por Juliana Ribeiro

 

A historiadora Silvana Jeha se deparou com a história impactante de Aurora Cursino dos Santos (1896-1959) ao ler uma crítica da jornalista Patrícia Galvão, escrita em 1950, que falava sobre obras de pacientes do Hospital Psiquiátrico de Juquery, na Grande São Paulo. 

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Jeha fazia um pós-doutorado sobre sexualidade feminina no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) quando decidiu estudar a artista, que foi prostituta e viveu em albergues até ser internada, aos 48 anos, num complexo psiquiátrico, onde fez da pintura seu refúgio. “Já pesquisava sobre prostituição antes, mas jamais achei um testemunho tão contundente de uma prostituta, ainda mais artista”, afirma.

Com o psicanalista Joel Birman, a historiadora lançou o livro Aurora – memórias e delírios de uma mulher da vida, que traz dezenas de pinturas da artista que tinha como um de seus principais temas a revolta contra a opressão sofrida pelas mulheres. As cenas de família, a violência na prostituição, os abusos na infância e a maternidade interrompida retratados em suas obras são intercalados com textos que, com base em arquivos, jornais e escritos de Cursino, fazem conexões com os fatos ocorridos ao longo de sua vida.

Aurora, que morreu com 63 anos, chegou a pintar mais de 200 quadros, hoje reconhecidos como um verdadeiro tesouro e já exibidos em mostras no Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Bienal de São Paulo e na Bienal de Berlim, na Alemanha. Atualmente, quatro obras da pintora estão expostas na mostra Bispo do Rosario – eu vim: aparição, impregnação e impacto, no Itaú Cultural (IC).

Os dois artistas, inclusive, apresentam alguns pontos em comum, como as criações artísticas enquanto estavam internados em hospitais psiquiátricos. Jeha conta que, na verdade, pretendia lançar um livro sobre ambos, mas acabou mudando de ideia. “Devo dizer que, ao mesmo tempo que comecei a pesquisar sobre Aurora, comecei a escrever sobre Bispo do Rosario. Porque ele era marinheiro e ela prostituta, meus dois grandes temas de estudo. Achei que daria para fazer um livro que se chamasse Arthur e Aurora, o marinheiro e a prostituta, mas cheguei à conclusão de que cada um merecia um livro à parte”, revela.

Em entrevista ao IC, a historiadora explica o processo de criação do livro e dá mais detalhes sobre a vida e a obra dessa artista que, segundo ela, pintava uma “mistura de violência com beleza”.

Para começar, quem foi Aurora Cursino dos Santos?

Na imagem em preto e branco, Aurora Cursino dos Santos posa olhando para a frente, com os braços rentes ao corpo. Ela tem o cabelo liso e curto, na altura do pescoço, e usa um vestido. Atrás dela, aparecem alguns quadros que ela pintou.
Aurora Cursino dos Santos pintou mais de 200 quadros enquanto esteve internada no Hospital Psiquiátrico de Juquery. (imagem: Alice Brill/ Instituto Moreira Salles)

Aurora foi uma mulher nascida no interior de São Paulo, sobre quem temos informações terceirizadas. Em 2000, quando houve a grande mostra do Redescobrimento na Bienal de São Paulo, a curadoria do módulo Imagens do inconsciente deve ter acessado o seu prontuário e produziu um pequeno texto biográfico. Nesse texto, há informações a respeito dela anteriores à internação no Juquery: havia ficado três anos no hospício de Perdizes e frequentado abrigos noturnos.

Na juventude, foi obrigada a se casar, contra a vontade. Fugiu da cidade e teria começado, então, a se prostituir. Segundo a sua obra – em que há abundância de figuração e de escrita sobre família, sexualidade, prostituição, maternidade e o tratamento no Juquery –, ela realmente foi prostituta entre o Rio e São Paulo, e talvez na Europa; assim como realmente nasceu em São José dos Campos e teve muitos filhos. No final da vida, infelizmente internada em hospícios, passou a ter delírios, mas nunca deixou de lembrar dessa trajetória com muita lucidez também.

Como surgiu a ideia de escrever sobre Cursino?

Foi a partir de uma crítica que Patrícia Galvão escreveu sobre os artistas do Juquery, em 1950. Fiquei fascinada com a história de Aurora na prostituição, segundo os poucos dados que havia, e decidi estudá-la num pós-doutorado que fazia sobre sexualidade feminina, supervisionado por Joel Birman no Instituto de Psicologia da UFRJ.

Como foi todo o processo de pesquisa e criação do livro?

O processo foi longo, pois não pudemos acessar seu prontuário, e logo veio a pandemia. Era preciso ler atentamente os cerca de 200 quadros de que o Museu de Arte Osório Cesar dispunha.  Aliás, é digna de nota a franca cooperação do museu durante todo o processo. Quando terminei o texto, entreguei para Joel dizendo que tinha feito um trabalho de historiadora.

Não me arrisquei a versar muito sobre loucura ou me valer da psicanálise, campo que não domino. Naquele momento, Joel perguntou se eu queria que ele fizesse essa parte. Eu adorei a ideia e acho que o resultado ficou bastante interdisciplinar, não só no campo da história e da psicanálise, mas com diálogos com a história da arte e a literatura feminista.

O que o leitor poderá encontrar no livro?

