por Thiago Rosenberg

Close da sua cara assustada olhando para o céu. Corta para o céu: o céu em chamas.

Costuma ser cinematográfica a nossa ideia de fim do mundo. Seja em decorrência de desastres naturais, seja por conta de fracassos humanos – também desastres naturais, de certa forma –, o apocalipse que vemos nos nossos sonhos e pesadelos lúcidos deve muito aos filmes que abordam o tema.

Close da sua cara serena olhando para o céu. Corta para o céu: as bombas caindo lentamente, de paraquedas.

Mas o que acontece com o próprio cinema quando o fim do mundo parece virar coisa de jornal, da vida real? A pandemia de covid-19 trouxe um novo cotidiano para os nossos enredos – ou para o enredo dos que têm a chance de adaptar a sua rotina para sobreviver –, agora marcados por um vilão sem vida, invisível e capaz de tornar mais evidentes os estragos de vilões antigos no contexto brasileiro, como o racismo e a desigualdade social a ele atrelada. Nos campos específicos do consumo e da produção de cinema, o que mais se evidencia são as salas de projeção vazias e a orgia de opções de longas, curtas, franquias e séries ficcionais e documentais oferecidas pelas plataformas de streaming àqueles que têm o privilégio de poder cumprir um ato cidadão, para o bem de todos, ficando em casa. Enquanto o público das salas de projeção sente esse desequilíbrio na forma como os filmes passaram a ser vistos nos últimos meses, a produção em si das obras, de forma geral, teve de ser interrompida. E uma das perguntas que ficam é até que ponto – pensando nesse setor da cultura, considerando inclusive suas desigualdades internas – o cenário pós-pandêmico será pós-apocalíptico.

Plano geral do céu noturno. Naves espaciais vêm surgindo de longe – de muito longe. Outros planos gerais de naves flutuando sobre cartões-postais do nosso mundo: das naves saem cones de luz que iluminam e por fim desintegram a Torre Eiffel, a Casa Branca, o Borba Gato.

Não se veem cartões-postais nos filmes de Adirley Queirós. Eles se passam em Ceilândia, cidade periférica do Distrito Federal (DF) que tem praticamente a mesma idade do diretor, nascido em 1970. Ela é até alguns meses mais jovem, mas não parece. “Para as comunidades periféricas, o futuro pós-apocalíptico já é presente. Há muito tempo.” Das regiões do DF, Ceilândia é a que conta os maiores números de pessoas infectadas e de mortes em decorrência da covid-19. “A experiência de não ter acesso à UTI não é de hoje para essas comunidades, para citar um exemplo que dialoga mais profundamente com o contexto atual.”

No filme Branco Sai, Preto Fica, de 2014, Adirley explorou um caso de violência policial ocorrido na cidade em 1986. Naquele ano, dois jovens entusiastas da dança foram mostrar os seus passos, ensaiados durante toda a semana, no então tradicional baile black Quarentão, mas a noite terminou com uma batida da polícia. O título do filme foi uma das ordens gritadas pelos guardas que tomaram o estabelecimento. Os dois jovens, Marquim e Sartrana, obedeceram ao trecho que lhes cabia e ficaram no local: o primeiro perdeu a mobilidade das pernas, o segundo perdeu uma das pernas. Para os dois amigos, que encontravam na dança um respiro em meio à hecatombe cotidiana, não foi só a noite que terminou com a batida. “Todo dia alguma família da periferia encontra um fim do mundo. Seja por violência policial, seja pelo desemprego ou pelas questões da saúde pública.”

Os mundos privados, afinal, são mais suscetíveis ao apocalipse do que o mundo de fato.

Adirley fala rápido. Diz que se acostumou a se expressar assim nas rodas de conversa que reuniam uma porção de desempregados numa esquina de Ceilândia. “Eram várias histórias interessantes para contar e quem não falava rápido perdia a vez.”

