por Heloísa Iaconis

Muitos são os cantores que, em meio a uma apresentação, já receberam o mesmo pedido insistente do público: “Toca Raul!”. Zeca Baleiro decidiu pegar o grito famoso e fez dele canção, versos em que reconhece o poder de Raulzito. De tanto ser repetida, a frase tornou-se uma espécie de jargão da música brasileira, prova popular de que Raul Seixas permanece como uma luz, ainda que tenha falecido há três décadas. Obra e personalidade que, amalgamadas, formam um legado cujo cerne traz o ímpeto da surpresa, do não protocolo, da autenticidade – traço que se faz presente até seu último disco, A Panela do Diabo, parceria com Marcelo Nova, lançado dois dias antes de o Maluco Beleza em definitivo partir.

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Na manhã de 21 de agosto de 1989, na terra da garoa, a morte beija Raul, vítima de uma parada cardíaca. Findo o velório, o corpo foi levado para Salvador, cidade onde o baiano aterrissou para a vida na metade de 1945. Interessado por literatura e filosofia, o compositor uniu ao rock mensagens que perscrutam a existência humana. Por ser uma lenda, tão afastado ele parecia das pessoas comuns; por ser um artista, tão perto chegou ao que é comum às pessoas: esse misto de fascinação e espelhamento (quem nunca tentou algo outra vez? Quem não é, em alguma medida, uma metamorfose ambulante?) perdura até hoje e conquista gente que o conheceu, gente que não o conheceu, gente que o tem nos álbuns, gente que o tem há pouco.

Entre essa variedade de admiradores, existem os que elaboram projetos voltados para o cowboy fora da lei, como as sete histórias a seguir. Presidente do Raul Rock Club, Sylvio Passos conta como passou de fã anônimo a amigo próximo de Raulzito. Carlos Minuano e Jotabê Medeiros revelam o processo de feitura das biografias que realizaram – cada jornalista assina um livro a respeito do músico. Dono do selo Record Collector, Fred Cesquim fala sobre o vinil duplo, a ser divulgado em breve, que apresenta a gravação do show de Raul em Patrocínio (MG) no ano de 1974.

Na sequência, Paulinho Moska menciona a sua atuação em Merlin e Arthur, um Sonho de Liberdade, espetáculo com repertório todo “raulseixista”. Aurélio Pedro recorda a trajetória percorrida pela Cachorro Urubu, banda que se dedica a homenagear o intérprete de “Sociedade Alternativa”. Por fim, Raul Neris relembra momentos na passeata que, anualmente, sai pelas ruas paulistanas para celebrar o seu xará. Sete relatos que evidenciam a perenidade, em ouvidos e corações, do trabalho daquele que é o motivo do bordão teimoso e amável: “Toca Raul!”.

O primeiro violão de Raul Seixas | foto: Acervo do Raul Rock Club

O escolhido

Em 1959, o menino Raul Santos Seixas criou, junto com o colega Waldir Serrão, o Elvis Rock Club, turma que, além de fazer arruaça, andava com gola para cima e topete no cabelo, ao estilo do astro norte-americano. O garoto não imaginava, porém, que anos à frente o seu nome batizaria uma associação assim. Foi no 36o aniversário da estrela nordestina, em 28 de julho de 1981, que Sylvio Passos instituiu o Raul Rock Club. Então com 18 anos, Sylvio adorava o cantor desde criança, época em que mal conseguia compreender as letras, e resolveu demonstrar o seu carinho fundando o grupo. Logo depois da inauguração do fã-clube, o adolescente estava na primeira fila da plateia do antigo Teatro Pixinguinha a aplaudir Raul. Dessa data restou uma fotografia que o jovem veio a encontrar, após 20 dias, onde menos esperava: na casa do mestre.

