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Vozes e violões em encontros sutis. É assim que Juliana Linhares, vocalista da banda Pietá, rememora os primeiros momentos do trio, formado com Frederico Demarca e Rafael Lorga em 2012. Próximos dos dez anos da banda, eles lançam neste ano “Perfume de araçá”, single feito em parceria com a compositora Iara Ferreira. “Com essa música, Pietá volta para quando a gente podia se encontrar e fazer um som sem plugs. Era só estar juntos e tocar”, diz.
Ao Itaú Cultural (IC) Demarca, Linhares e Lorga falam de encontros, como quando iniciaram seus passos na faculdade de teatro, e de permanências, nas aproximações sonoras e poéticas de seus álbuns, mas também de esperas por shows, viagens e abraços suados e de retornos, como o das canções que fazem e fizeram o som da banda nascer e caminhar. “E é cantar para o mundo, mas também para nós cultivarmos força para seguir em frente.”
A música sempre esteve presente na vida de vocês três? Como a banda Pietá nasceu?
De alguma forma a música sempre esteve na vida de nós três e, quando nos encontramos, isso veio à tona. Mas nosso começo foi dentro da faculdade de teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Entramos na mesma turma do curso de interpretação em 2011 e começamos a fazer cenas juntos já no início das aulas. Fomos nos afinando até que o Rafa nos convidou para fazer um som na casa dele. Já no primeiro momento, os meninos mostraram suas canções autorais e Ju foi aprendendo a cantar. Rapidamente, montamos um repertório próprio. A banda já estava começando e ninguém imaginava no que ia dar.
Qual é a história do álbum Santo sossego?
O álbum é um acúmulo de sentimentos sobre os acontecimentos políticos desde 2013 e nossa relação com a cidade. Nós nos encontrávamos para ensaiar e trabalhar, e era (e continua sendo) tanta coisa em movimento que ficou impossível não levar os assuntos para a canção, no sentido estético e conceitual. Santo sossego é uma busca pelo respiro, pelo pequeno momento de paz que anda tão distante nesta onda complexa pela qual passa a humanidade. E também se relaciona com o nome da banda, na ideia de resgatar o verdadeiro sentido do que é espiritual, também em um momento em que o fundamentalismo religioso desenvolve um projeto de poder no nosso país. “O nome é Jesus, mas quer dizer piedade.”
O que de Leve o que quiser reaparece no segundo disco de vocês?
Apesar do lirismo das cordas e dos sopros dar lugar à estética mais urbana das guitarras e synths, há muitos elementos que se preservam e se desenvolvem de Leve o que quiser para Santo sossego. Certamente, a palavra-poesia e o aprofundamento da canção são o elo mais forte entre os discos.
E como foi lançar a canção “Perfume de araçá” durante o período atual de tanto isolamento?
Foi bonito porque as pessoas se sentiram acolhidas pelo trabalho e a gente se sente mais feliz porque está no papel que viemos realizar neste mundo, né? Fazer a música chegar até as pessoas, da forma que for. Neste momento de isolamento, é ainda mais necessário esquentar o corpo, o coração, porque a solidão é enorme. E, por mais difícil que seja produzir sem tantas perspectivas de futuro, a saúde se cura no presente. A música veio como um abraço saudoso, para ativar a memória e a necessidade de seguir em frente, com desejo. Para lembrar dos nossos encontros, da dança da gente junta. Vai passar.
Aproveitando esse tema, como criar no contexto em que vivemos? Como o momento tem afetado vocês?
O momento é de incertezas, mas também de profundas transformações. Seguir em frente sem pestanejar está difícil, mas as criações nos servem de refúgio, como um espaço de desabafo e descarrego de energia. Nós estamos distantes desde o início da pandemia, nos encontramos algumas poucas vezes para fazer lives, mas sempre muito rápido e com uma demanda enorme de trabalho. Seguimos nos falando, afinando ideias para o futuro, observando e entendendo por onde caminhar. Lançamos um single que produzimos a distância. Foi bom começar este novo ano com ele. Mas o encontro presencial faz falta.
