por Rodrigo Masina Pinheiro
Um exemplo de infância é a fotografia de Catherine Opie. A legenda: “Catherine Opie, ‘Self portrait / Cutting’, 1993”. O título se traduz assim: “Autorretrato / Corte”. O corte em sua pele é o elemento principal da fotografia. Opie está de costas para a câmera (para nós; para ela). Só a vemos da cintura para cima, em plano médio. Seu cabelo é curto, liso, tingido com mechas loiras. Há muitos brincos em suas orelhas. Ela está sem camisa. Seu corpo é branco e gordo. Ela tem uma tatuagem no braço direito. O retrato é lindo. Clássico. Um tecido verde-musgo com desenhos de flores e frutas vitorianas está no fundo. Não temos um rosto no retrato.
As costas mostram um desenho de criança feito em cortes na pele. No caso, as costas de Opie são o papel de uma criança. A cena ainda sangra. A casinha, o sol atrás da nuvem, duas gaivotas e duas mulheres de mãos dadas. As mulheres são representadas por duas figuras de palitinho de saias. Elas estão sorrindo e se olham. No telhado da casinha, ao invés de uma chaminé, há uma escada. É uma fotografia hipnotizante. Uma ferida nas costas. Opie diz que é como se seus desejos invisíveis fossem expostos pela câmera, o seu meio de comunicação mais íntimo desde a infância.
GH, a série fotográfica que é um pouco como um museu pessoal, feita por mim e por minhe namorade, a artista Gal Cipreste Marinelli, começa em Vila da Penha, no Rio de Janeiro. Em 2019, pegamos o metrô, saltamos na estação Vicente de Carvalho e caminhamos até a Rua Flamínia, onde eu morava, para coletar pedras.
Colocamos tudo em uma mochila. A ideia era levar as pedras para o estúdio e criar esculturas. Ou só catalogá-las em fotos simples, frontais, mas sinceras. Fátima Aguiar, artista geóloga, diz que o que chamamos de pedras são só escombros e asfaltos. Mas dizem que fui apedrejade. Até essa palavra quero questionar. Não fui escombrade. Não fui asfaltade. Atacade é bom. Estamos falando sobre um ataque. Uma tentativa de assassinato ou só um ataque? A gente trabalha com a estatística da morte. Eu poderia ter morrido pré-adolescente, quando fui atacade, mas não morri. A possibilidade da morte está na fotografia de GH. O que teria sido então do meu corpo culpado? Encontrei muitas matérias de jornal em que outras crianças apedrejadas por questões de gênero morreram. O que foi delas? Nada me ajuda a fotografar GH.
Por que senti vontade de fotografar? Foi para impressionar com a história? Para ter uma história? Gosto quando o Robert Bresson escreve: “Eu os invento como vocês são”. A autobiografia é uma escolha duvidosa, quase uma invenção, mas irrepreensível. Às vezes me sinto fazendo um diário de naufrágio. Mas a autobiografia é o oposto disso. No dia 6 de agosto eu nasci. É um aviso (de que não podem matar quem se fotografa).
GH estará em uma publicação de arte sobre after care. Não há uma tradução perfeita para esse tema. After care é um cuidado aplicado depois de qualquer coisa ter acontecido. Enquanto me cuido, pergunto-me quem foi que me atacou. Não foram simplesmente aquelas pessoas. Reli hoje uma frase muito contundente, está no livro A dor, de Marguerite Duras. “A única resposta para esse crime é transformá-lo num crime de todos”. Ela fala do nazismo. Eu falo do quê? Tenho muita vontade de dizer que falo de nós todos que mantemos “isso”, não conseguimos dar nome ainda. Isso da rua e de todo mundo que está na rua, de todo mundo que frequenta a mesma escola que eu. É quase, por pouco, falo também sobre isso, mas acho que um fragmento disso é a heteronormatividade mantida por tudo e por todos. Sobre o fascismo também mantido no Brasil e em todos os países. Sobre todos.
Minha pesquisa é sobre a infância desobediente de gênero na fotografia. Essa infância é um deserto. Mal encontrei infância. Até esqueci o que procurava. Na real, o que é que quero? Que imagem? Por isso criei a aula mestra e dei o nome de Círculos de memória e perversão. Tirei a palavra infância do título da pesquisa e coloquei perversão. Nem toda fotografia é de perversão, mas as outras não me interessam.
Em uma poesia muito forte, a Claudia Rodriguez escreve: “Fomos rejeitadas porque o corpo é sagrado e com ele não se brinca”. Então se faz o que com o corpo? Quero falar na perspectiva de uma criança. Nós, crianças, vamos brincar de quê? Como vamos brincar com o corpo e com o gênero? E tudo isso é uma brincadeira com verdade. “As crianças não brincam de brincar. Brincam de verdade”, diz o Mário Quintana desta vez. Passei a procurar fotografias que brincassem, que brincassem com adesivos, cortes, zines, expografia, de faz de conta, e todas, sem exceção, abordavam um tema pesado, indigesto, com os recursos da invenção.
