por André Bernardo

Um belo dia, a professora Amália Cristófaro surpreendeu a turma do segundo ano primário ao propor um concurso de redação. O tema, explicou a docente, seria livre. E, como prêmio, a melhor redação seria lida em voz alta. O pequeno Nelson Falcão Rodrigues, então com 8 anos, resolveu caprichar e criou uma história de adultério. Um marido chega em casa, de surpresa. Entra no quarto, vê a mulher nua na cama e o vulto de um homem pulando, sorrateiro, pela janela e sumindo na madrugada. Pega uma faca e mata a mulher. Depois, ajoelha-se e pede perdão. Os óculos de dona Amália quase lhe caíram do nariz ao ler a redação do garoto. Logo, compartilhou seu espanto com a diretora da Escola Municipal Prudente de Moraes, no bairro do Maracanã, na Zona Norte do Rio de Janeiro. “Dona Honorina leu e chamou as outras professoras. Foram em comitiva à sala de dona Amália e ficaram todas olhando para Nelson. Ele confessaria depois que, ao sentir-se tão olhado, adorou pela primeira vez ser o centro das atenções”, conta o jornalista e escritor Ruy Castro, autor da biografia O anjo pornográfico – a vida de Nelson Rodrigues (1992).

O tempo passou e Nelson cresceu. Ao longo de 55 anos de jornalismo, o garoto que começou aos 13 como repórter no jornal do pai escreveu 17 peças, 9 romances – 6 sob o pseudônimo de Suzana Flag – e 3 telenovelas. Isso sem falar nos milhares de crônicas e contos que publicou em jornais e revistas. Pelos cálculos de Ruy, são 2 mil contos de A vida como ela é para o jornal Última Hora e 5 mil crônicas de À sombra das chuteiras imortais para O Globo. “O volume de sua produção”, admite o biógrafo, “é quase impossível de quantificar”. Quarenta anos depois de sua morte, Nelson Rodrigues (1912-1980) continua a ser o centro das atenções. Um de seus textos mais ousados e provocadores, Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados, acaba de ser relançado, 61 anos depois, pela Harper Collins. Da primeira à 512ª página, o dramaturgo pernambucano enfileira “três defloramentos, uma mutilação genital, dois suicídios, uma curra, um assassinato, agressões lésbicas, dois exames ginecológicos e incontáveis adultérios”, como listou Castro em seu livro. 

Publicado originalmente como folhetim em 112 capítulos, entre agosto de 1959 e fevereiro de 1960, nas páginas do jornal Última Hora, Asfalto selvagem foi lançado como romance, em dois volumes, em 1960. “A edição, de inacreditáveis 50 mil exemplares, se esgotou em pouco tempo. José Ozon, seu editor, disse que Nelson poderia comprar uma cobertura com o dinheiro”, relata Adriana Armony, doutora em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do texto de apresentação de Asfalto selvagem. O romance, descrito por Adriana como “uma mescla exuberante de trágico e cômico”, é dividido em duas partes: a primeira conta a história de Engraçadinha dos 12 aos 18 anos, em Vitória (ES); e a segunda, a partir dos 30, já no subúrbio do Rio. O autor chegou a cogitar uma terceira parte, que narraria a morte da protagonista, mas desistiu do projeto. “Trabalho mais que remador de Ben-Hur”, alegou Nelson, referindo-se ao filme estrelado por Charlton Heston, lançado em 1959. 

O “personagem mais erótico da literatura brasileira”, nas palavras de Ruy Castro, já inspirou três filmes – Asfalto selvagem (1964) e Engraçadinha depois dos 30 (1966), ambos de J. B. Tanko (1906-1993), e Engraçadinha (1981), de Haroldo Marinho Barbosa (1944-2013) – e uma minissérie, Engraçadinha, seus amores e seus pecados (1995), adaptada por Leopoldo Serran (1942-2008). A ideia de transpor Nelson para a TV partiu do diretor Carlos Manga (1928-2015) e, à época, causou apreensão em José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. 

“Não dá, Manga, Nelson Rodrigues não dá! Ou vai ficar mutilado ou vamos ter problemas”, respondeu o executivo. “Eu garanto, Boni! Faço forte, mas dentro de limites. Cada cena que eu tiver receio, trago para você ver”, tranquilizou o diretor. A minissérie, protagonizada por Alessandra Negrini na primeira fase e por Cláudia Raia na segunda, já foi reprisada duas vezes na TV Globo (em 1998 e em 2002) e três no Canal Viva (em 2010, em 2012 e em 2020). Mesmo assim, Denise Saraceni acredita que chegou a hora de revisitar Engraçadinha pela quinta vez. “É muito difícil adaptar Nelson para os dias atuais. Corremos o risco de ser perseguidos. Até o elenco poderia ser ameaçado de morte. Mas estamos precisando desmascarar hipocrisias”, afirma a diretora. 

Machismo ou provocação?

Se os romances de Nelson Rodrigues ganharam nova casa editorial, suas peças, crônicas e contos continuam sendo publicados pela Nova Fronteira. No ano passado, a editora lançou Só os profetas enxergam o óbvio, antologia com frases inesquecíveis de Nelson Rodrigues. “O brasileiro é um feriado”, “O dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro” e “Toda unanimidade é burra”, entre outras tantas, estão lá. Uma das mais controversas, “Nem todas as mulheres gostam de apanhar. Só as normais”, ficou de fora. “Nelson tinha o gosto da polêmica e foi muito perseguido, é claro, por essa frase que, ainda bem, nunca passou de uma frase de efeito. Ao que tudo indica, foi dita pela primeira vez numa entrevista de rádio, por volta de 1950, e causou tanto furor que ele resolveu polemizar mais. Há centenas de frases assim em sua obra, essa talvez tenha chamado mais atenção por ser hiperbolicamente absurda. Quem conhece suas tragédias sabe que ele era um provocador”, explica o crítico literário André Seffin, responsável por garimpar os aforismos do livro. 