Em primeiro lugar, 78 pinturas de Aurora, tornando o livro mais dela do que nosso. O que escrevemos é mais um ensaio do que propriamente um texto acadêmico. Acho que esse encontro da minha levada narrativa com as análises muito sutis de Joel, articulando psicanálise e cultura, abre o texto para qualquer pessoa ler. E também não é um texto que apresenta respostas definitivas sobre o fazer artístico, as memórias e os delírios de Aurora. Como é uma primeira pesquisa de fôlego, acho que muitas pesquisadoras ou pesquisadores vão continuar o que começamos.

Por que é importante que as pessoas saibam quem foi essa artista?

Trazer Aurora a lume – ainda que muitas de suas obras já tenham sido expostas nos principais museus brasileiros desde 1950, como na mostra de Bispo do Rosario no IC e em Raio-que-o-parta, no Sesc 24 de Maio – continua sendo um trabalho de inclusão de artistas mulheres na história da arte e das mulheres propriamente dita. Por isso que o último capítulo do livro tem uma visada feminista. Não estava no escopo inicial, foi a arte de Aurora que nos impeliu a esse posicionamento. Ela, afinal, pinta o patriarcado, ainda que sem nomeá-lo.

Algumas obras de Aurora Cursino dos Santos, como disse, estão expostas na mostra dedicada a Arthur Bispo do Rosario no IC. A história de ambos possui algumas similaridades, não é? Poderia falar um pouco sobre esses pontos em comum?

O que eles têm em comum, de cara, é a situação de marginalidade que ameaça constantemente as ditas minorias políticas, como negros, prostitutas ou mulheres rebeldes, população LGBT e tantos outros status sociais discriminados. Esses manicômios estavam pejados de gente assim. Bispo e Aurora produziram arte nesses lugares, ainda que formalmente muito diversas: ela pintava cenas e escrevia enredos; ele bordava, escrevia e esculpia objetos, nomes e lugares. Talvez o que mais os aproxima é a memória autobiográfica muito presente nas obras. E também a curiosidade de que, pelo menos em 1935, foram moradores da Lapa, no Rio de Janeiro.

Devo dizer que, ao mesmo tempo que comecei a pesquisar sobre Aurora, comecei a escrever sobre Bispo do Rosario. Porque ele era marinheiro e ela prostituta, meus dois grandes temas de estudo. Achei que daria para fazer um livro que se chamasse Arthur e Aurora, o marinheiro e a prostituta, mas cheguei à conclusão de que cada um merecia um livro à parte. O livro sobre Bispo está bem adiantado e pretendo lançar no ano que vem. Mas certamente me vali dessa característica profundamente autobiográfica na obra dos dois para poder escrever sobre eles do ponto de vista histórico.

Por falar nisso, qual o motivo que levou a artista a ficar internada e como foi esse período da vida dela?

Segundo as informações constantes no catálogo Imagens do inconsciente, de Brasil + 500 mostra do redescobrimento, ela tentou a vida como empregada doméstica quando não pôde mais exercer a prostituição – provavelmente, por estar com mais de 40 anos de idade. Parece essa tentativa foi malograda, e ela deve ter ficado sem dinheiro, sem teto.

Primeiro, começou a dormir em albergues noturnos. Dali, ela foi enviada para o hospício de Perdizes, em 1941, e depois para o Juquery, em 1944, onde teve mais de um diagnóstico psiquiátrico. É digno de nota que o primeiro deles foi “personalidade psicopática amoral”, ou seja, um diagnóstico não propriamente médico, mas moral, como várias outras mulheres tiveram em hospícios do século XX. Ela morreu em 1959, anos após sofrer uma psicocirurgia, que chamamos comumente de lobotomia, além de muitos outros tratamentos, como choques e aprisionamentos.

O que Cursino procurava expressar por meio da arte?

Revolta. Muita revolta contra a violência que ela sofreu durante toda a vida, não só por ter sido prostituta, mas sobretudo por ser mulher. Parece que o ateliê de pintura institucionalizado no Juquery, com uma pintora do quilate de Maria Leontina como primeira coordenadora, abriu um flanco para esses gritos contidos, depois de tanto sofrimento. Na exposição do IC, ela está muito bem representada por quadros da Coleção Maria Leontina, mantida por seu filho. Um deles é o quadro sobre o qual Patrícia Galvão escreveu.

Aurora pinta cenas de família, tanto dos ascendentes quanto dos filhos que teria gerado. Pinta a prostituição, relacionada à violência de clientes, policiais e políticos; os abusos sofridos na infância por um padre; as cenas de uma maternidade interrompida, de abortos, de partos e de gravidezes; cenas do campo e urbanas... É uma obra muito rica e narrativa. 

Por fim, o que mais a impressiona nas obras de Aurora?

Acho que essa mistura de violência com beleza. É muito tocante e diz muito da condição feminina, em geral. Há algo nela que toca todas nós que já tivemos algum contato com a violência de gênero. E há, ao mesmo tempo, uma força feminina que eu não sei bem definir. Por isso, terminamos a narrativa com um quadro que lemos como uma reação a todos esses ataques: ela porta uma arma, está elevada, em meio a uma multidão de homens, soldados, mas também políticos, clérigos, policiais e outras figuras masculinas que ela traz em outros quadros. 

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