“E aí tem uma utopia minha”, ele segue, voltando ao assunto central: “trocar o imaginário de quem teme o fim do mundo pelo de quem já vive ele talvez seja um jeito de impedir que o mundo acabe da forma como costuma acontecer no cinema clássico, hegemônico, no sentido de deixar de fato de existir. Porque as pessoas que já vivem o fim do mundo sabem que nem podem sonhar em partir em busca de outro. Se isso for possível um dia, a alternativa não vai valer para elas”.

No mesmo Branco Sai, Preto Fica, Adirley já apontava para o que quer dizer com essa troca de imaginários. Embora os próprios jovens do Quarentão, agora mais velhos, interpretem a si mesmos no filme – Marquim na sua cadeira de rodas, Sartrana com a sua prótese –, o trabalho é também uma ficção científica. Tem viagem no tempo e tem viajante do tempo que vem para o presente com a missão de impedir, com a ajuda de Marquim e Sartrana, que o futuro sejam dias ainda mais distópicos. Mas esses clássicos ingredientes do gênero vêm apropriados por uma estética periférica, que subverte a hegemônica: a máquina do tempo é um contêiner sem mobília e que, entre um ponto e outro da viagem, chacoalha como se passasse por uma estrada de terra esburacada; o viajante só tem as roupas do corpo, é um “fodido”, nos seus próprios termos; a trilha sonora não é do John Williams, é hip-hop e tecnobrega; e todo o resto é igualmente Ceilândia.

Para Adirley, essa transformação do imaginário envolve também uma transformação dos modelos de produção – sobretudo aqueles marcados por grandes equipes, por roteiros que passam por incontáveis mãos e aprovações. “Quatro, cinco pessoas conseguem dar uma qualidade autoral para um trabalho. Um diretor de fotografia, um técnico de som, um produtor e um diretor dão conta de fazer algo que é coletivo e ao mesmo tempo autoral. Isso sempre teve no Brasil, na verdade. Mas não é a regra. Se muita gente tomar as rédeas desse modelo, talvez seja possível quebrar uma hegemonia.”

“Mas até que ponto os artistas estão dispostos a arriscar no que diz respeito à linguagem, à estética?” Quando fala dessa nova linguagem, dessa nova estética, Adirley nem tem como defini-las. O que ele já fez por meio dos seus filmes representa um passo, mais do que um ideal. Ele fala em ir tateando – e filmando – no escuro. Com a mesma velocidade com que se expressa, ele dá um salto em direção a um futuro possível: “Quem sabe, daqui a 10 mil filmes, talvez saia um que possa representar essa eventual grande tentativa de alterar a estética”.

Plano médio de você de costas andando bem devagar por um corredor escuro. Você e o corredor só aparecem nos brevíssimos momentos em que a lâmpada prestes a queimar libera uma descarga de luz. Numa dessas descargas aparece um zumbi pouco ágil mas já bem próximo de você.

A cineasta paulista Eliza Capai (imagem: André Mantelli)

Eliza e os pontos de luz

Quando criança, Eliza Capai às vezes se imaginava num cenário de fim do mundo. Ela se lembra de se ver caminhando por uma pista de aeroporto abandonada, nenhuma gente viva ou morta por perto. Todas as pessoas haviam simplesmente desaparecido, ela não sabia como nem por quê. O mundo, no sentido de a humanidade, já tinha aparentemente acabado, e a menina vagava por entre os aviões enquanto lamentava não saber pilotá-los – que melhor forma ela teria de encontrar um lugar ainda habitado por alguém da sua espécie?

