por Naine Terena

 

Este texto se encerra onde tudo começou: no corpo daquelas que enfrentam diariamente questões que machucam sua alma. Acredito que, quando comecei a coluna Oráculo, muitas pessoas ansiavam que os textos focassem a arte indígena contemporânea ou questões do audiovisual indígena, temáticas em que atuo por algum tempo. Porém, os corpos que produzem tais ações precisam antes de tudo ser vistos.

Neste último texto, eu me situo no lugar do encontro, o lugar onde os corpos oprimidos se encontram. Por vezes exercemos o lugar de fala com muito afinco, aproveitando toda e qualquer oportunidade para denunciar, expressar, citar, propor que olhares sejam lançados à nossa situação subalternizada. Porém, mais do que exercer o lugar de fala, precisamos nos colocar no lugar da escuta. E nos últimos dias fui tomada por esse lugar, diante do que o universo virtual me apresentou como demandas de corpos que “'estão flutuando no não lugar do fazer cultural, no não lugar da vida cotidiana”. Fui tomada pela necessidade de entender diferentes situações e posicionamentos que me afetaram.

Em silêncio, sem comentários ou intervenções, ocupo aqui o lugar da escuta. À escuta de Dandara Kuntê e Lorena Saavedra, que questionam: qual o lugar do corpo preto, gordo, intelectual, artístico? Silêncio...

Dandara Kuntê é uma mulher negra, jovem. Está com o cabelo preso no formato de um coque. Usa um brinco vermelho, em formato de bola. Está sorrindo para a foto, usa aparelho, e olha diretamente para a câmera.
Dandara Kuntê (imagem: divulgação)

Eu sou Dandara Kuntê!

Antes da pandemia, eu participava de uma companhia, em São Paulo, que falava sobre as mulheres pretas e gordas no espaço da dança, sobre gordofobia ou não gordofobia nos espaços de dança – o quanto é perverso e o quanto as pessoas não aceitam isso. Os questionamentos eram muitos: “Um monte de mulher preta, gorda, periférica, o que elas querem com isso? O que querem nesses espaços culturais, nesses espaços de arte?”.

Eu saí, mas sempre quis fazer um trabalho individual. Estou no universo da arte desde criança, trabalhando no coletivo. Decidi que precisava trazer algo solo, algo meu. Explorar a corporeidade que tenho, corporeidade de 120 quilos, uma pele bem escura e trazendo essas questões periféricas que perpassam meu corpo em diáspora, em trânsito... Hoje, em tempo de pandemia, eu não consigo nem trabalho.

Quando saí da companhia, decidi mesmo ter um trabalho próprio, e aí vieram a pandemia e várias crises. Como vou fazer esse trabalho? Como vou dizer que sou Dandara Kuntê? Eu era Dandara Kuntê porque eu participava dessa companhia. Mas, quando você sai da coletividade, quem é você nos espaços culturais? Acho que esse não lugar é sobre isso também. Quando você sai do coletivo e começa seus trabalhos individuais, passa a pensar quem é você nesse espaço. Quando veio a pandemia eu pensei que deveria me colocar no cenário cultural, mas me perguntando: “O que vou fazer? Vou voltar a trabalhar formalmente?”. Infelizmente foi isso que aconteceu. Voltei a trabalhar formalmente, e é uma coisa que me deixa triste, doente.

No ano passado, coloquei um trabalho na rua para rodar, um solo meu. É importante dizer que sou artista múltipla – sou escritora, performer, atriz –, e aí eu falei: vou botar todas as habilidades que tenho para jogo. Eu coloco minhas habilidades em jogo, mas também há várias questões que perpassam: questões tecnológicas em tempo de pandemia – agora tudo é tecnológico. Até que ponto meu trabalho serve para esses espaços culturais? Para essa produção em arte da cidade de São Paulo? Eu me desafiei a fazer um trabalho na rua, neste tempo de pandemia. O quanto eu estou solitária neste momento? Fiz esse trabalho na rua, consegui ganhar um cachê, menos de mil reais.

Também estou falando de corpos negros. Do meu corpo, 120 quilos, preto, retinto. Tem essa questão de eu ser lésbica, sinto uma solidão total: como eu coloco meu trabalho nesses espaços culturais? Esse não lugar é um lugar solitário. Não sei aonde posso ir, com quem eu posso contar... Hoje eu trabalho numa rede de supermercados – ou trabalho de carteira assinada ou morro de fome.

Criou-se em tempo de pandemia uma competição generalizada: você só entrega seu trabalho se for muito bom, se tiver equipamentos tecnológicos muito bons. É preciso pensar outras políticas públicas para trabalhos pretos, LGBTIQ+ nesses espaços da arte. Eu me sinto no não lugar de não estar nesses espaços. Como posso levar meu nome para que as instituições conheçam? Confesso que chega a ser doentio, perverso (o sistema de produção cultural). Eu não gostaria de trabalhar na rede de supermercado para estar aqui e ter de ouvir palavras racistas, como ouço diariamente, sendo que tenho potencial e me preparo para isso... Estou trabalhando aqui, mas não deixo de pesquisar, de observar, de trabalhar minha corporeidade.

