Cem anos de Clarice Lispector: “Quem sabe escrevo por não saber pintar?”
02/08/2020 - 08:00
[Este texto integra uma série de conteúdos pensados pelo Itaú Cultural (IC) para celebrar a Semana da Cultura Nordestina.]
por André Bernardo
Até pouco tempo atrás, toda vez que passava pelo quadro Madeira Feita Cruz, um dos muitos que decoram as paredes de seu apartamento na Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro, a escritora Nélida Piñon sentia uma pontinha de tristeza. A pintura fora um presente da amiga Clarice Lispector (1920-1977), que o pintou em homenagem ao romance homônimo de Nélida, publicado em 1963. “Clarice me faz falta, dói-me falar nela”, escreveu no Livro das Horas (2012). A falta é tanta que, em julho de 2019, Nélida não se conteve ao saber que outro quadro de Clarice, pintado em 7 de maio de 1976 e dado de presente a Autran Dourado (1926-2012), seria leiloado. A obra, cujo lance inicial era de 8 mil reais, acabou arrematada por 220 mil reais. No verso da tela, ao lado da assinatura, uma dedicatória: “Você já conheceu, como eu, o desespero. Mas é um erro. Tudo vai dar certo”.
“Quando eu soube que um quadro de Clarice iria a leilão, fiquei chateada: ‘Meu Deus, minha amada amiga em uma casa estranha? Uma casa que ela não conhece nem nunca frequentou? Não posso deixar isso acontecer’. E, realmente, não deixei”, orgulha-se a escritora. “Eu só não imaginava que o quadro fosse chegar ao valor que chegou. Foi uma coisa espantosa. Até hoje, não sei onde eu estava com a cabeça”, acha graça. “Pensei que chegaria, no máximo, a uns 15 mil reais. Fui tomada por algo tão forte que, a cada novo lance, eu me limitava a repetir ao telefone: ‘Avance, avance, avance’. Os quadros de Clarice têm um valor sentimental extraordinário”, confessa Nélida, que conviveu com a escritora, todos os dias, por 18 anos, de 1959 a 1977, o ano de sua morte.
Os quadros que enfeitam a casa de Nélida Piñon são apenas 2 dos 22 pintados por Clarice. Dezoito fazem parte do acervo da Casa de Rui Barbosa e dois estão no Instituto Moreira Salles (IMS). Em comemoração do centenário de Clarice, a editora Rocco está relançando sua obra completa, com novo projeto gráfico de Victor Burton. São, ao todo, 18 livros: 8 romances, 7 antologias de contos, 2 de crônicas e 1 novela. As capas reproduzem trechos dos seus quadros. Na orelha, a íntegra da tela retratada na capa. A grande maioria foi pintada sobre madeira, principalmente pinho-de-riga; apenas um, Volumes, sobre tela. Em setembro de 2009, 16 dessas pinturas foram expostas na mostra Clarice Pintora, no IMS, no Rio de Janeiro. Os títulos de algumas obras são, para dizer o mínimo, sugestivos: Medo, Explosão, Tentativa de Ser Alegre, Sol da Meia-Noite e Luta Sangrenta pela Paz.
“A verdade é que me faltou o dom para a minha verdadeira vocação.”
O primeiro quadro, Interior da Gruta, é de 1960. Três anos depois, durante uma conferência na Universidade do Texas (EUA), a escritora ucraniana naturalizada brasileira comparou o ato de escrever ao de pintar quadros. “Quanto ao fato de escrever, digo, se interessa a alguém, que estou desiludida. É que escrever não me trouxe o que eu queria, isto é, a paz. O que me descontrai, por incrível que pareça, é pintar. É relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas sem compromisso com coisa alguma. É a coisa mais pura que faço”, declarou. No mesmo discurso, admitiu, com desconcertante sinceridade: “Pinto tão mal que dá gosto!”.
O primeiro quadro de Clarice pode ter sido pintado em 1960. Mas seu interesse por telas, óleos e pincéis surgiu antes, muito antes. Ela ainda morava na Europa quando, então mulher do diplomata Maury Gurgel Valente (1921-1994), passou a conhecer pintores, frequentar ateliês, comprar catálogos e visitar exposições, como a de Candido Portinari, em Paris, e a de Vincent van Gogh, em Lausanne. Em Nápoles, onde morou de agosto de 1944 a abril de 1946, Clarice chegou a posar para a pintora modernista brasileira Zina Aita (1900-1967). Não foi a única vez. Com sua beleza misteriosa, serviu de musa para outros artistas, como o grego Giorgio de Chirico (1888-1978) e os brasileiros Alfredo Ceschiatti (1918-1989) e Carlos Scliar (1920-2001).
