Anotações sobre o puro brilhante (ou devir imagem)
12/01/2022 - 11:59
por Sofia Borges
O título que escolho para este texto é o que dei inicialmente ao filme que fiz em 2021. Um docficção que se passa inteiramente dentro do meu antigo ateliê e cuja narrativa explica: é sobre tudo pelo que a pesquisa passou enquanto esteve lá. Durante meses, o projeto foi apelidado de Devir-imagem, mas ganhou ao fim outro nome: O fóssil, o olho e o fogo. Experimental, foi filmado em quatro dias, enquanto ia sendo desconstruído, aprofundado, inventado. Eu o escrevi e narrei com as falas que habitaram os meus pensamentos mais remotos a respeito da imagem – quero dizer: os meus pensamentos selvagens. Deveria ter sido um projeto bem mais simples, uma performance filmada e transmitida ao vivo de outro país. Porém, havia uma urgência parecida com a que me levou a fazer meu primeiro livro, O pântano, em 2016. Urgência de organizar ou recompor a trajetória até agora. Não a trajetória de exposições, projetos ou curadorias, e tampouco a dos trabalhos, mas a que percorri internamente, feita de perguntas que vieram seguidas de outras perguntas.
Como pedaços de um quebra-cabeça, é com as incógnitas que moldo a minha obra. E assim vai se formando a compreensão sobre imagem que me organiza os olhos. E assim os olhos afiam meus dedos. E só então eu posso descrever o que é isto que procuro. Tateando a imagem, vou organizando a pesquisa para fora da incógnita e mostrando o caminho que percorri para chegar até ela.
Como entrar dentro da imagem? E, entrando, de que se constitui seu cerne semântico? Já pensei mil vezes sobre isso. Quando eu entendo uma parte, brota que nem nascente a outra faltante – a outra pergunta, que me leva até outra imagem, infinitamente. Dentro disso se encaixa bem o conceito de revelação: algo que continuamente ganha nova velatura. Então, para mim, a espessura da imagem é feita de uma sobreposição de incógnitas. A imagem se revela por meio disso, de seu corpo continuamente opaco.
Então, quero contar aqui alguma coisa dessa revelação, que é de onde vêm os meus trabalhos milhares de percursos depois – não antes, a imagem vem sempre depois.
Como um vaso, a imagem que busco aparece depois do vazio e não se constitui preenchimento ou narrativa espaço-temporal. Busco a revelação de um vaso ancestral, ou primordial, antes de tudo que a visão.
Quero dizer que minha imagem não é frase, não finaliza, não narra, também não vela, tampouco é falsa. Sua opacidade, sua espessura mimética, simbólica, semântica, é sua própria revelação. Toda imagem é transparente. Eu só tento fazer ver isso, essa transparência opaca. Na capa de O pântano eu aviso: as imagens não existem.
Também nomeei, num poema, a experiência da imagem como uma cegueira invisível. Já criei tantos nomes para isso. As imagens, esse fogo cego.
Fogo, aqui, não tem a ver com luminosidade, mas com o incognoscível e a transmutação contínua entre experiência e significado. Poderia ajudar a entender falarmos sobre a caverna de Platão, e o que me interessa genuinamente nessa história, acredite, não é nada do que acontece dentro da caverna, mas do lado de fora dela. Aproveito para achar engraçado ninguém nunca ter falado dessa parte de fora da caverna. Concluí que, se me parece óbvio, cabe a mim falar. