por Cassiano Viana*

Marcela Bonfim nasceu em Jaú, interior de São Paulo, em 1983, mas vive há dez anos em Porto Velho, Rondônia, onde vem criando raízes e reaprendendo a viver em comunidade, à beira do Rio Madeira.

“Sempre digo que a primeira fotografia foi a cidade de Porto Velho que clicou,
assim que cheguei em 2010 e passei a circular pelo centro da cidade”, conta. 

A curiosidade que sua imagem provocava levou Marcela a se interessar pelo que associavam à sua pele: seria ela uma barbadiana? (como é chamada a diáspora negra de origem caribenha que chegou a Rondônia no início do século XX). Uma Johnson? Uma Maloney? 

Mais  tarde, a artista plástica Margot Paiva lhe questionou: "famílias tradicionais negras de Rondônia?".  

"Tá aí a primeira fotografia. Um estalo na ideia, uma grande quebra no imaginário. E tem negro aqui? A fotografia chegou até mim assim", recorda.

Com a palavra, Marcela Bonfim:

A fotografia para mim é vital! É parte essencial do meu corpo negro, sendo inclusive por onde eu sinto à flor da pele as estruturas sociais se moverem – infelizmente, na direção de uma contenção desse corpo. Sendo a imagem do negro esse encontro com seus papéis de negro na sociedade, ela chega antes de nós seres humanos. E eu hoje ocupo um pequeníssimo espaço do lado de trás da fotografia e continuo sendo grande alvo de frente, mas tendo forças necessárias para dignificar a minha própria pele. A fotografia é também essa ferramenta de (re)conhecimento, principalmente para nós negros; eu diria que uma fonte de caminhos para quem deseja se aproximar das origens. Um mapa a céu aberto! É o que temos! É o que somos! Mas é preciso consciência! Consciência de imagem! A identidade passa por aqui!

(Re)conhecendo a Amazônia Negra surgiu das relações de afeto conquistadas em Rondônia, no acesso de suas muitas histórias, costumes e influências enegrecidas, já compostas às tantas paisagens desses muitos territórios, onde a cada acesso a essas imagens e a seus conteúdos, inclusive muito próximos aos meus, uma dúvida surgia sempre no sentido de quem seria eu de fato.

O clique se tornou um movimento norteador dessa busca. Afinal, em 2010, chegou a Porto Velho uma Marcela que só queria um emprego de economista. Hoje, essa Marcela, um pouco mais consciente de sua imagem, vive Rondônia como a cura para suas próprias feridas. Foram muitos anos de embranquecimento até chegar por aqui. A cabeça pensava branco e o corpo denunciava preto! E ter essa oportunidade de (re)conhecer Rondônia me revelou as tantas e possíveis imagens existentes dentro de um corpo negro, este unificado por uma estratégia de “capital racial”.

Aqui, nesta Amazônia, ressaltam-se e apresentam-se a mim maranhenses, paraenses, amazonenses, baianos, cariocas, paulistas, mato-grossenses, barbadianos, haitianos, venezuelanos, cabo-verdense, guaporenses... Sendo esta uma terra cosmopolita, estar nela é viver, além do mundo negro, a essência indígena. Por isso, a importância de citar o Vale do Guaporé, onde rememoramos o encontro de forma muita explícita entre o negro e o índio, duas nomenclaturas cristalizadas pelo colonizador – como Rondônia e a própria Amazônia –, mas que hoje transferem, juntos, para o futuro, uma verdadeira e contínua (re)composição de imagens-identidades. 

E quem perde com a invisibilidade desse processo é o próprio Brasil, sobretudo por ainda manter a cabeça de branco num centro intocável e unilateral, discorrendo e decidindo os rumos do desenvolvimento de toda uma diversidade identitária brasileira e tendo como modelo exclusivo de beleza e sucesso um padrão ilusório, favorecedor de uma branquitude minoritária, aumentada por uma antiga e – ainda – vigente estratégia de colonização. E cabe a mim aqui em Rondônia, de um lado mais sombrio da minha própria história, ao contrário das tantas luzes de São Paulo, contar imagens de uma Amazônia enegrecida como eu. Axé!

Cassiano Viana (@vianacassiano) é editor do site About Light.

Veja também