por Milena Buarque Lopes Bandeira

 

No centro da sala, uma poltrona esverdeada coberta de um tecido de lycra. Nela, aos poucos, algo parece tomar consciência da forma. Toca, amplia, puxa, estica. Até que, como em Ovo (1967), cubo de madeira de Lygia Pape, um corpo irrompe, rasga-se da configuração objectual e se faz apresentar. Em Sem Título (2019), obra de autoria de Rafael Bqueer, a objetificação institucional – e social – de pessoas pretas e indígenas está colocada. “Nós ainda somos objetificados, ainda somos colocados como figuras exóticas dentro do espaço institucional. Então rasgar esse tecido e sair desse lugar do objeto é sobre desobjetificar, sair dessa figura”, explica.

Com graduação em artes visuais pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Bqueer desenvolveu Sem Título durante um curso de formação para artistas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 2018. “Estudei um ano no curso. Dentro dessa pesquisa, faço um desdobramento de uma série em que eu trabalho desde 2017 [o projeto Super Zentai], onde eu cubro o corpo completamente com lycra. E esse encobrir lembra muito também aquelas roupas de heróis, como Power Rangers e Homem-Aranha”, afirma Bqueer, que é ativista LGBTQI+ e drag queen.

Como qualquer pessoa que tenha crescido na década de 1990, o artista apresenta como referências a cultura pop, a internet, o cinema, as histórias em quadrinhos, a televisão, influências contemporâneas ainda pouco legitimadas pelas instituições tradicionais, além da cultura drag. Transitando entre diferentes formatos, Bqueer busca questões e limites entre performance e escultura na criação de elementos híbridos.

Durante os 30 minutos de ação, Bqueer vai progressivamente expondo movimentos e forçando o tecido da poltrona que o prende. Em um contexto de isolamento e distanciamento sociais, demandados pela pandemia de covid-19, a obra reveste-se de outras leituras possíveis, indo além de metáforas sobre objetificação e manifestando o desejo de sair de um estado de enclausuramento extremo.

Sem Título, de Rafael Bqueer (imagem: Divulgação)

“Este trabalho foi feito no início de 2019 e neste atual contexto se ressignifica completamente. Porque como ele está tratando de um objeto de casa, que é uma poltrona, diretamente a gente aponta para essa vivência que tivemos de enclausuramento. Fiquei quatro meses dentro da minha casa, com a minha família, sem poder sair. E ao mesmo tempo passando por ansiedades e por uma série de questões. O vídeo causa um espelhamento, porque você estar preso ao objeto é como a sensação de estar preso dentro de casa, estar preso a essa obrigação de não poder sair”, diz.

Na visão de Bqueer, a obra, como trabalho vivo e sujeito à percepção e recepção do outro, tem tudo a ver com esta relação que estamos vivendo no mundo contemporâneo. De Salvador (BA), em meio a uma residência artística, o artista aceitou conversar com o Itaú Cultural (IC) sobre arte, referências, vivências e anseios.

Rafael, como se deu seu caminho até a graduação em artes visuais? Sempre gostou de arte?

Inicio a minha prática com arte e cultura na cidade de Belém do Pará, na Amazônia, dentro da cultura popular. Começo aos 16 anos como figurinista de escolas de samba e blocos carnavalescos da cidade. Essa experiência me leva a outras práticas da cultura popular, como, por exemplo, ao São João e ao Auto do Círio.

Então toda a minha imersão se deu junto às periferias, junto ao entendimento da luta política nas periferias da cidade, das pessoas pretas e indígenas por uma luta ancestral de resistência da cultura popular como uma cultura que sempre foi subjugada e subalternizada pela academia.

Essa origem é muito importante e ela se reflete no meu trabalho atual, que é um trabalho decolonial, de repensar práticas afirmativas, corpos periféricos, corpos dissidentes, revendo ou até mesmo destruindo a visão eurocêntrica imposta para nós sobre arte. Essa vivência com o Carnaval me faz pensar e cogitar a fazer o curso de artes visuais, na Universidade Federal do Pará, e dentro dele eu começo a estudar fotografia, performance e entender melhor o que era a arte contemporânea.

Eu venho de uma família muito simples e, infelizmente, a minha vivência com museu sempre foi muito pouca ou quase nada. É dentro da universidade que vou entender o que é arte contemporânea e como dialogar a vivência da cultura popular com as perspectivas da história da arte europeia.

Quais são suas principais fontes de inspiração em seu processo criativo?

As minhas inspirações são as vivências com o Brasil real. Quando digo um Brasil real, falo da realidade dos povos afroameríndios urbanos, das periferias. Então o Carnaval vai ser, com certeza, uma referência para mim. O funk brega e todas as expressões contemporâneas da negritude são referências para o meu trabalho. É preciso entender que as expressões contemporâneas são políticas porque o corpo negro é um corpo que vive diariamente sob a mira da polícia, do extermínio político e do colonialismo. A gente vive o extermínio e o genocídio. Nós somos o alvo: a cada 23 minutos o corpo negro morre no Brasil. Tudo o que a periferia produz é político nesse sentido. Porque é sobre resistir e existir mesmo diante das mazelas.

Então toda essa intelectualidade, que faz parte desse pensamento afrocontemporâneo, está presente no meu trabalho. Minhas referências são da periferia, de artistas da Amazônia, da vivência da resistência da Cabanagem e da resistência dos povos quilombolas e indígenas. Toda a minha ancestralidade amazônica e a luta política dos meus povos são referências para o que eu faço.

