiro, a quem alimentamos no início para tudo decerto brilhar: meu pai Exu. Laroyê Exu! Sou filha dele. Para chegar à grandiosidade desse prêmio, temos que saudar a professora Adélia de França, minha mãe. A primeira negra a exercer a posição de educadora na Paraíba. Meu pai, Sebastião, com todo louvor, guarda de trânsito. Minha vó materna, lavadeira, Severina de França. Agradeço ao IC pelos 35 anos de trabalho pela cultura brasileira, me sinto muito honrada de estar ao lado de pessoas tão genuinamente brasileiras. Vem agora a permissividade: convidei uma pessoa para fazer o discurso de agradecimento. Quem melhor me representaria? Uma filha. Sim, porque estou tomada pela emoção de estar aqui envolvida num redemoinho de felicidade, reconhecimento, satisfação. Assim, assuma agora seu posto. Falará por mim uma canção inédita, em atmosfera ‘jobiniana’, expressará com certeza muito melhor que dizer termos rebuscados. Cantando, eu abraço cada um de vocês. A música é ‘Conversando com o rio’.”  

Ói Nóis Aqui Traveiz

Há mais de 40 anos, além de produzir, ensinar e fazer teatro, o grupo-tribo persevera na gestão e na criação coletivas. É destaque em diversos aspectos relacionados à inovação, à pesquisa estética e à criação coletiva. Com atuação na rua ou em espaços fechados, algumas vezes trazendo os lugares como um elemento cênico-semântico, explora o trabalho autoral e os recursos físicos do ator, gerando experiências marcantes para o público.

“Depois da notícia do prêmio, nos demos conta de que nós tínhamos triunfado de novo, porque o Ói Nóis é um grupo que surge durante a ditadura e resiste à ditadura. E o Ói Nóis resistiu à pandemia. E a gente não sabe explicar como isso aconteceu. Como esse coletivo do Sul do país manteve o seu trabalho, manteve a esperança regada pela quantidade certa de água para que ela não nos abandonasse. E nós conjugamos muito esse verbo: o esperançar. E, quando recebemos a notícia do prêmio, nos demos conta de que o nosso fazer estava vivo, como deve ser. Nesses 44 anos, experimentamos muito. Estar entre essas pessoas, seres humanos ímpares e preciosos, essa representação da grande diversidade que é a cultura brasileira. Estar entre essas pessoas é um prêmio ainda maior.”

Inspirar

Danilo Miranda

Danilo Miranda é um dos grandes nomes da cultura e das artes contemporâneas. Seu trabalho não é consumido diretamente pelo público, mas faz com que, semanalmente, pelo menos 500 mil pessoas tenham contato com arte, cultura e lazer nas 49 unidades do Sesc/SP. Já são quase 38 anos à frente da diretoria regional dessa instituição, fundada em 1946.

“Ao saber do prêmio que receberia hoje, e seu tema em especial, me veio ao rosto um contido sorriso. Não de maneira vaidosa, não pelo reconhecimento individual à frente do Sesc de São Paulo. Me alegrei a rememorar os tantos modelos de inspiração que tive ao longo da vida e me presentearam com lentes que ampliaram sensivelmente meu contato com a diversidade do mundo. São parte de quem sou. Gente das letras, das artes cênicas, das políticas culturais, de todas as áreas, de uma profusão de sensibilidades e compromissos. Afinal, a cultura não é feita disso? Fundamental junto à arte para entender os tantos mundos que compõem o nosso mundo. É por meio deles que ultrapassamos a barreira do material ao nosso redor. Milú, minha querida amiga e companheira de tantas jornadas, dedico meu singelo agradecimento e minha sincera homenagem. Ao Itaú Cultural, nosso ilustre vizinho na Avenida Paulista, em seus 35 anos de existência, só tenho a agradecer.”

Neon Cunha

Uma mulher negra, ameríndia e transgênero que ofereceu a vida para mudar procedimentos legais abusivos exigidos em processos de troca de nome e de gênero de pessoas trans. Formou-se na universidade, trabalhou como publicitária, diretora de arte, no mundo da moda, sempre atenta às suas iguais trans, e levando em sua trajetória quem podia.