“Estão sendo publicados artigos investigando as pinturas feitas por Clarice Lispector. Mas é importante lembrar que, para ela, a pintura nunca foi uma carreira paralela. Ela nunca teve o intuito de lançar-se como artista plástica”, esclarece Ivan Hegenberg, mestre em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Clarice Lispector e as Fronteiras da Linguagem (2018). Na crônica “Temas que Morrem” (1969), da antologia A Descoberta do Mundo (1984), a autora de Laços de Família (1960), A Paixão Segundo G.H. (1964) e A Hora da Estrela (1977), entre outros, reconhece: “A verdade é que me faltou o dom para a minha verdadeira vocação: a de desenhar”. “Clarice busca com as palavras, com as quais tem maior domínio técnico, aquilo que, com as pinturas, explora de maneira mais amadorística”, arremata Hegenberg.
“Você me achou difícil de desenhar?”
Quando teve uma coluna, “Diálogos Possíveis com Clarice Lispector”, na extinta revista Manchete, entre maio de 1968 e outubro de 1969, a autora entrevistou muitos artistas plásticos, entre arquitetos, pintores e gravuristas, como Djanira (1914-1979), Iberê Camargo (1914-1994) e Carybé (1911-1997). “O que me diz da falsificação de quadros que anda por aí?”, perguntou a Carlos Scliar. “Você vive de sua arte?”, indagou a Fayga Ostrower (1920-2001). “Quando posei para você, você jogou muito papel fora. Você me achou difícil de desenhar ou simplesmente não era o dia ‘certo’?”, quis saber de Augusto Rodrigues (1913-1993).
O fascínio por artes plásticas era tanto que, no período em que se dedicou a traduzir clássicos da literatura universal, Clarice optou, coincidência ou não, por livros que traziam a palavra “retrato” no título: O Retrato de Dorian Gray (1890), do irlandês Oscar Wilde (1854-1900); O Retrato Oval (1842), do americano Edgar Allan Poe (1809-1849); e O Retrato (1934), de Mary Westmacott, pseudônimo da inglesa Agatha Christie (1890-1976).
Das 22 telas que compõem sua obra pictórica, 20 foram produzidas entre março e setembro de 1975. As exceções são Interior da Gruta, de 1960, e outra, sem título, de 1976. “Não sei se houve uma razão em especial para Clarice pintar 20 de suas 22 telas em 1975. Creio que foi um impulso criativo. Clarice era um espírito em permanente ebulição criativa”, especula Carlos Mendes de Sousa, professor de literatura brasileira da Universidade do Minho, em Portugal, e autor do livro Clarice Lispector – Pinturas. “Para as suas pinturas, ela criou um método, apresentado pela voz de Ângela Pralini, em Um Sopro de Vida: técnica de liberdade. Também na pintura, como na escrita, Clarice não está presa a modelos. Está permanentemente a experimentar.”
“Pintar é a coisa mais pura que faço”
Ao arriscar suas pinceladas, Clarice não se contentava apenas em usar tinta. Recorria a elementos para lá de insólitos, como vela, cola e caneta. Em uma de suas pinturas, Explosão, chegou a usar esmalte de unha. Além disso, não tinha o hábito de lixar a madeira. Uma de suas telas, pintada em 28 de maio de 1975, apresenta uma rachadura. “É óbvio que a pintora não se compara à ficcionista. Seu trabalho é expressivo, mas não é uma grande arte”, avalia Ricardo Iannace, doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP e autor do livro Retratos em Clarice Lispector (2009). “Sua pintura traduz a mesma força e originalidade de sua literatura. Independentemente de ser uma tela ou um livro, seu objetivo era um só: provocar estranheza e mal-estar. Na literatura, você precisa percorrer algumas páginas até se deparar com o sinistro, o grotesco, o insólito. Na pintura, não. O choque é praticamente imediato”.
A pintura não marcou presença apenas na vida de Clarice Lispector, mas em sua obra também. Ao longo de sua trajetória literária, Clarice deu vida a duas personagens pintoras: a narradora anônima de Água Viva (1973), um longo texto ficcional em forma de monólogo, e Ângela Pralini, a protagonista de Um Sopro de Vida (1978), um romance póstumo. Para muitos estudiosos, Ângela Pralini é o alterego de Clarice Lispector.
“Os quadros de Clarice, por mais expressivos que possam ser, com seu traço forte e suas cores sombrias, não vão muito além de experiências de uma amadora despretensiosa. Ela não tinha formação artística: sua técnica deixa muito a desejar. As pinceladas sugerem a ausência de um projeto, parecem inacabadas, feitas às pressas, como preparação para uma versão definitiva”, analisa Solange Ribeiro de Oliveira, doutora em letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora de Alvoroço da Criação: a Arte na Ficção de Clarice Lispector (2019). “O interesse na pintura de Clarice resulta do fato de ser obra da escritora genial. Fossem assinados por outra pessoa, seus quadros dificilmente sobreviveriam ao teste da passagem do tempo.”