Nos 80 anos de Ney Matogrosso, Joel Pizzini brinca: “ele é ‘ineysgotável’”
por William Nunes de Santana
Ney Matogrosso, artista brasileiro – como ele mesmo se define –, completa 80 anos neste 1º de agosto. Recluso durante a pandemia – mas sem esgotar as suas novidades, Ney lança hoje o EP Nu com a minha música, pouco depois da chegada do livro Ney Matogrosso: a biografia, escrita por Julio Maria –, não é fácil conseguir uma entrevista com o cantor. Assim, recorro a quem o conhece bem. “Ele é aquele que está andando, mas está ouvindo e percebendo, atento a tudo. Atento aos sinais”, aponta o cineasta Joel Pizzini.
Com um material bruto de mais de 500 horas em mãos, Pizzini dirigiu Olho nu (2013), documentário que se propõe a olhar Ney Matogrosso para além de sua biografia, revelando sua figura quase mitológica: um ator político e social, um camaleão que se transforma no palco ou na natureza. “Ney é um signo muito poderoso. Quando você está no interior, sempre se espelha em figuras que saíram de lá, que nos fazem pensar que é possível sonhar, realizar e atravessar fronteiras.”
Além de Olho nu, Ney também está no elenco de Caramujo-flor (1988), curta de estreia de Pizzini. A história dos dois, no entanto, começa alguns anos antes. “Eu tenho uma foto de quando estava estudando jornalismo, na Universidade Federal do Paraná, fazendo uma entrevista com o Ney quando ele fez um show chamado Mato Grosso, nos anos 1980. É uma foto quase 3x4, pequena. Ali eu já tinha, claro, uma história com ele, pois também sou do Mato Grosso do Sul”, revela.
Nesta conversa, Joel fala sobre Ney Matogrosso de um jeito que só alguém que conviveu com ele, e o filmou, poderia falar.
A ideia de fazer um filme veio do próprio Ney Matogrosso. Como chegou em você?
Acho que o Olho nu é resultante também do meu primeiro filme, o Caramujo-flor, de 1988, que foi um filme que o Ney abraçou. Eu não tinha feito nada até então. Apresentei o projeto de arte para ele sobre Manoel de Barros no anonimato e ele ficou muito siderado com a poesia e quis fazer de qualquer maneira. Só que na época ele estava com uma série de turnês e sempre adiava, até um momento em que ele cancelou uma excursão na Europa para participar.
A minha utopia era reunir os grandes intérpretes da alma sul-mato-grossense – Ney, Rubens Correa, Aracy Balabanian, Almir Sater, Pepê – e isso foi um acontecimento, porque a gente tinha de se mobilizar para fazer um filme que traduzisse toda aquela dimensão cultural da região.
Em Caramujo-flor filmei muito mais do que precisava, e por isso acho que o Olho nu começou a ser realizado lá atrás. O Ney estava no auge da sua performance e a gente estava no Pantanal filmando tudo. Ele tinha uma comunhão absurda com a natureza, muita coisa foi composta ali no ato. Era um curta-metragem que resultou em algumas dezenas de latas com películas. O Ney ficou inconformado dizendo “a gente filmou tanto, cadê aquele material?”.
Guardei tudo aquilo até que surgiu um convite, que nasceu de uma conversa do Ney com Paulo Mendonça, então diretor do Canal Brasil. O Paulo é um dos letristas dos Secos & Molhados, muito amigo do Ney e, numa conversa entre eles, Ney comentou que tinha todo o acervo da sua trajetória na própria casa. A casa era uma verdadeira cinemateca! Ele ia dar uma entrevista e pedia uma cópia, foi acumulando tudo em VHS e super-8. As emissoras de televisão às vezes até apagavam esse material.
O Ney me indicou para ser diretor do filme. A primeira pergunta que ele me fez depois do convite formalizado – que só confirmou um desejo que havia em mim – foi sobre o material que não entrou em Caramujo-flor. Eu utilizei na íntegra todas as chamadas “sobras” do Caramujo em Olho nu. Finalmente um uso condizente para aquelas filmagens.