Agora dentro da história da arte oficial, dentro da história da arte institucional, são: Eli Sudbrack (AVAF), um artista muito importante, multidisciplinar e que também trabalha com relações entre cenografia, figurinismo e performance; Flávio de Carvalho e Jorge Lafond, ator que fazia a Vera Verão e que transitava entre dança contemporânea, televisão e escola de samba. Ícones negros e LGBTQI+ também, sem excluir a arte da montação, que é a arte drag, porque o que eu faço é muito mais do que drag. A palavra drag carrega um sentido colonial. A montação é uma palavra mais abrasileirada, ela traz para uma realidade mais política, de você construir uma imagem que não é binária, que não é homem nem mulher.

“É dentro da universidade que vou entender o que é arte contemporânea e como dialogar a vivência da cultura popular com as perspectivas da história da arte europeia.”

Como nasceu a obra Sem Título, inscrita no edital de emergência Arte como Respiro? A performance foi apresentada pela primeira vez em 2019, certo?

Esse trabalho surge em uma pesquisa durante o curso de formação para artistas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 2018. Estudei um ano no curso. Dentro dessa pesquisa, faço um desdobramento de uma série em que eu trabalho desde 2017, onde eu cubro o corpo completamente com lycra. E esse encobrir o corpo lembra muito também aquelas roupas de heróis, como Power Rangers e Homem-Aranha. O meu trabalho também tem uma influência muito forte da internet, do cinema, dos quadrinhos, da televisão, dessas referências contemporâneas que ainda são pouco legitimadas pelas instituições. Isso se mistura também com a cultura drag.

Então a obra é um desdobramento dessa série, chamada Super Zentai. Só que aí me veio a ideia de criar uma figura híbrida, unir o corpo a uma poltrona. E nesse processo do vídeo eu vou esticando a lycra para tentar rasgá-la e poder sair desse estado de objeto.

É importante a gente atentar para os signos que o trabalho expõe. Quando é uma pessoa negra, quando é o meu corpo, rasgando esse lugar do objeto e saindo desse tecido, eu estou falando desse lugar em que muitas pessoas pretxs são objetificadxs. Ainda somos colocados como figuras exóticas dentro do espaço institucional. Então rasgar esse tecido e sair desse lugar do objeto é sobre desobjetificar, sair dessa figura do objeto.

O trabalho também traz tensionamentos para pensar perfomance e escultura. Até onde eu trabalho escultura é uma peformance. Então a gente lida também com signos da história da arte. O neoconcretismo está muito presente na minha pesquisa.

De certa forma, ela pode ser muito relacionada ao momento atual, a esta sensação de “aprisionamento” que passamos a compartilhar, não? Durante a performance, o corpo vai se libertando, aos poucos, dessa unicidade. Na sua visão, qual é a reflexão que a obra pode apresentar ou propor neste contexto em que vivemos?

Sem dúvida, o trabalho de arte é um trabalho vivo. Cada pessoa tem uma percepção a partir de sua própria vivência. Eu trabalhei durante muitos anos como arte-educadora museal e notei que cada escola, cada criança, cada adulto, cada pessoa de determinado lugar da cidade, vai ter uma leitura diferente sobre o trabalho de arte. E com o corpo à frente do vídeo, à frente da ação, tenho essa relação muito aberta sobre as leituras do trabalho.

O trabalho foi feito no início de 2019 e neste atual contexto se ressignifica completamente. Porque como ele está tratando de um objeto de casa, que é uma poltrona, diretamente a gente aponta para essa vivência que tivemos de enclausuramento. Fiquei quatro meses dentro da minha casa, com a minha família, sem poder sair. E ao mesmo tempo passando por ansiedades e por uma série de questões. O vídeo causa um espelhamento, porque você estar preso ao objeto é como a sensação de estar preso dentro de casa, estar preso a essa obrigação de não poder sair. Então como o vídeo tem uma ação de querer sair desse lugar, de respirar, digamos assim, esse trabalho espelha essa vivência recente com a quarentena, durante a pandemia. É um trabalho que eu acho que tem tudo a ver com esta relação que a gente está vivendo no contemporâneo.

“Ainda somos colocados como figuras exóticas dentro do espaço institucional. Então rasgar esse tecido e sair desse lugar do objeto é sobre desobjetificar, sair dessa figura do objeto.”

Como as medidas de isolamento e distanciamento sociais afetaram ou impactaram seu fazer artístico?

Foi um impacto muito grande para mim a questão da pandemia, porque eu sou uma artista que trabalha com o corpo, com ações, com o coletivo. E minhas ações são quase sempre em espaços públicos. Para mim foi muito difícil pensar coletividade e pensar espaços públicos de dentro de casa. Então eu comecei a pensar o meu trabalho como uma articulação realmente psicológica de pensar essa questão do tempo. O tempo como a performance, o tempo do corpo, o tempo da nossa saúde mental, o tempo que poderia se prolongar mais e mais.

Muitas das vezes não sei quando a ação termina em meu trabalho. Algumas performances levam horas. E eu não me preocupo muitas das vezes com esse tempo, porque lidar com o esgotamento do corpo faz parte da pesquisa em perfomance.

Olhar o tempo como performance, neste momento da quarentena, foi um exercício mental e psicológico que eu fiz para conter a minha ansiedade. Foi um momento muito grande de leitura e de escrita. Levei muito tempo lendo e escrevendo, ressignificando essa minha prática artística para o texto.

“O trabalho de arte é um trabalho vivo. Cada pessoa tem uma percepção a partir de sua própria vivência” (imagem: Divulgação)

Nota: A matéria respeitou e manteve os artigos utilizados no discurso do artista.

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