por Milena Buarque Lopes Bandeira

 

Provocativa, diversa e divertida. A produção literária de Tatiana Belinky (1919-2013), cujo centenário é celebrado neste ano, buscava o atrevido desafio de exaltar a curiosidade e o questionamento humano, sem nunca destinar respostas fáceis e rasas aos leitores. Em O Caso dos Ovos (1986), por exemplo, galinhas decidem entrar em greve na semana que antecede a Páscoa. Entoando o grito de ordem "galinha bota o ovo, coelho leva a fama", as poedeiras armam o piquete para protestar contra a exploração do trabalho e lutar por justiça social. Existiria, afinal, histórias para criança e assuntos de adultos?

Na visão da pesquisadora e educadora Carina Castro, idealizadora do coletivo de arte-educação Espaço Marciana, grupo voltado para o empoderamento infantil e materno, Belinky, ao desestigmatizar sentimentos e situações, revela “as contradições presentes em todos”. Indo da poesia à prosa, a autora, nascida em Petrogrado, atual São Petersburgo, na Rússia, contribuiu com a tradução de clássicos da literatura, além da adaptação de peças e textos para a televisão. Em 1968, o famoso Sítio do Picapau Amarelo, obra do brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948), foi transportado para a TV Bandeirantes pelas mãos da roteirista.

“Ao mesmo passo que [Tatiana Belinky] falava sobre as belezas da vida, a coragem e a alegria, também falava sobre o medo, a tristeza e a morte como coisas naturais”, diz Carina sobre o pensamento crítico e a extensa produção da escritora.

Nesta entrevista, a pesquisadora indica cinco obras que podem introduzir pequenos – e também adultos – ao universo de Tatiana Belinky.

Em 2019, celebramos o centenário de Tatiana Belinky. Na sua visão, qual é o lugar que a autora ocupa no cenário das letras brasileiras?
Ainda que a maioria de seus textos sejam classificados como infantojuvenis, penso que Tatiana Belinky foi uma grande disseminadora de histórias. Pois como ela dizia “o que é bom para a criança, é bom para o adulto”. Então, a literatura infantil não deve se restringir apenas às crianças pequenas, mas a todos, inclusive aos adultos que ainda são crianças, como se referia a ela mesma. Transitando entre a poesia e a prosa, Tatiana atuou no mundo da escrita de maneira vasta e rica, contribuiu com a tradução de textos literários do inglês, russo, alemão e iídiche, além de fazer adaptações livres de clássicos da literatura como Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Para o teatro, escreveu peças infantis e textos de crítica. Como roteirista foi pioneira trazendo o Sítio do Picapau Amarelo, série inspirada na obra homônima de Monteiro Lobato, pela primeira vez para a TV.


Quais são os principais temas trabalhados por ela em sua produção literária?
Com uma escrita questionadora e inclusiva, Tatiana explora muito os temas que são próprios da natureza humana. Ela desestigmatiza sentimentos e situações, revelando as contradições presentes em todos. Então, ao mesmo passo que falava sobre as belezas da vida, a coragem e a alegria, também falava sobre o medo, a tristeza e a morte como coisas naturais. No entanto, sempre tocava em temas como o autoritarismo e a injustiça social e, em contrapartida, apresentava a igualdade e a diversidade como caminhos que engrandecem a humanidade. Assim, experimentando recursos diversos com a linguagem e muito humor, estimulava nas crianças a empatia e a desenvolver um pensamento crítico.


Em um texto sobre ser criança, Tatiana aponta para a atitude autoritária do "porque sim", expressão diversas vezes usada pelos pais. A autora costumava trabalhar temas tidos como "sérios" em sua obra?
Não digo mais sérios, mas temas importantes de serem abordados com as crianças também. Acredito que não devemos poupá-las devido ao tema. Em sua infância, Tatiana leu grandes clássicos da literatura russa e, segundo ela, é importante que as crianças também tenham contato com essas obras, pois são coisas que estimulam o pensamento. Então, algumas chegarão através de adaptações, mas em outras “nem é necessária tanta adaptação assim” (disse a autora numa entrevista a Antônio Abujamra). Tatiana tinha muito respeito pela infância e achava que não devemos subestimar as crianças, inclusive exaltava muito sua curiosidade, incitando-as a sempre questionar e a não aceitar respostas rasas e impositivas.


Tatiana escreveu mais de 200 obras e traduziu grandes clássicos da literatura russa. Quais seriam as principais características de sua literatura? E sua produção, de alguma forma, se assemelha ou faz referência ao seu país de origem?
Ao meu ver as principais características de sua obra são: provocativa, diversa e divertida. Belinky veio muito nova para o Brasil. Ela mesma se dizia mais brasileira que muita gente, inclusive por ter vivido muitos anos aqui. Porém, a maior riqueza cultural que ela carrega vem dos livros com que ela teve contato e com a sua própria família. Então, o que encontramos da cultura russa em sua obra é a própria produção que ela traz à luz e nos presenteia com suas traduções, além da tradição de contar e escrever histórias.


5x Belinky

Medroso! Medroso! (1985)
“Conta as histórias de Rafa, um menino que é caçoado pelos amigos pois não quer brincar com eles dentro da represa. A duras penas, seus amigos acabam percebendo que ali não é um lugar seguro e, na hora do sufoco, a única pessoa que tem coragem de ajudá-los é somente o Rafa. Livro que fala sobre consentimento e violência psicológica.”

Chorar é preciso? (2004)
“É um livro interessante pois já traz um questionamento no próprio título. É uma história inspirada na vida da própria autora. Uma menina que sofria de ‘choro recolhido’ que, para conseguir chorar, lia livros tristes e assim conseguia desaguar sua angústia. Nos mostra que o riso é importante, mas também é necessário dar vazão aos nossos sentimentos sejam eles quais forem.”

Aparências enganam (2004)
“Obra inspirada numa fábula de [Liev] Tolstói, conta a história de um ratinho aventureiro que sai da toca, se depara com alguns animais e por sua aparência julga que são bons ou maus. Numa conversa com sua mãe rata, revela-se que nem sempre as aparências condizem com o que se realmente é.”

Olhos de Ver (2004)
“Livro de crônicas que nos leva a percorrer uma São Paulo de décadas atrás, onde as pessoas viviam em outro ritmo, menos apressado e mais sensível. Através das crônicas podemos ver com um olhar mais atento e humano personagens da cidade, como moradores de rua, crianças que vendem doces no farol e outros transeuntes.”

Temqueliques - Limeriques do poderoso e perigoso Temque (2008)
“Livro de poemas escritos da forma ‘limerique’, no qual se explora uma sonoridade de ritmo e rima próprias usando linguagem nonsense. Tatiana foi a grande difusora dessa forma poética no Brasil, e no livro aborda a força da expressão ‘temque’, que tanto pode ser usada como uma ordem quanto como um incentivo.”

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