Precisamos nos olhar, mergulhar em conversas infinitas e sonhar juntos antes de sair produzindo novos trabalhos. Estamos aproveitando este momento para pensar com carinho os próximos passos. Estamos também lançando trabalhos individualmente, isso fortalece o nosso caminhar e traz novas inspirações para a banda.
Qual é a melhor forma de desanuviar estando em casa?
Respirar é sempre bom. No meio do café, durante o banho, ouvindo uma música. Inspirar e expirar com atenção e calma. Lembrar de cuidar de si, alongar as costas, comer bem, enviar mensagens a amigos, fazer música, ouvir e trocar são boas formas de aguentar o tranco deste momento.
Quais são as principais referências de vocês na vida e na música?
As pessoas que nos cercam. Os amigos e amigas, parceria de música e vida, figuras que compartilham do caminhar e da labuta com a gente. Essas são, com certeza, as nossas maiores referências. Grandes nomes da nossa música também nos inspiram e nos dão força para seguir. Posso citar Milton Nascimento e Elza Soares, esses dois seres iluminados, para não fazer uma lista gigante. As nossas referências são pessoas que sonham, em geral. Pessoas que se relacionam com o mundo e com as diferenças, que olham no olho e se colocam no lugar do outro. Essas são as pessoas que mais nos inspiram.
Temos uma coluna no site do IC na qual perguntamos aos artistas: como você se imagina amanhã? Aproveito e faço o mesmo questionamento a você, Juliana.
Eu me imagino livre, num país mais feliz. Hoje só consigo imaginar a volta aos encontros presenciais, a gente fazendo shows, viajando, abraçando as pessoas suadas de alegria e prazer. Amanhã, a banda vacinada e todas as pessoas brincantes de novo.
O que vocês esperam cantar para o mundo, bem alto, em um momento de menor aflição e sofrimento?
Neste momento de tanta aflição, o afeto e o amor são ainda mais, são armas revolucionárias. “Perfume de araçá”, nosso último lançamento, já caminha nesse sentido. E é cantar para o mundo, mas também para nós cultivarmos força para seguir em frente.
Conheça as músicas escolhidas pelos integrantes da banda. Aproveite para ouvir a playlist feita no Spotify do IC.
Frederico Demarca
“As minhas escolhas são canções de contemporâneos, porque são inspirações e de certa forma companheiras de trincheira.”
1. “Travessias”, de Ana Costa e Manu da Cuíca, no disco Voz bandeira, de Marina Iris
A Marina é uma das maiores cantoras deste país, e o seu álbum Voz bandeira reúne tantas mulheres maravilhosas e necessárias para a construção do Brasil que a gente sonha que é simplesmente inspirador.
2. “Viagem de barco”, de Manduka, interpretada por Ilessi no disco Com os pés no futuro
Ilessi e Diogo Sili cantam Manduka. Mais uma vez, Ilessi é uma das maiores cantoras do nosso Brasil e Manduka um dos maiores compositores do país e que, infelizmente, não teve seu reconhecimento em vida. Manduka é filho do grande poeta Thiago de Mello. A obra de Manduka é um tesouro ainda guardado em um baú entreaberto, que aos poucos se revela.
3. “Última tradição”, de Thiago Thiago de Mello e Pedro Ivo, no álbum Amazônia subterrânea, de Thiago Thiago de Mello
Amazônia Subterrânea é um farol.
4. “Coruja muda”, de Siba
Talvez o disco que eu tenha mais ouvido nos últimos tempos, com Siba, seu humor aguçado e olhar de minúcias nos conduzindo entre realidade e absurdos.
5. “Valhacouto”, de Douglas Germano e Aldir Blanc
Essa dupla de compositores juntos já fala por si. Aldir Blanc, um dos maiores nomes da nossa música, ao lado de Douglas Germano, que caminha no mesmo sentido a passos firmes. Sou fã do Douglas e do time todo que o acompanha.
Juliana Linhares
6. “Caxangá”, de Milton Nascimento
Foi uma das primeiras músicas que entraram no repertório logo no início da formação da banda. E se tornou referência para a minha forma de cantar, para os nossos arranjos e para as composições que trouxemos depois. Fizemos ela durante muito tempo nos shows.
