Walter Thoms

Fotografia dividida em duas imagens. Na primeira um homem sentado à mesa. Ele está sem camiseta e com a cabeça abaixada. Na segunda, se vê uma mão entre um reflexo.
(imagem: Walter Thoms)

Hoje acordei interessado pela cor azul-petróleo.

Em vez de tomar meu café da manhã, mergulho em um tinteiro antigo que cabe na palma da minha mão a fim de ver o imenso oceano que existe ali dentro daquele pequeno objeto. Nunca havia nadado em mar revolto; mesmo sabendo do risco de me engastar em tinta densa e sofrer uma intoxicação, eu insisti nas braçadas de nado crawl pelo espaço infinito do tinteiro.

O sentimento de adentrar no vazio é um caminho sem volta, um misto de apreensão e serenidade. Flutuando na escuridão, senti uma música embalar meu corpo junto da maré. Enquanto olho para as nuvens imensas que se formam sobre mim, adormeço por um tempo indeterminado.

Sou acordado pelo choque contra um pequeno barco de madeira. Em cima dele se encontrava uma senhora não muito alta, nem muito baixa, cega, com cabelos grisalhos e compridos. Vestia um manto de algodão na cor roxa, tinha apetrechos nas mãos, nos braços e nos dedos. Seus colares chamavam atenção, sementes coloridas, ossos, galhos, dentes, penas e um deles tinha um frasco de vidro pendurado. Dentro do frasco, uma pequena pena azul.

Com sua sanfona, tocava a música que eu tinha escutado anteriormente e sem que eu lhe perguntasse ela me disse que era a tradução do lamento de um tordo que vivia no alto de uma montanha rochosa e sua única companhia eram as pedras, o vento e a própria montanha.

O pássaro lamentava a inexistência de outras aves enquanto os outros seres tentavam oferecer conforto a ele, falando que a aptidão de ter asas para poder migrar de um lugar a outro era um presente.

Sentado dentro do barco todo arrepiado e admirado por ouvir aquela senhora falar, eu estava repleto de perguntas. Fazia horas, talvez até dias que eu estava nadando junto da solidão. Manifestei através do meu corpo certa inquietude e antes mesmo que eu soltasse alguma palavra ela interrompeu a música e me perguntou se eu estava contente com essa minha nova forma.

Dezenas de azulinos-da-montanhas apareceram, voando em círculos ao nosso redor. De alguma maneira era possível ouvir a conversa desse pequeno tufão de tordos e a sanfona daquela figura onírica. Lembro que a única mensagem que tirei desse último momento era que o futuro pode ser muito mais do que viver assombrado por mágoas e frustrações do passado.

Marina Nacamuli

Fotografia de um altar de Igreja, que mostra os imagens de santos e e Jesus Cristo.
(imagem: Marina Nacamuli)

Quando pensamos em mudança, pensamos em coisas que possamos ver, coisas tangíveis. Mas existem outros tipos que são mais reais e têm mais impacto na nossa vida e no mundo ao redor, como a mudança interior. Às vezes, ela acontece porque não estamos felizes ou estamos doentes. Algumas vezes é porque alguém que amamos tem um vício, ou porque não temos mais onde morar, ou sofremos um acidente. Por inúmeros motivos, buscamos uma transformação, uma nova maneira de viver e ver a vida.

Acabei indo fotografar em uma igreja, onde busquei os santos e Jesus Cristo para retratar o que vejo como transformação, no sentido de fé. No nosso país, 87% dos brasileiros são cristãos e apenas 8% declaram-se irreligiosos.

“Que haja transformação, e que comece comigo.”
Marilyn Ferguson

 

Em Inventário, dois fotógrafos recebem, todo mês, uma palavra diferente e são convidados a transformá-la em imagem e texto.

Veja também
Em cima de um papel branco, há uma foto em preto e branco. A fotografia mostra um homem olhando para frente. Só os olhos, o nariz e parte do cabelo são visíveis.

Inventário: origem

Marina Nacamuli e Walter Thoms apresentam sua segunda colaboração para a coluna “Inventário” – que, neste mês, traz a palavra “origem”
Foto colorida de uma rede vermelha pendurada dentro de uma oca.

Inventário: Cura

Para encerrar sua participação na coluna, Dalila Coelho e Ubiratan Suruí transformam "cura" em imagem e texto