Rua Rubi, 26, no bairro do Brooklin, em São Paulo (SP): esse é o endereço que abrigou Sylvio em todo o seu assombro. “Nunca imaginei que o meu ídolo me receberia em seu lar”, afirma com uma voz que ainda mantém a emoção menina. Por ele ter iniciado a comunidade de fãs, Raulzito não só o recepcionou em seu universo à la Salvador Dalí, como lhe deu discos e mostrou o seu gabinete, cômodo onde o admirador se reconheceu em uma das imagens postas na parede. “Não é à toa que você é o escolhido”, disse-lhe Raul. Firmou-se, desse modo, uma amizade que durou até o artista falecer.

Tido como a mascote do bando, Sylvio conviveu com um herói humanizado, com virtudes e falhas, e, diferentemente de quem recorre à idealização exacerbada de uma figura, não se decepcionou. “Descobri um homem generoso, desapegado dos bens materiais, simples, humilde. Não conheço outra pessoa que tenha uma beleza como a dele – não estética, e sim de alma”, pontua o parceiro. A estima era tamanha que ambos produziram colaborações musicais em conjunto, e do Carimbador Maluco o produtor herdou tudo: desde o pijama até o primeiro violão, instrumento do qual foram tirados acordes essenciais para o rock brasileiro. Sylvio conserva objetos e memórias, pedacinhos do ícone-amigo, do amigo-ícone.

Da ayahuasca às páginas

Antes mesmo de enveredar pelo jornalismo, Carlos Minuano gostava bastante de ler entrevistas e, entre os pingue-pongues destacados, lá estavam os diálogos de Raul Seixas com a imprensa. Carlos começou, dessa maneira, a se identificar com reflexões do músico, cuja obra vinha a ele através de fitas cassete e um vinil. O interesse mais profundo pela trajetória do compositor, todavia, nasceu de fato ao participar de uma sessão de ayahuasca, em um sítio no interior paulista: “Era fim de semana do Dia dos Pais e o dirigente optou por encerrar o trabalho com 'Ê, Meu Pai', de Raul. Fiquei tocado e pensei em como ela [a música] teria sido criada”, rememora o repórter. Tal experiência incitou o jornalista a procurar Vivi, caçula das três irmãs Seixas, e, de conversa em conversa, principiou-se um caminho de livro.

Resguardado pelas bênçãos de Vivi e Kika (ex-esposa do roqueiro), importantes para o autor, Carlos empreendeu uma pesquisa extensa, que o fez ter acesso a uma infinidade de episódios do percurso do intérprete, como uma turnê por garimpos no Pará, em 1985. “A maior dificuldade foi lidar com o volume gigantesco de informação. Tenho material, aliás, para uma segunda edição”, sinaliza o biógrafo. Enquanto uma parte dois não possui planejamento efetivo, os leitores podem desfrutar dos muitos causos que integram Raul Seixas por Trás das Canções, título publicado recentemente pela editora Best Seller. Em uma biografia pautada pela esfera musical do protagonista, é possível captar a intensidade e a entrega com que Raul viveu e criou.

A capa da biografia Raul Seixas por Trás das Canções (Best Seller) | foto: divulgação

O convite à aposta

Prevista para novembro de 2019, outra biografia acerca de Raulzito chega às livrarias: Raul Seixas: Não Diga que a Canção Está Perdida, de Jotabê Medeiros, a ser lançada pela editora Todavia. Em uma busca por ampliar visões relativas a passagens do astro, o jornalista maravilhou-se com a verve de produtor de estúdio do seu personagem, em especial a grande contribuição para o gênero apelidado de brega. O autor concentrou-se no mundo raulseixista a partir de uma pergunta de seu editor: após a conclusão de Belchior – Apenas um Rapaz Latino-Americano (2017), surgiu o pensamento de por que não se debruçar nos acontecimentos do soteropolitano afamado. “Raul era uma personalidade complementar à de Belchior, ascendera em período concomitante”, salienta o biógrafo. Sem escamotear o lado frágil do cantor, o livro expõe os multitalentos de um nome que convidou Jotabê, em sua juventude, a apostar em si próprio.
 