Anos mais tarde – na dimensão do real, a que não deixou de ter gente –, Eliza virou cineasta e fez filmes nos quais retratou mundos de certa forma em vias de acabar, ou que começam a dar sinais de que podem ruir. Felizmente, nesses casos. Cada mundo caindo e renascendo no seu ritmo. No Devagar Depressa dos Tempos, citando nominalmente um dos trabalhos da diretora. Para gravar o curta, Eliza foi sozinha para o município de Guaribas, no sertão do Piauí. Era 2013, dez anos após a implementação do Bolsa Família no local – Guaribas foi a cidade-piloto do programa –, e lá Eliza encontrou e filmou uma semente de mudança na forma como as mulheres da região se entendem e se colocam no mundo. E o transformam.

O primeiro depoimento do filme é de um homem, um sujeito antigo conhecido como Chefe e tido como o grande professor de Guaribas. Ele tem muita compreensão do mundo que habita: “A qualidade do homem é superior, a da mulher é inferior”, explica, e boa parte das relações na cidade ilustra a lição do “mestre”: é sobretudo para os machos do lugar – dos galos aos homens – que trabalham as mulheres. Algumas se casam aos 13 anos de idade. Muitas não dão conta de se desvencilhar de um relacionamento abusivo. Mas, na mesma comunidade, Eliza também achou uma nova geração de meninas que, agora com acesso à educação formal – uma das contrapartidas do benefício do governo –, falam sobre o futuro com perspectivas impensáveis para as suas mães ou avós. Meninas que dizem querer ser professoras, advogadas, médicas, cantoras, solteiras.

Em Espero Tua (Re)Volta, de 2019, a história é parecida, mas maior em escala. O longa documenta a participação de alunos da rede pública de ensino no embate político por uma educação digna e por outros direitos básicos, como o de ter acesso à própria cidade. Com um arco temporal que vai de 2013 – com as suas jornadas de junho e os seus desdobramentos ou descaminhos – às eleições de 2018, o filme se concentra num episódio situado entre as duas datas: a série de ocupações que secundaristas organizaram em escolas públicas do estado de São Paulo em resposta à reestruturação anunciada pelo governo em 2015, que levaria ao fechamento de dezenas de unidades e ao remanejamento de centenas de estudantes. A vitória dos jovens nessa luta específica, registrada dos pontos de vista de três deles – engajados também em outras pautas além da do ensino público, como as do combate ao racismo e ao machismo – não faz do documentário um filme de final feliz. Mas ela pulsa.

“Acho que os meus filmes têm isso de focar situações historicamente muito tristes e buscar pontos de luz ali.” Se fosse filmar agora, Eliza diz que provavelmente focaria um grupo de conhecidos seus que, com alimentos orgânicos doados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), prepara e distribui marmitas para pessoas que vivem nas ruas de São Paulo.

Falar de cinema, afinal, é falar de luz.

No fim da Segunda Guerra Mundial, alguns cineastas italianos deixaram os estúdios – que de toda forma estavam destruídos – e foram rodar os seus filmes na rua, valendo-se de iluminação natural, trabalhando com um elenco muitas vezes amador e partindo de enredos também “da rua”, da vida real, focados no cotidiano da classe trabalhadora, de pessoas desempregadas, de famílias em escombros, de ladrões de bicicleta. Eram filmes preocupados em mostrar – ainda que por meio da ficção – o mundo real que sobrou de um fim do mundo.

Quando pensa num cenário pós-pandemia, Eliza pensa em algo que tem um pouco a ver com esse movimento. Você acha que as pessoas vão ver o fim do mundo de outro jeito depois disso? “Acho que sim, sinto que vamos ver o fim do mundo de outra forma, e que também vamos, sobretudo, ter uma vontade maior de ver o mundo. Muitos dos que fazem filmes estão agora dentro de casa, e isso pode impulsionar o desejo de ver e entender o outro. E entender também o que foi destruído da nossa capacidade de sonhar o futuro e o que resta disso.”

Plano-sequência da menina vagando pela pista de aeroporto abandonada. Um foco de luz brilha dentro de um dos aviões. A menina vai até lá e olha para dentro. Close do rosto dela tentando entender o que é aquilo. Corta para os créditos.

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