A princípio a ideia era fazer um especial para a TV, não era um filme propriamente dito, mas o Ney insistiu em um longa-metragem. Assim surgiu o convite para a Paloma Rocha, e através da produtora dela fizemos em parceria com o Canal Brasil.
O que tinha nesse material de acervo do Ney?
Eram 500 horas de material, nunca trabalhei em um universo tão grande de material bruto. E tudo muito precioso, shows inteiros, participação no Festival de Montreux, na Suíça. Tanto que quando começamos a telecinar, optamos por ter dois montadores trabalhando em paralelo, diante da diversidade de filmagens existentes, para concatenar os núcleos temáticos do filme.
O Ney tem essa consciência sobre a importância histórica do próprio trabalho, ele investiu na memória, preservou esse vasto material – até hoje tenho o bruto guardado para outros desdobramentos. Eu brinco que o Ney é “ineysgotável”, dá para fazer centenas de filmes com muitos vieses.
Se você for acompanhar o pensamento dele desde o início, é sempre essa visão extrema e intimamente ligada à natureza. Ele é um intérprete, e isso é muito interessante. Olho nu mostra essa ambiguidade, porque ele é um intérprete, mas tem uma interferência criativa nas composições, a ponto de Chico Buarque dizer que ele é coautor das letras.
Ele tem uma tamanha percepção autoral, não é um intérprete técnico, dá todo um tratamento e uma apropriação para as canções. Ney é um artista completo, diretor, maquiador, iluminador, produtor – ele faz questão de participar do processo inteiro.
Em Olho nu, ele acompanhou, mas deu toda a liberdade. Era um diálogo muito criativo em que nós discutíamos questões que pudessem abarcar – e que fossem coerentes com – o universo dele.
Qual era sua relação com Ney quando o convidou a fazer Caramujo-flor?
Eu tenho uma foto de quando estava estudando jornalismo, na Universidade Federal do Paraná, fazendo uma entrevista com o Ney quando ele fez um show chamado Mato Grosso, nos anos 1980. É uma foto quase 3x4, pequena. Ali eu já tinha, claro, uma história com ele, pois também sou do Mato Grosso do Sul.
Ney é um signo muito poderoso. Quando você está no interior sempre se espelha em algumas figuras – Ney Matogrosso, [as atrizes] Glauce Rocha e Aracy Balabanian – que saíram de lá e construíram uma trajetória nacional e internacional, que nos fazem pensar que é possível sonhar, realizar e atravessar fronteiras.
Ele sempre foi uma figura interessante, seja corporalmente com os figurinos seja pela ascendência indígena – sua bisavó era indígena. Mesmo que não tivesse um repertório diretamente ligado à região, a relação dele com a gênesis e com a cena de origem é muito marcante na sua própria figura. Quando ele canta Um índio, do Caetano Veloso, está se remetendo – e com o tempo ele foi se aproximando mais – à época de Bela Vista [cidade onde o artista nasceu, em Mato Grosso do Sul], da relação conflituosa com o pai e sua orientação sexual. Essa intolerância que existe no interior causou uma relação tensa com a família, principalmente com o pai.
E como foi levá-lo de volta às origens?
Ele se afastou um pouco, mas foi reatando com o tempo. Essa relação está muito presente atualmente nas parcerias dele com a Alzira Espíndola, que também é de Mato Grosso do Sul. Ele foi se reaproximando pois já estava nele, já estava incorporado na figura, na sua alma.
Em Olho nu fiz essa escolha de levá-lo para Bela Vista para ele evocar esse imaginário desde a infância, em que relata o primeiro contato com a natureza e o rio, a forma como já se expressava, a nudez, a liberdade – ele conta que os bichos tinham muita liberdade, por exemplo. E, claro, na condição de uma pessoa também ligada ao Mato Grosso do Sul, eu enfatizei isso.
Até me lembro que o Ney, quando propus ir para Bela Vista, resistiu um pouco. Foi a mãe dele que disse que ainda estava tudo lá, a casa onde nasceu, a casa do avô... daí ele se convenceu a recuperar essas memórias e fazer essa reflexão, onde ele vai buscar muita coisa do seu trabalho. Não é uma relação nostálgica ou presa ao passado, é viva.
