por Luísa Pécora

 

Em entrevista gravada em 2010, a cineasta Barbara Hammer (1939-2019) recordou o momento em que assistiu, pela primeira vez, ao trabalho da diretora Maya Deren (1917-1961). Na ocasião, Hammer estava no auditório da faculdade de cinema acompanhada de cerca de outros cem estudantes – além dela, apenas mais duas mulheres. “Acho que nós três comemoramos, pois estávamos esperando para ver diretoras, e Maya foi a única”, conta a cineasta em gravação feita pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). “Quando vi Tramas do entardecer, entendi que havia espaço para mim no cinema. Porque, se aquela era a única diretora que eu tinha visto durante todo o semestre, então eu realmente precisava fazer filmes.”

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Ouvi inúmeros relatos similares ao de Hammer desde que comecei a escrever e a ministrar cursos livres sobre cineastas mulheres. Muitos leitores e alunos me procuram com uma motivação similar: a percepção de que passaram pela faculdade ou por outro tipo de formação sem assistir a ou estudar o trabalho das mulheres por trás das câmeras. Da mesma forma, uma simples folheada em livros populares que prometem ensinar “tudo” sobre cinema e listar os filmes que você “precisa” ver mostra que raramente eles incluem um número considerável de títulos dirigidos por mulheres, pessoas negras e de fora do eixo Europa-Estados Unidos.

No entanto, o crescente debate sobre raça e gênero no audiovisual também tem levado cursos e profissionais a buscar e oferecer referências mais diversas, que incentivem os estudantes a ir além do que se convencionou estabelecer como cânone. Afinal, se queremos ter um cinema mais inclusivo, os envolvidos na formação de novos cineastas também têm um importante papel a desempenhar.

“Os cursos têm a ambiência perfeita para fomentar as transformações e evoluções que queremos ver no audiovisual brasileiro, e os docentes são os mediadores, os potencializadores desse processo”, opina Aletéia Selonk, produtora e professora do curso de cinema da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). “As diversidades presentes em nossa sociedade devem estar inseridas nos corpos discentes e docentes de todos os espaços dedicados à formação. Ao mesmo tempo, precisamos fortalecer uma educação baseada em uma visão descolonial e ter espaços de formação acolhedores, lembrando que representantes dessa diversidade sempre contribuíram para a evolução do audiovisual, mas muitas vezes foram minimizados ou riscados da história.”

A diretora está atrás da câmera e olha o visor. Há um homem ao seu lado e outra mulher, de turbante, atrás.
A diretora e diretora de fotografia Joyce Prado no set de filmagem (imagem: divulgação do documentário “À luz delas”, de Luana Farias e Nina Tedesco)

Muitos dados, poucas surpresas

Aletéia é a atual presidente do Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual (Forcine), sociedade civil sem fins lucrativos que congrega instituições e profissionais dedicados ao ensino de audiovisual no Brasil. Nos últimos anos, o Forcine iniciou um bem-vindo mapeamento de questões de gênero e raça nos cursos brasileiros, liderado pelas pesquisadoras Tainá Xavier, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), e Alessandra Meleiro, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Intitulado Mapeamento de diversidades nos cursos de cinema e audiovisual no Brasil, o estudo foi dividido em duas partes: dados sobre os estudantes, que estão sendo coletados neste momento; e dados sobre os corpos docentes e técnicos, que foram divulgados em agosto. O questionário criado por Tainá e Alessandra foi enviado às coordenadorias de universidades e outros espaços de formação durante um período de três meses. Ao final, foram obtidas informações sobre 54 cursos de 41 instituições de ensino, sistematizadas em um levantamento importante, ainda que pouco surpreendente.

Como esperado, o ensino de cinema espelha as desigualdades já evidentes no mercado cinematográfico e na própria sociedade brasileira. De acordo com o estudo do Forcine, 57,8% dos integrantes dos corpos docentes são homens cisgênero, 40,3% são mulheres cisgênero, 0,8% se identificou como pessoa não binária e 0,1% como mulher trans. Além disso, 91,3% desses profissionais não são nem negros nem indígenas, e o percentual de pessoas negras fica em 8,6%.

Nos corpos técnicos, o cenário é parecido: 55,2% são homens cis, 40,3% são mulheres cis, 2,1% são mulheres trans, 1,9% são homens trans e 0,5% são pessoas não binárias. A porcentagem de negros sobe para 16,8%, e os indígenas aparecem com 0,5%, mas 82,7% dos profissionais não pertencem a nenhum dos dois grupos.

A desigualdade também é profunda no que diz respeito a território, já que 50% dos cursos de cinema estão localizados no Sudeste. Em seguida vem a Região Sul, com 18,5%, e depois o Nordeste (16,7%), o Centro-Oeste (13%) e o Norte (1,9%).

