por Heloísa Iaconis

“Para mim, uma boa história é aquela que chega na hora certa, aquela que tem a melhor metáfora para o momento.” Assim Kelly Orasi define o seu material de trabalho e de vida, o tal enredo que bem se ajusta ao tempo em que é narrado. Atriz e contadora de causos, Kelly tem se apresentado no Itaú Cultural (IC) há muito: em 2009, fez parte da programação em sinergia com a Ocupação Paulo Leminski (participou do espetáculo Guerra Dentro da Gente, baseado na obra homônima do autor) e, 11 anos depois, voltou ao IC em março de 2020. No espaço do Cantinho da Leitura, ela falou sobre Macunaíma, o herói de Mário de Andrade, e sobre contos em que mulheres sábias são protagonistas. Foram dois domingos de encontro com o público, até que vieram a necessidade de suspensão social e o adiamento das atividades da organização. Porém, apesar de interrompidas as contações presenciais, o compartilhamento de narrativas não para: agora com reforço do meio digital, Kelly experimenta possibilidades outras para que continue sendo o que sempre foi: uma “espalhadeira de histórias”.

Espalhadeira de histórias é a forma como a própria artista se denomina. Filha de mineiros, pai e mãe da terra dos trens, Kelly, na infância, adorava escutar as conversas dos adultos. Mas, para além das prosas alheias, era a avó Otília que a colocava no colo e, entre uma aventura aqui e ali, lhe relatava a viagem do avô Demétrio: na Itália, em uma época anterior à Primeira Guerra Mundial, ele foi trocado pelos pais biológicos por um par de sapatos. Essa situação, contudo, fez com que a nova família cuidasse dele com carinho e o trouxesse para o Brasil logo que o conflito maior estourou. “A partir de uma tragédia, esse garoto conheceu laços de verdade. Essa trama, a minha preferida daquelas ditas por minha avó, tanto me marcou que a transformei em livro: A História que Atravessou o Oceano, publicado de modo independente em 2015”, salienta a atriz.

Kelly Orasi | foto: Sattva Orasi

Os ouvidos disponíveis para descobrir percursos como o de seu avô acompanharam a meninice de Kelly e, na adolescência, levaram-na para o teatro. “Mesmo antes de assistir a uma peça, eu escrevia textos e reunia amigos da escola para realizarmos montagens”, recorda. Mais tarde, tornou-se aluna dos palcos e percebeu que as artes cênicas acabavam por conduzi-la em direção à literatura. “Quando o livro me toca, tenho vontade de dramatizá-lo”, resume a artista. Então, compreendendo que o seu prazer reside na dramatização da leitura, saiu à caça de Shakespeare, Ibsen e Tchekhov, e até Miguel de Cervantes não ficou de lado: em uma adaptação do Núcleo de Teatro Trecos e Cacarecos (fundado, em 1993, por Kelly e Lilian Guerra), Dom Quixote e Sancho Pança viraram amigos de várias crianças.

Como profissional da interpretação, Kelly Orasi já atuou em espetáculos infantojuvenis e adultos e, por isso, entende que o desafio de se entregar à ficção é mais complicado para os crescidos. “O que noto, ao fazer um trabalho para espectadores mirins, é que estou diante de uma plateia completamente desarmada, predisposta a jogar comigo. Se eu tiver um jogo claro, inteligente e respeitoso, eles estarão abertos e será lindo. Os adultos, por sua vez, carregam as armaduras que a vida lhes deu, as quais são mais difíceis de ser rompidas”, ressalta a contadora. Existem, no entanto, circunstâncias em que corações calejados se desembrulham: em uma peça infantojuvenil, por exemplo, os mais velhos, achando que exercem apenas o papel de acompanhantes dos mais novos, baixam a guarda e entram no sonho. Acontece, enfim, a reunião de “infâncias de todas as idades”, expressão utilizada por Kelly com o intuito de designar a entrega total à fantasia.

A narração de histórias colabora bastante para que a artista consiga desnudar a si mesma: sem uma quarta parede ou qualquer outro tipo de distanciamento, ela, nesse caso, se expõe inteira para os que se interessam por seus enredos. Também pesquisadora acerca do teatro de objetos (segmento surgido do teatro de animação), Kelly enxerga uma semelhança entre a comunhão com histórias e a união do ator ao objeto: em ambos os contextos, estão presentes memórias afetivas e a proposta do desarmamento do indivíduo.

Kelly Orasi | foto: Sattva Orasi

O convite ao encantamento das narrativas destina-se, enfim, a todos: gente pequena, gente grande; gente que faz a cena, gente que vê a cena; gente que conta causos, gente que ouve causos. Todos. Em um período de afastamento social, esse chamamento fortalece raízes nas páginas da literatura e da internet. Tendo o desejo de preencher os dias em casa com tramas instigantes, Kelly dá sugestões de títulos para que sejam lidos com as crianças: Vazio (2018), da espanhola Anna Llenas; Contos de Enganar a Morte (2003) e O Livro dos Pontos de Vista (2006), de Ricardo Azevedo; Drufs (2016), de Eva Furnari; fora clássicos como O Mágico de Oz (1900), do norte-americano L. Frank Baum, e O Livro da Selva (1894), em que o britânico Rudyard Kipling traz o personagem Mogli. E, para os leitores maduros, as dicas são: Mulheres que Correm com os Lobos (1992), da inglesa Clarissa Pinkola Estés, e O Violino Cigano e Outros Contos de Mulheres Sábias (2004), de Regina Machado. No universo virtual, Kelly amplia essa troca de relatos a cada semana: às sextas-feiras, às 17 horas, ela proseia com contadores de cantos diferentes do Brasil e transmite esses bate-papos em seu Instagram (@conteboashistorias).

Seja a trajetória do avô ou a peregrinação quixotesca, seja atuando ou narrando, seja no palco ou em lives, seja com livros ou demais objetos, Kelly Orasi não abre mão de uma bandeira: enredar-se na imaginação é coisa essencial para a subjetividade humana. Quem sabe não seja esta a hora certa para desvendar uma boa história?

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