Como isso direciona o desenvolvimento do filme?
Esses signos presentes fizeram com que eu optasse por uma narrativa em que Ney é um ator político e social. Conversamos muito e ele aceitou essa ideia.
No filme, ele tinha de ser essa figura muito maior que a sua biografia. Não fazia sentido a gente fazer só uma biografia, disso o jornalismo dá conta. O importante era trabalhar Ney atravessando a história do Brasil.
Ele abriu portas para muita gente, desde a questão da liberdade sexual, a liberdade civil, a luta pela Diretas Já, todas as lutas para conscientização das pessoas na época da Aids. Lembro-me dele em Campo Grande numa reunião com pessoas com HIV positivo, apoiou causas na cidade. Nós produzimos um show dele em Campo Grande, no qual ele foi sem cobrar cachê para criar a primeira biblioteca pública na cidade. É uma figura muito ligada às causas sociais, aos movimentos ecológicos.
Olho nu traduz muito bem o título – uma figura desnudada. Ele poderia ser um pop star deslumbrado e ofuscado pela vaidade, mas não. Ele está dentro de uma estrutura da indústria cultural, mas com muita independência, com uma postura sempre crítica e autocrítica, um cara que se renova permanentemente. Até brinco que ele é um “supervivente”, não um sobrevivente.
Essa sua visão é muito interessante porque ele próprio diz que se vê primeiro como ator ao invés de cantor. E que no palco ele é um personagem. Como você enxerga essa transformação e libertação de Ney Matogrosso em cima do palco?
Ele vive uma metamorfose no palco, tanto é que quando você o conhece pessoalmente, ele é uma figura simples e pequena, que se transforma. Tem toda essa ligação com a mitologia em termos arquetípicos, que ele pesquisa bastante, cada persona dele tem um histórico dentro da iconografia. Isso é incrível. É uma pessoa que se prepara para um ritual e constrói uma narrativa que tem desde a dimensão plástica e sonora a toda uma investigação em relação ao seu próprio percurso.
Ele diz que quando gravou o disco Pescador de pérolas (1987), em que vestiu terno para fazer um show mais clássico, foi o momento em que mais se sentiu nu, porque foi quando se afirmou como intérprete e cantor. Muitos só o achavam um showman, tamanha a expressividade como performer e dançarino. As pessoas ficavam tão ligadas que não prestavam tanta atenção na dimensão vocal. Hoje ele tem essa completude, versatilidade e extensão – vários estilos como intérprete.
Nesses 80 anos, o que mais te impressiona nele enquanto artista?
Gosto muito dessa capacidade autorreflexiva que ele tem, quando questiona a Bossa Nova. Ele vai lá, canta uma música, mas diz “pera aí, eu não concordo plenamente com isso aqui, e isso aqui tem esse limite...”, ele é sempre autocrítico e reflexivo em tudo que faz. As letras que ele elege refletem a mesma ideologia. Tanto que esse último show, Bloco na rua (2019), foi extremamente político pelo repertório escolhido, às vezes mais do que por um discurso explícito.
Quando perguntaram qual era o segredo da longevidade, ele respondeu, em uma entrevista, que procura sempre sair das refeições sentido uma dose de fome, e que nunca sacia a sua fome.
Eu acho uma metáfora que tem tudo a ver com Olho nu. O filme não pode esgotar tudo, as pessoas precisam sentir vontade de ver mais. É muito curioso, porque a longevidade dele está ligada a isso de tentar não ser compulsivo, de se alimentar dentro de um regramento. Ele se cuida muito fisicamente e se considera um milagre, e é verdade! Como conseguiu atravessar um período em que teve tantos amigos e companheiros que faleceram de aids? Como ele passou por todas essas experiências?