Alguns estudiosos da fotografia publicaram o autorretrato de Claude Cahun, de 1927, feito com Marcel Moore (amo autorretratos partilhados), em que ela está com o seu cabelo raspado diante de um espelho pequeno de parede. Junto com a publicação, os seus comentários diziam, sutilmente, que aquela era uma foto surrealista. Mas era só real. Uma mulher e uma inconformidade de gênero. Não perceberam. A realidade não suporta a sua cabeça raspada. No real não está inscrita a sua vida. Claude não está no real. Não está no surreal. É audaz. Fazer fotografia surrealista como uma artista dissidente sexual e desobediente de gênero é sutil, no mínimo, porque é o surrealismo do surrealismo.
Tenho que dizer que a perversão e a perversidade são pai e mãe da nossa memória. Que, para a minha pesquisa, assumo que a perversidade é uma imagem e a perversão é outra. É o nosso afeto, o nosso rosto, o nosso descompromisso com a continuidade, é outra coisa. É claro que não falo dos nossos pais biológicos. Olho para trás. Meu pai da perversidade é a força que existe e não me quer. Age de todas as formas para me tirar do mundo, e a principal nem se chama violência. Apesar de ele já ter me feito violentade. A principal é o silêncio. É a fotografia normativa. A violência de arquivo que nos torna patologizades. As autobiografias dissidentes não são lineares. A fotografia não conformada se desdobra e expande. A violência de arquivo não é necessariamente uma cisão entre o presente e o passado. É sempre um presente. O imaginário patologizado, criminalizado e sexualizado está sempre presente.
Depois de descobrir que o xingamento deturpa uma palavra que nos descreve, a gente volta a fotografar de forma completamente inescrupulosa e sem medo. Não que eu queira ser uma perversão. Ela é só a minha mãe. Sou o produto. Um rebento, uma fruta podre no vocabulário. Na fotografia, precisei buscar um corpo novo da infância, olhar de novo para mim, montar uma Barbie com uma versão pequena do uniforme da minha escola, colar o pedaço do meu cabelo cortado (à força) nas costas, não sei muito bem quem foi a criança.
“Tolerade por ser inofensiva”, disse quem? Fernando Pessoa, acho. Teria sido bem menos violento ser uma criança inofensiva assim.
Mais uma coisa não muito técnica que eu gostaria de dizer e que fez parte do processo de GH. Gal foi a primeira pessoa com quem me relacionei amorosamente e para quem contei sobre todas as violências. Contar não foi abrir mão do silêncio. Fotografar é abrir mão do silêncio. Nas minhas aulas, falo sobre três formas de tentar assegurar narrativas autobiográficas mais legítimas. Ensino que fotografia pode ser também excludente, radicalmente excludente, encarceradora e compulsória. Elas são divididas assim, com uma suposta causa, uma barrinha lateral e o seu resultado:
Regime heterossexista e adultocêntrico / narrativas mutiladas
Não estar na cultura hegemônica se impregna na gente. A maior parte das nossas vontades não passa de vontades possíveis. Normatizadas. As nossas biografias correm o risco de ser apenas um registro das histórias que pudemos viver. O sentimento do mundo é muito facilmente confundido com o nosso sentimento. Um corpo biográfico que se esvazia para receber os desejos possíveis.
Subjetividade encarcerada / narrativas sem poder de intuição
A câmera subjetiva precisa sentir alguma coisa. Ter um ponto de vista. Tremer, ser fixa, olhar do alto, olhar de baixo, afastar-se, aproximar-se. Não ser o outro. É preciso intuir se estamos perto demais da nossa história para que nos afastemos um pouco. Intuir se o nosso ponto de vista, a nossa abordagem, está distante demais a ponto de precisarmos nos aproximar. Aprendi isso com o André Penteado. A subjetividade mutilada gera pouca compreensão ou medo de compreender. E, quando se tem medo, se está perto do que importa.
Heterossexualidade compulsiva / narrativas inseguras
Todo mundo conhece a fragilidade na ideia do que é a violência. Uma história frágil. Eu não sei se a história do mundo nos deixa frágeis. As relações sempre tiveram uma violência desnecessária para manter o ideal de masculinidade e austeridade. A narrativa segura tem a ver diretamente com a nossa exposição. A heterossexualidade compulsória força encobrimento, armário, silêncio, pudor, normas. Para mim, o ato de se expor é o oposto da insegurança.
Essas formas de não ser mutilade não servem para quem quer ganhar prêmios de fotografia e são o início de uma conversa maior.