Durante a Copa do Mundo do Catar 2022, o Itaú Cultural publica A Copa é nossa, uma série de textos em que artistas compartilham suas relações e memórias com o futebol e o torneio.

A dança também faz parte dos meus músculos, ouviu? Conduzir bola feita de meias ou do material mais rígido possível com assinatura falsificada de jogador, quase imaculada. Comemorar de deixar pé ainda mais sujo na tabatinga. Sorrisos no campinho improvisado. Traves de chinelos arrumados com pregos. Desvirar chinelos pra evitar a morte da mãe. Arriscar a tragédia por um gol, um golzinho só. Beijar escudo de camiseta amarelinha novinha número 10. Ter todas as explicações possíveis sobre a copa do mundo. Jogar fifa na casa da criança rica até os adultos dizerem chega, vão pra casa! Partida no quintal dos tios papudinhos de cerveja nas festas de final de ano. Ei, meu menino, meu campeão! Assim foi a dança do futebol na infância dos meus primos, que eu dancei só na cabeça.

Era eu que, agarrada ao urso de pelúcia, chamava de meu jogador. A que levava a garrafa PET cheia de água gelada com iceberg dentro pra eles, era a que queria brincar. Era a que passava gelol nos outros. A que amava ler as edições da Placar em segredo.

Eu ia ser a primeira garotinha no interior do Pará a ser a maior comentarista de futebol do mundo. Do mundo dos homens que proibiam a gente de ser.

Teu pé
gordo
torto
menina
só atrapalha
não entende
nada
de futebol

Entendo da palavra
da poesia
e tem vogal, consoante
no pé
de toda gente
com bicho na poeira
no barro
da costela que era nossa
e por pena eu te dei
sempre contam errado
a história

No natal as mulheres da minha família brincavam de dar um chute na bola, em seguida faziam piada sobre si mesmas. Desde quando a gente começou a se ridicularizar como escudo pra não destruírem nossos sonhos? Na década de 1930, mulher jogar futebol era espetáculo de circo, lembra? Alívio cômico. A gente é atrasada ou foram eles que nos atrasaram?

Sabe o que é? Nunca estive, não estou e nunca estarei aliviada.

De pé em um batente de janela está Monique com uns dois anos. Veste uma camiseta vermelha de time e olha para a câmera.
A escritora Monique Malcher na infância (imagem: Acervo pessoal)

Conquistei a atenção do meu pai e do meu avô quando foi revelado meu segredo: gostava de futebol e ainda mais da copa do mundo. Olha essa molequinha, neta do Lagosta. Meu avô era conhecido por ser um dos mais famosos comentaristas de futebol no interior do Pará. O apelido era filho do aborrecimento quando o jogo ia mal. Vermelho como uma lagosta. Por muitos anos tive esse sonho de ir na rádio ver ao vivo ele narrando uma partida do São Francisco contra o São Raimundo. Depois eu te levo. Hoje? Na próxima. Minha avó tinha um orgulho danado dele e sempre mostrava às visitas a foto do Lagosta com o ex-técnico da seleção brasileira Zagallo. Eles são parecidos, não acha? E servia um café.

Copa do mundo, breve linha do tempo em que eu provava a todos os curumins do bairro que no campinho eu não era bem-vinda, mas fora dele era a maior negociante de figurinhas de Santarém, montava meu álbum sempre bem antes de todos eles. O dono da banca me proibiu de comprar figurinhas. Tá demais já, não sobra pra ninguém! Valia muito ficar sem meu risole no recreio e juntar as moedas.

Meu pai e eu éramos uma boa equipe pra esse fim. A gente colecionava os craques da copa com aquela cabeça enorme e corpinho minúsculo. Eles sabem muito, por isso são cabeçudos, eu explicava pra todo mundo. Gostava do dia de a gente tomar refri baré no saquinho na frente do estádio e de quando ele comprava a camiseta de um time pra mim, qualquer time, que nunca tive um, meu time era tá com ele.

Gostava da emoção da partida, ainda gosto.

O que é escanteio, impedimento, tiro de meta, pai?

É preciso entender as regras pra dançar, e depois criar novas, e depois não ter nenhuma.

Naquela nesga de tempo, de quatro em quatro anos, eu me sentia bem. Trocava minha figurinha favorita da filha a quem ele podia ensinar futebol pela figurinha dourada do pai presente. A partida de futebol em uma copa do mundo sempre foi a presença de uma realidade mágica, em busca do objeto da instabilidade, da mudança. O pequeno planeta dominado pelos pés no interior do interior, de onde poderiam sair – quem sabe – crianças jogadoras, comentaristas. 

Meu pai, meu avô, meus tios em casa, sonhando e sorrindo, por um breve instante pensava que o pra sempre era aquilo, então eles esqueciam tudo o que nos unia em 45 e 45.

Três décadas depois do meu nascimento, a copa do mundo se tornou pra mim o símbolo de uma dança da comemoração de novos tempos políticos. Em cada edição entendia mais sobre os direitos nesse território. E finalmente posso falar sobre copa do mundo, mesmo não sendo nem comentarista nem a melhor comentarista do mundo. A diferença é que falo deste lugar de mulher, mas não só. Pela poesia, como jogada e não como gênero literário, resgato a paixão que sempre foi de minhas coisas internas e não uma figurinha pra impressionar homem. Câmbio planeta bola, amigas telespectadoras, aqui quem fala é a garotinha do interior do Pará, uma cidade chamada Santarém. Cronômetro rodando. Eu me chamo Monique e hoje vou narrar a copa do mundo.

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O cineasta Gabriel Martins encerra a série “A Copa é nossa” escrevendo sobre sua relação de amor, por vezes complexa, com o futebol