Ele atravessa e vive tudo isso e, hoje, possui essa serenidade. Ele fala de não ser preso ao passado, porque muitos artistas encontram conforto em um lugar de sucesso, ele não. Está se renovando, grava muitos autores novos, tem a preocupação de dialogar com o seu tempo. Tanto que [essa] é uma questão estética do filme, de não cair nesse culto de ficar reverenciando o passado. Na narrativa, a gente faz com que os tempos coexistam, a história é naquele momento, aqui e agora.
Essa inquietude talvez seja o motivo que nos faz estar aqui, conversando sobre um artista que está completando 80 anos e ainda é muito necessário.
Acho interessante essa visão que ele tem de não ficar preso ao passado, não ficar refém da fama – teve lutas muito duras com gravadoras, cancelou shows –, ele faz realmente o que o desejo sinaliza, e isso é muito impressionante. Ele vai, faz, tem liberdade na escolha do repertório, tudo isso eu acho muito admirável.
E o passado dele é muito poderoso. A década de 1970 é uma coisa muito marcante e revolucionária, [teve] Secos & Molhados (1973) e o primeiro disco dele solo, Água do céu-pássaro (1975) – que ele, inclusive, acha o melhor trabalho dele até hoje. O primeiro disco solo tem arranjos do Guilherme Vaz, um grande músico experimental. O autor da capa era o Rubens Gerchman, um artista plástico. Ele fez um primeiro experimento na capa, com resina que era feita de estrume para ter cheiro da mata. Olha o cuidado estético. É uma preciosidade.
Ney é um artista muito antenado, muito bem-informado e isso é admirável, eu percebia esse rigor dele de perto, foi um grande aprendizado para mim.
Essa busca por dominar tudo o que está fazendo é uma característica forte dele?
Ele fala que não gosta de improvisar. A princípio isso me surpreendeu – como um artista tão libertário não gosta de improvisar? Aliás não gosta, não; ele não sabe. Ele diz que o improviso tem a ver com dominar aquilo que está fazendo, de se apropriar de toda a linguagem, de todo o conceito e, então, se sentir à vontade para tal.
Ele tem um rigor muito preciso, para ele é necessário ensaiar e ensaiar. Isso me faz lembrar do Manoel de Barros, que tem um poema que diz assim: “repetir, repetir até ficar diferente”. O Ney é assim. O improviso é o momento que a pessoa está tão embrenhada naquele conceito, que ela se sente à vontade para improvisar, não é uma coisa aleatória ou que nasce do acaso.
É uma visão de percepção estética muito particular e muito surpreendente por ele ser dessa geração libertária, que tem toda uma série de performers que são contemporâneos dele que improvisavam.
A gente falou um pouco sobre ele ser um personagem no palco, de não se ver como cantor, mas você acha possível desassociar o artista da pessoa ou é uma coisa só?
É uma coisa só, mas que se potencializa no palco. Ele só chega a essa metamorfose pela essência dele como pessoa. Ele fala que no Secos & Molhados usava máscara e rosto pintado, e isso dava liberdade para ele circular, mas na essência é impossível você não perceber. Ele é muito marcante, tem um olhar, uma forma, um tempo muito próprios.
Ele também fala que tem olho de cobra, um olho que não pisca. O olhar é uma coisa muito forte no seu trabalho, é muito expressivo; pode estar no palco, com aquele cenário todo, mas o olhar dele é incisivo.
Tudo isso acho que se transforma em uma coisa só, que potencializa à medida que vai dançar ou fazer coisas que não faz no cotidiano. No dia a dia ele é mais tímido, é uma pessoa da escuta. Tem uma cena de Olho nu em que ele está andando na mata e para para ouvir um sabiá. O Ney é aquele que está andando, mas está ouvindo e percebendo, atento a tudo. Atento aos sinais.
Você ainda tem contato com ele?
Ele se recolheu muito na pandemia. Aliás, é um paradoxo, fico pensando no Ney, pois ele está no lugar que mais gostaria de estar, no seu recanto na natureza, mas na época errada e a contragosto. Angustiado porque está longe do público dele.
A gente se fala muito, mas preservo esse silêncio, conversamos mais por e-mail. Temos uma troca muito grande de filmes e músicas, um diálogo permanente.