É isso que meu trabalho traz: a escrita da observação. Que me faz impulsionar e ter coragem de levantar cedo todos os dias para enfrentar este caos que é o mundo. Em especial o que estou vivendo aqui. Esse trampo que faço e que está minimamente pagando minhas contas. E não ganho nem um salário mínimo. Eu sou um universo de manifestações artísticas. Mas esse não lugar dentro das instituições culturais é o que me mata, me adoece...

Lorena Saavedra é uma mulher negra, jovem, com cabelo grande, preto e cacheado. Ela está sorrindo e olha diretamente para a câmera.
Lorena Saavedra (imagem: divulgação)

Passar o negrito para enfatizar nossas marcas e marcações mais extraordinárias, explicita Lorena Saavedra

O que é ser uma profissional intelectual negra e gorda? Morei em Salvador (BA) para aprender produção cultural. Aprendi muita coisa, voltei para o Pará, fiz muitas coisas na cena cultural local e comecei a sofrer com o silenciamento. Vejo que as pessoas condenam muito as outras pelas posições que elas querem tomar. Eu era uma mulher que incomodava. Eles não me viam como uma mulher de Belém. Mas eu sou de Belém, e morei oito anos em Salvador... Eram coisas muito complicadas.

Eu já fiz curso de comunicação violenta para entender por que a gente começa a se culpar. Eu comecei a me culpar, pensando que não conseguia dialogar com as pessoas, não fazia direito, comecei a ficar sozinha. Muitos produtores me chamavam a atenção quando eu ensinava as pessoas a trabalhar com produção cultural porque achavam que o mercado já era pequeno para os profissionais que já existem. O que eu vi? Muito racismo. É como se a mulher preta não conseguisse se movimentar. Ela não pode se movimentar. Ela não pode saber mais que os produtores brancos. Eu não podia entender mais de políticas públicas do que eles. Hoje em dia eu vivo em uma solidão porque não estou em nenhum grupo. Fui demitida do último emprego no qual ganhei muita gente, mas perdi muita gente.

Na família, algumas pessoas não aceitam o fato de eu estar de boa com o meu corpo... De eu dizer que sou preta. Minha mãe começa a me acolher, e tem um processo bonito comigo, eu entrei na linha de frente do cuidado dela depois da covid, com nossos produtos da floresta. Hoje em dia eu vendo andiroba e copaíba, eu acredito muito neles. Vem sendo bacana esse resgate que está rolando.

Eu recorri ao meu próprio espiritual, hoje estou mais forte e as coisas estão muito mais nítidas para mim. Eu consigo ver que não foi só um problema meu. Claro, eu devo ter falhado, errado como todas as pessoas, mas esse sofrimento que passei foi também um problema das pessoas. Hoje eu vejo que muitos têm dificuldade em conviver comigo, têm o incomodo de viver com uma mulher preta, gorda, com bebê de colo e com o fato de eu saber de tantas coisas, entender tantas coisas, ter diálogo e entendimento sobre cultura, sociedade; isso afeta muito o ego delas.

Hoje me sinto no dever de proteger outras manas. Quero fazer um blog, escrever, conversar, porque já falo com minhas sobrinhas sobre tudo isso, mostro tudo isso, para que tenham uma vida um pouco diferente da minha. A minha foi de muito sufocamento. Tive de lutar em dobro.

Hoje eu vejo minhas amigas brancas... Eu sei fazer de tudo dentro de casa e elas não. Porque a mãe delas não as ensinou. Porque elas foram criadas para ser médicas, advogadas, para ter dinheiro e contratar uma empregada (preta). A minha criação não foi essa. Com 8 anos eu já lavava banheiro de casa e era elogiada por isso. Eu cresci com comentários: “Olha, se você for muito gorda nunca vai arranjar namorado”. Ô vida, viu?

Há coisas maravilhosas na minha vida, eu amo viver, sou grata pela vida que tenho, principalmente por ter nitidez de tudo isso que aconteceu, e acho que temos de proteger nossas meninas pretas, para que elas já comecem a ter consciência disso que acontece... Como eu me culpei! Eu me achava errada e incompetente...

Eu me sinto minimizada, estigmatizada no meio da cultura... Não aguentei o desprezo, o descrédito. Olho a quantia de coisas e vidas que ajudei a construir com meu conhecimento na área cultural e me olho com muito orgulho e realmente vejo: o problema não fui eu. É o racismo, o preconceito contra a mulher, contra a mulher gorda, contra a mulher que acaba de parir. Muitas coisas que eu sou dentro de uma sociedade que não nos aceita.

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