A força do ao vivo

Guitarra vermelha, vermelha brilhante, óculos escuros, mão levantada: na capa do LP Gita (1974), Raul Seixas encarna o que está inscrito em seu âmago: um poder total vindo da atenção extrema à música. Nas faixas do álbum, é certo, essa potência se imprime em cada nota e, quando o terreno é o ao vivo, o vigor alcança um efeito catártico. Antes da entrega do álbum ao mercado, Raul experimentou o repertório do futuro long-play em um palco da cidade mineira de Patrocínio. O registro da performance, realizada para cerca de cem felizardos, eterniza-se, agora, em formato de vinil, iniciativa aguardada para novembro deste ano. Em relação ao terceiro lançamento de sua marca Record Collector (em sinergia com o Selo 180), Fred Cesquim ressalta que, em apresentações como a focada, a paixão do Maluco Beleza pelo rock fica à flor da pele: “Você sabe que ali tem alguém fazendo algo com verdade”. Eis a força do tête-à-tête entre o ídolo e a sua audiência.

O LP Metrô Linha 743, lançamento de 2018 da Record Collector em parceria com o Selo 180 | foto: Record Collector e Selo 180

Para além dos tempos

Imagine o rei Arthur, líder britânico da era medieval, entoando frases de Raulzito ao estabelecer a Tábula Redonda? Pois é o que se sucede em Merlin e Arthur, um Sonho de Liberdade, peça que conecta a poesia do compositor à Idade Média. Com texto de Marcia Zanelato, direção de Guilherme Leme, direção musical da dupla Jules Vandystadt e Fabio Cardia e figurinos de João Pimenta, o espetáculo amarra-se por meio de 25 letras de Raul. Paulinho Moska interpreta o monarca e observa, entre a majestade e o roqueiro, semelhanças: “Os dois tinham ciência de que é preciso estar unido para lutar contra a brutalidade”, frisa. A mágica do cowboy baiano põe-se, portanto, para além dos tempos: seja hoje ou no passado tão passado, a arte de Raul Seixas translada-se com desenvoltura e ânimo.

Paulinho Moska | foto: Aderi Costa

A coragem encantadora

Na voz e na guitarra, Aurélio Pedro. No baixo, Magno de Paula. Na bateria, Marcelo Cavalo. O trio constitui a banda Cachorro Urubu, que desde 2015 toca Raul Seixas em bares da capital paulista e da área metropolitana. Aos sábados e domingos, a trinca vai ao encontro de plateias cheias de energia, testemunhos de que a riqueza artística do mestre se conserva. “Geralmente, definimos só a primeira e a última canção do show. O resto é na hora, de acordo com o que público pedir”, relata o vocalista. Essa atitude faz jus ao comportamento anárquico de Raul, que, como realça Aurélio, ousou em plena ditadura militar: rock'n'roll e baião, humor ácido e doçura, ironia e amor – tudo envolto pelo encantamento de uma coragem enorme, a maior das ousadias.

A alcunha eterna

Há 29 anos, o Centro de São Paulo vira, simultaneamente, festa e saudade: 21 de agosto é sinônimo de andar em direção à Praça da Sé cantando alto, bem alto, Raul Seixas. Trata-se de uma passeata que, devido a sua tradição, é contemplada pelo calendário oficial do município. Faz uma década que Raul Neris se junta ao coro e, salvo poucas exceções, não descumpre com o compromisso de fã. A firmeza, vale dizer, é uma característica da turma raulseixista. “Quando cantamos, as vozes reverberam nos prédios próximos, o que é impressionante”, avalia o admirador, cujo nome atesta que o afeto pelo músico se transmite de geração para geração: filho de aficionados de Raulzito, Neris ostenta na própria identidade a homenagem que é corroborada a cada ano. E sempre.

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Mulher segura retrato emoldurado de outra mulher, que tem um sorriso largo e aparenta ser dos anos 20 ou 30 do século 20. A mulher que segura o retrato imita o sorriso da fotografada.

Biancamaria Binazzi – Toca Brasil

Neste episódio do Toca Brasil, a pesquisadora Biancamaria Binazzi compartilha suas experiências nas rádios Cultura e Gazeta, assim como na Discoteca Oneyda Alvarenga