Talvez o dado mais surpreendente do mapeamento seja o alto percentual de cursos com ao menos uma mulher ministrando aulas de direção de fotografia. Trata-se da quarta disciplina com maior presença de professoras, atrás de produção (66,7%), argumento e roteiro (60%) e teorias do audiovisual (60%). No mercado, ao contrário, a fotografia é uma das áreas nas quais as mulheres estão menos representadas: de todas as obras audiovisuais (incluindo televisão) que receberam o Certificado de Produto Brasileiro (CPB), da Agência Nacional do Cinema (Ancine) em 2018, apenas 12% tinham somente mulheres na direção de fotografia.

Em entrevista à coluna, a pesquisadora Tainá Xavier especulou sobre os motivos dessa disparidade. “Por um lado, há a tendência de a mulher ter titulação mais alta nas diferentes atividades que desempenha. Em geral os professores universitários precisam ter ao menos um mestrado, e o levantamento pode indicar que muitas mulheres tiveram a necessidade de seguir na formação depois da graduação”, afirma. “Ao mesmo tempo, a escola pode ser um caminho alternativo às barreiras de entrada no mercado: a universidade se apresenta como possibilidade para mulheres que, embora sejam mais qualificadas, não encontram a mesma facilidade de transitar no mercado.”

Diretrizes e políticas públicas

De acordo com Tainá, o objetivo do levantamento do Forcine é pensar em formas de os cursos de cinema brasileiros se tornarem espaços mais diversos. A expectativa das pesquisadoras é que, após a coleta dos dados sobre os alunos, o mapeamento se desdobre em um documento com diretrizes a ser adotadas pelas escolas para corrigir os marcadores da desigualdade.

Concomitantemente, estudos como o do Forcine podem amparar a criação de novas políticas públicas ou a avaliação e o aprimoramento das já existentes, como a Lei de Cotas nas Universidades. Aprovado em 2012, o texto foi determinante não apenas para a maior entrada de pessoas negras e indígenas nas escolas de cinema, como também para o próprio questionamento sobre os limites, as ausências e os universalismos do ensino.

Tainá destaca que o mapeamento do Forcine identificou a existência de 20 coletivos ou projetos de pesquisa centrados em diversidades, com foco principalmente em estudos feministas (38,9%), estudos étnico-raciais (24,1%), identidade e gênero (24,1%) e acessibilidade (13%). “Ao mesmo tempo que estamos lidando com uma grande disparidade no corpo docente, os próprios cursos estão buscando criar espaços para discutir essas questões e encaminhar mudanças”, afirma.

Para a documentarista, pesquisadora e professora Lilian Solá Santiago, que é coordenadora do curso de cinema do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (Ceunsp), uma maior diversidade nos corpos docentes possibilita um ambiente mais acolhedor para todos. “Acho importante a adoção de indutores de gênero e raça desde o vestibular e a seleção de pós-graduação até editais e concursos para a contratação de professores e funcionários”, opina. “E isso amparado por uma política de acolhimento e manutenção desses membros da comunidade mais ampla, que podem enfim ingressar numa estrutura que historicamente lhes excluiu e invisibilizou.”

Descolonizar o ensino

Lilian acredita que o cenário brasileiro atual é “tão propício a radicalismos conservadores quanto à quebra de paradigmas”. Em suas aulas, ela propõe leituras que questionam o eurocentrismo e o patriarcalismo nas artes e na comunicação, e percebe que os estudantes começam a se sentir mais representados. “Leciono em um centro universitário no interior de São Paulo, um recanto remoto da América do Sul, onde ninguém chega perto de ser ‘homem branco europeu ou norte-americano’”, afirma. “Entender que o ponto de vista hegemônico não é universal é extremamente potente e libertador, pois abre possibilidades para a criação do que nos fortalece agora e no médio e longo prazo.”

Aos professores interessados em ser mais inclusivos em suas aulas Lilian oferece algumas dicas, a começar pela escolha dos filmes exibidos aos alunos: “Acho importante entrar em contato com o novíssimo cinema brasileiro, realizado nos últimos dez anos, com toda a sua miríade de sotaques e rostos diferentes, e daí ir ampliando para outras cinematografias”.

Ela também recomenda atenção à produção de curtas-metragens e aos filmes exibidos e premiados em festivais brasileiros. Lilian destaca, por exemplo, a curadoria do Festival Entretodos, dedicado a curtas com temáticas ligadas aos direitos humanos, e as diferentes mostras dedicadas a filmes latino-americanos, africanos e árabes, entre outros.

Quanto às leituras, ela sugere autores como Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Ailton Krenak, Patricia Hill Collins, Stuart Hall, Frantz Fanon e Silvia Rivera Cusicanqui. “São alguns exemplos de pensadores que nos ajudam a refletir sobre as imagens e a produção audiovisual de uma perspectiva mais ampla do que a cartilha eurocêntrica com a qual fomos doutrinados”, definiu Lilian, recomendando, ainda, a leitura do manifesto Por uma nova cinefilia, de Girish Shambu. “Depois de percorrer esse percurso, ou parte dele, é possível pensar nossa ação como professores diante não só do cinema que temos, mas também do cinema que queremos”, acrescentou. “Qual é a nossa aposta?”

 

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