por Heloisa Iaconis da Costa

 

Quando perguntada sobre o contato de jovens estudantes com ela, Clarice responde que essa proximidade revela algo surpreendente: “Eles estão na minha”, diz a escritora. A fala é de 1977, ano da morte da artista, e ocorre numa famosa entrevista para a TV Cultura. Faz 45 anos que Clarice morreu. E há 45 anos jovens estudantes continuam ao lado dela. Sei disso porque sou uma dessas pessoas.

Aos 11 anos, na então 5a série do Ensino Fundamental, eu queria ser bonita. A minha ideia de beleza, porém, não se ligava muito à aparência física. O que me importava (e ainda importa) era um certo jeito de estar no mundo. E nenhum modo de existir me fascinava mais que o da minha professora de português – braços cheios de livros, olhar guardado por óculos, uma altivez suave e firme. Desejava ser como ela. Por isso, passei a também encher os meus braços de livros e a lê-los com a atenção de quem tem um objetivo íntimo. De obra em obra, lendo para me acender por dentro, cheguei à inocência pisada de Macabéa. Na época em que a criança começa a se transformar em adolescente, bem nessa época de formação, descobri Clarice com A hora da estrela (1977). É certo que, em idade menina, não dispunha das ferramentas críticas desenvolvidas hoje, por meio do estudo apaixonado. Mas, a despeito da compreensão do tempo de morangos e do símbolo da Mercedes-Benz, alguma faísca me conquistou logo, tão logo. De imediato, senti as palavras da ficcionista (peguei-as com a mão) e, sentindo assim, encontrei o meu jeito de estar no mundo.

 

Retrato de Clarice Lispector feito por Carlos Scliar. Obra feita com traços leves mostram a escritora com cabelos claros e curtos, olhos enigmáticos pequenos e boca pintada com batom vermelho.
Retrato de Clarice Lispector feito por Carlos Scliar | crédito: divulgação

Coloco-me inteira quando leio Clarice e, creio, deve ser essa a razão de a vida se abrir para mim nas páginas da autora do meu coração. Depois de fisgada pelo primeiro impacto, fiz morada em todas as folhas de C.L. que me caíam no colo: romances, contos, crônicas, cartas, entrevistas, trechos, tudo. Aos poucos, construí a mim mesma com o auxílio da criadora de G.H. A reafirmação do escrever como uma necessidade, a atenção para o ritmo de vírgulas e pontos, a tarefa do imponderável, o desafio da língua portuguesa: Clarice me ensina a perceber o texto – dela, meu, de qualquer um. Escolhi me tornar jornalista pois, em uma coluna de 1968, ela salienta que o jornalismo equivale a uma grande profissão. Estudo literatura para distinguir as dimensões e densidades dos parágrafos que envolvem baratas, rosas e ovos. Estudo letras para, como docente, conduzir outros alunos rumo à inteligência sensível da prosadora infinita. Estudo a linguagem para conversar com Clarice.

Clarice me deu um caminho (a escrita, as profissões, a pesquisa acadêmica), uma consciência social (por causa de “Mineirinho”, entendi que a vontade de matar se entranha neste país), amizades e mestres (da professora da escola Elyane Rodrigues à orientadora de agora, Yudith Rosenbaum). Ela me apresentou ao Rio de Janeiro, do Leme ao Jardim Botânico, antes que eu lá pisasse, alertou-me da hora mais perigosa do dia e me deixa, constantemente, com uma curiosidade inquieta. Além de tanto, essa mulher tímida e ousada me mostra, devido às linhas que concebeu, a opção pela beleza e por ter esperança ativa no Brasil. O Brasil é possível porque a ele pertence Clarice Lispector (aqui, embora não esteja acostumada a chamá-la por nome e sobrenome, digito ambos com todos os tons).

 

Obra de arte feita por Clarice Lispector.
Pintura de Clarice | crédito: divulgação

Neste 9 de dezembro, 45 anos após a partida da escritora, gostaria de ir ao Cemitério do Caju para pôr uma pedrinha em sua lápide. A distância, todavia, impede que tal plano ganhe forma. Que esta declaração de amor represente, neste caso, uma pedrinha. Uma visita. Um obrigada. Uma espécie de constatação: jovens estudantes continuam ao seu lado, Clarice (o que em nada me surpreende). Eles estão na sua. Muita gente está. Eu estava aos 11 anos. Estou aos 26 (jovem estudante que não estuda você, mas com você). E seguirei estando completamente ao seu lado. Na sua.


Heloísa Iaconis é jornalista, formada pela Universidade de São Paulo (USP), estudante de letras na mesma instituição e clariceana (pesquisa a obra de Clarice Lispector). Integra a equipe de comunicação do Itaú Cultural desde 2018.

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