7. “Zum zum”, de Edu Lobo
Fala sobre a falta de alguém que se foi e isso é tema constante na nossa vida. Foi também uma das primeiras músicas que cantamos em coro, abrindo vozes, os três, quando passávamos horas criando depois das aulas na faculdade, descobrindo nossa sonoridade juntos.
8. “Maria Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brant
Virou nossa música de Carnaval. Decidimos colocá-la no repertório do show de Carnaval e foi um acontecimento ver as pessoas na rua cantando Milton aos berros. Que alegria, que liberdade! Essa música representa bastante o que gostamos de fazer com a música na rua, nos corpos das pessoas, é um hino do Brasil, né?
9. “Com os pés no futuro”, de Manduka
Ela nos chegou através de seu irmão, Thiago Thiago de Mello, música de melodia e poesia fortes, umas das maiores referências de composição para o nosso segundo disco. Entrou para o show e, rapidamente, decidimos gravar. Lançamos em single com participação de Ilessi e é até hoje parte importante da nossa pesquisa de olhar para a música brasileira atemporal e sem fronteiras.
10. “O ronco da cuíca”, de João Bosco e Aldir Blanc
Estava nos nossos primeiros shows. Inventamos uma forma nossa de fazer essa música, com aberturas e pausas, os três cantando. Era sempre um momento forte. Acho que, a partir dessa canção, entendemos mais sobre a nossa performance em cena, ela nos deu possibilidades de improviso e o olhar poético para a política na música.
Rafael Lorga
11. "Fazenda", Nelson Ângelo
Essa música de Nelson Ângelo, gravada por Milton nos anos 1970, me conectou com o Fred [Demarca]. Estávamos juntos na Unirio, calouros no curso de artes cênicas. Eu estava com essa música na cabeça a semana toda, tinha acabado de encontrar com o compositor na rua, por acaso, e Fred me passou um dos fones e perguntou: “Conhece isso?”. Acho que esse foi um dos nascimentos da banda. Essa composição carrega com ela um tempo muito poderoso da música brasileira, ainda hoje ouço e me arrepio.
12. “Deus me proteja”, de Chico César
Essa música esteve com a gente nos primeiros shows da banda, que aconteciam no jardim da casa onde morei, em Santa Teresa, o Teatro de Véspera. Lá nos entendemos como coletivo, como família. Lembro do dia em que sugerimos o nome Pietá, ainda meio inseguros, e logo as pessoas amadas que estavam ali bateram o martelo: “Pietá! Pietá! Pietá!”. Pronto, estava batizada. Nesse dia tocamos e nos emocionamos com “Deus me proteja”, de Chico, sem saber que tempos depois ele iluminaria nosso caminho com uma participação no nosso primeiro álbum. Chico César é referência para a gente, assim como toda a sua obra.
13. “Tareco e Mariola”, de Petrúcio Amorim
Essa canção de Petrúcio Amorim cantada pela Ju [Linhares] é uma das coisas mais lindas que ouvi. Tocamos em vários lugares, na maioria das vezes sem instrumentação, só a voz.
14. “História para ninar gente grande”, samba-enredo de 2019 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira
A primeira vez que ouvi essa música foi na voz da amiga Marina Iris. Ela se apropriou desse samba de uma forma muito contundente, era impossível continuar andando, todos paravam na esquina da Cinelândia para ouvir até o fim. Eu me arrepiei várias vezes. No último Carnaval, antes da pandemia, fizemos a nossa saudosa aparição, em Santa Teresa. Era uma pequena multidão, e todos gritavam em alto e bom som “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês. Mangueira!”. Essa imagem nunca vai sair da minha memória.
15. “Mulher do fim do mundo”, de Elza Soares
Essa canção, que dá nome ao álbum de Elza Soares, chegou para mim como um choque estético e uma novidade quente. O álbum inteiro funciona. A sonoridade, os arranjos, o repertório, a visualidade e a voz da Elza nesse trabalho formam uma combinação poderosa. Acredito que tenha influenciado muita gente, eu sou uma dessas. E acredito que ele tenha sido um dos trabalhos que nos inspirou durante a criação de Santo sossego.