por Winnie Bueno
Quando eu era criança, via minha avó fazer as compras do mercado em dobro, às vezes em triplo. Ela comprava a comida da nossa casa e mais um tanto para distribuir para quem batia em nosso interfone pedindo um saco de arroz ou feijão, um pacote de farinha, meio quilo de carne moída. Sempre tinha gente batendo, e eu, bem criança, ficava feliz de ser a pessoa que descia correndo para entregar o alimento. Um dia, porém, minha avó me disse: não tem felicidade na fome, Winnie. É muito triste a gente precisar dar comida para as pessoas porque elas não têm o que comer.
Daquele dia em diante, entendi que dar de comer para quem tem fome não é alegria, é necessidade. É responsabilidade. É uma política de resistência e sobrevivência. Uma maneira de reverter as formas de manter gente preta em lugar subordinado. Minha família nunca foi rica, mas nós nunca passamos fome. Minha avó, entretanto, na infância, viu a fome. Viu a escassez de alimentos provocada pela guerra. Viu faltar farinha para o pão. Viu as latas de comida vazias. Até hoje, minha avó não gosta quando nossas latas vão se esvaziando. Ela gosta delas cheias, porque não gosta da sensação de que pode faltar…
Hoje contei para minha avó que estou ajudando a organizar uma campanha de distribuição de alimentos para mais de 200 mil famílias que estão vivendo com fome. Minha avó me falou que achava que esse tempo em que as pessoas tinham de pedir para as outras um saco de feijão tinha acabado. Ela teve a esperança de não precisar mais fazer o rancho em dobro. Disse que estava triste, mas que estava pronta para ajudar a distribuir comida de novo.
Minha avó é um exemplo do compromisso de mulheres negras com a sobrevivência da nossa comunidade. Outro exemplo é Carolina Maria de Jesus, a escritora que descreveu o que significava a fome para quem precisa conviver com ela. É importante que a gente que nunca passou fome entenda a fome, de modo que possamos ajudar a construir uma sociedade em que ninguém morra por falta de comida.
A ausência de gestão presidencial diante do pior momento da pandemia de covid-19 aprofundou os impactos da fome. Milhares de famílias no Brasil têm apenas água em suas geladeiras. Neste momento, é fundamental lembrar dos ímpetos históricos do movimento negro que, há séculos, lutam pela sobrevivência de sua comunidade. Das irmandades negras aos clubes. Dos movimentos de favela aos grupos de estudos. De todas coletividades negras que se comprometem com a própria sobrevivência. Agora, mais uma vez, somos nós a linha de frente da necessidade de organização da alimentação daqueles que têm fome.
A Coalizão Negra por Direitos, entidade que reúne centenas de organizações do movimento negro nacional, em conjunto com importantes entidades de direitos humanos do Brasil, lançou a campanha #TemGenteComFome, que visa arrecadar recursos para auxiliar mais de 200 mil famílias em todo o Brasil. Essa iniciativa não se trata de um trabalho de distribuição aleatória de cestas básicas, mas, sim, do apoio a territórios onde há trabalho de base, mobilização de luta por direitos humanos, lideranças organizadas e articuladas em redes de lutas sociais em todo o país.
Garantir apoio a esse universo significa fortalecer o trabalho no campo dos direitos humanos, da organização popular, do movimento negro e de favelas. Significa alimentar condições e esperança de iniciativas coletivas e comunitárias, lideranças locais, defensoras de direitos sociais dispostos a nos ajudar a atravessar o momento difícil que vivemos no país. Dar de comer para quem precisa é uma necessidade urgente. Ajude e doe em: www.temgentecomfome.com.br.