“Laroyê Exu Epahey Oyá! Foi um guerreiro de candomblé que descobriu as forças que impulsionam a vida, o gestar da mulher. Não escolhi ser Neon, me renomearam. Mas decidi que outras tantas vidas seriam mais livres quando se pertencesse. Pertencimento no meio de tanto ‘não pode’: não pode ser mulher; não pode ser humana; não nasceu aqui, não é paulista; não foi criada em BH, não pode ser mineira. Não pode tanta coisa. Mas a gente, uma qualidade de gente que não se contenta com não pode, que meu lugar de existência não cabe em mim. Cabem muitas, cabem milhões delas. Máximo respeito à multidão que me inspira, que me antecede e ressignifica as humanidades. Suelis, Neusas, Julianas. Fabiana de Moraes, essa tem nome e sobrenome e é do Nordeste. São tantas, mas tantas, as que redefiniram as humanidades de todos os tons e todas as possibilidades. Lugar de inspiração é pertencimento, e não é fronteira. Esse lugar, os sonhos são maiores que os medos, é o não limite de ser uma mulher negra.”

Mobilizar

Inaicyra Falcão

Referência no estudo das artes cênicas brasileiras, passou por todos os graus acadêmicos de universidades e por instituições de ensino no Brasil, nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra e na Nigéria. Passou também por palcos europeus e brasileiros, dançando. Sua trajetória é exemplar na luta contra o racismo estrutural.

“É com muita honra que recebo o Prêmio Milú Villela. Neste momento festivo, quero agradecer as forças poderosas, as minhas forças ancestrais, mas especialmente a minha vó. Mãe-senhora. Maria Bibiana do Espírito Santo. As artes do corpo – dança, música, canto, ritmo – são práticas sensíveis e estéticas que integram a ancestralidade de toda a humanidade. A transmissão de saberes das tradições promove o diálogo permanente entre o que somos e os coletivos aos quais pertencemos. E assim dilata, expande e transforma conhecimentos que visam à contribuição concreta de proposição tanto na elaboração de propostas artísticas quanto pedagógicas. O trabalho que me proporcionou estar aqui traz contribuição de conhecimento e transcendência e deve ser entendido de modo vasto. É poder pensar, repensar, revisar as práticas e concepções que não atendam à presença da memória africana, às histórias individuais, à cultura africana-brasileira no campo da arte, da educação a partir de uma perspectiva intercultural, de identidade e da pluralidade étnica que estruturam a base, levantam um projeto desse país adiante.”

Marcos Terena

Precursor de diversas frentes da luta dos povos indígenas brasileiros, pertence à etnia Xané, como se autodenominam os Terena. Em 1986, Terena concorreu a uma vaga na Assembleia Nacional Constituinte. Ficou como suplente e, dessa forma, organizou um movimento que conseguiu aprovar um capítulo na Constituição de 1988 sobre a questão indígena. Em 1992, foi convidado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, no Rio de Janeiro.

“Eu queria agradecer esses senhores e essa senhora [Milú Villela] e também ao Daniel Munduruku, doutor em antropologia. É um sábio. Um índio doutor. Quantas vezes na minha vida eu lutei para criar um conselho para os meus irmãos e companheiros estudantes de Brasília. Vocês têm essa missão de proteger a memória. Não só no papel ou nos arquivos, mas no coração. Quando a gente aprende a agradecer, a gente fica em paz. Eu nunca tinha ganho prêmio nenhum por lutar pelos direitos civis na minha vida, nunca recebi um prêmio. Alegria e emoção de estar aqui, vocês estão aqui olhando para nós, eu peço para este grande espírito que inspire vocês.”  

Veja registros da cerimônia

Além da premiação, a cerimônia contou com apresentações artísticas de Zélia Duncan – que homenageou Cátia de França com a música "Vinte palavras girando ao redor do sol" –, Assucena – homenageando Gal Costa com apresentações de "Baby" e "Pérola negra" –, grupo Batucada Tamarindo, Ói Noiz Aqui Traveiz, Dione Carlos e outros.