Quase toda sua obra teatral – de A mulher sem pecado (1941) a A serpente (1978) – já foi contada e recontada nas telas de cinema. O número de adaptações, estima-se, gira em torno de 30. Alguns dos mais importantes cineastas brasileiros, como Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), Leon Hirszman (1937-1987) e Neville D'Almeida, já adaptaram algumas de suas obras-primas, como Boca de ouro (1962), A falecida (1965) e Os sete gatinhos (1980), respectivamente. O favorito de Nelson, entrega Sônia Rodrigues, sua filha, era Toda nudez será castigada (1973), de Arnaldo Jabor. “É o melhor porque os diálogos são meus...”, explicou o dramaturgo, em certa ocasião. “Meu pai gostava de visitar os sets, dar palpite na produção, bater papo com os atores”, afirma a escritora, roteirista e organizadora do livro Nelson Rodrigues por ele mesmo (2012). “O mais divertido é quando ele elogiava e criticava a mesma adaptação. No fundo, não se conformava muito com o que faziam com sua obra.” 

Certa vez, Nelson pegou o telefone e ligou para a atriz Lucélia Santos, às 2 horas da manhã, para lhe desejar boa sorte. “Você poderia ser costureira, bancária ou professora. Mas escolheu ser atriz. Então, pule do trampolim, de cabeça e com venda nos olhos. Caso contrário, não valerá a pena”, e desligou o aparelho. Naquele dia, Lucélia filmaria uma das cenas mais difíceis de Bonitinha, mas ordinária (1981), de Braz Chediak: a do estupro coletivo de Maria Cecília. “A alma humana é a matéria-prima da obra do vovô. É por essa razão que seus filmes e suas peças fazem sucesso até hoje, independentemente dos países onde são exibidos ou encenados. Sua linguagem é universal”, orgulha-se o ator e produtor Nelson Vinícius Odenbreit Rodrigues, o Sacha Rodrigues, neto de Nelson e filho de Joffre Rodrigues (1941-2010). 

Trilogia rodrigueana

A mais recente versão de uma das peças de Nelson Rodrigues foi Boca de ouro (2020), dirigida por Daniel Filho. Depois de Jece Valadão (1930-2006), em 1963, e de Tarcísio Meira, em 1990, o temido bicheiro da dentadura dourada foi interpretado por Marcos Palmeira. “O que mais me atrai na obra do Nelson? É praticamente tudo: suas tramas, seus diálogos, seus personagens, sua humanidade e sua brasilidade”, enumera o roteirista Euclydes Marinho, autor do filme Beijo na boca (1982), da minissérie Meu destino é pecar (1984) e do seriado A vida como ela é... (1996), todos baseados na obra de Nelson. Euclydes tinha 18 anos quando fez estágio de fotografia no jornal O Globo e teve a rara oportunidade de conhecer seu ídolo de perto. “Na redação, eu o via todos os dias. Mas era muito tímido e, apesar de já ser leitor de suas crônicas, nunca me aproximei. Algumas vezes, dividimos o mictório do banheiro masculino”, recorda o escritor que já colocou o ponto-final em uma nova versão do clássico Toda nudez será castigada (1965). 

Em breve, a extensa produção literária do “anjo pornográfico” – como ele mesmo se autointitulou, em outubro de 1966, numa entrevista para a extinta revista Manchete – deve ganhar mais uma releitura: a atriz e produtora estadunidense Viola Davis comprou os direitos de Beijo no asfalto (1960) e pretende adaptá-la para o teatro e o cinema. A peça é baseada numa história real. Nos anos 1950, um repórter atravessa o Largo da Carioca, no Centro do Rio, e é atropelado por um ônibus – ou “lotação”, como se dizia naquela época. À beira da morte, suplica à moça que tenta socorrê-lo um último desejo: um beijo na boca. Quando a atriz Fernanda Montenegro, da companhia Teatro dos Sete, pediu a Nelson que escrevesse uma peça para ela, o dramaturgo pernambucano não titubeou: lembrou-se da história contada por um amigo, fez alguns ajustes e, em apenas 21 dias, a transformou em uma tragédia em três atos. 

Beijo no asfalto já ganhou, só no cinema, três versões: a primeira, de Flávio Tambelini, em 1964; a segunda, de Bruno Barreto, em 1980; e a mais recente, de Murilo Benício, em 2018. “Se fosse americano, Nelson Rodrigues estaria, provavelmente, dirigindo seus próprios filmes. Mas se não fosse brasileiro talvez sua obra não fosse tão rica”, especula Sônia Rodrigues. Outro projeto que deve sair do papel e ganhar as telas de cinema é a adaptação de O anjo pornográfico, de Ruy Castro. Se tudo der certo, o filme será roteirizado por Nelson Motta, dirigido por Mauro Mendonça Filho e protagonizado por Alexandre Nero. “A história da família Rodrigues é tão contundente quanto à de O poderoso chefão. Se eu ganhasse na loteria, faria não um, mas três filmes, de duas horas e meia cada um. História é o que não falta!”, garante Sacha. Alguém duvida?

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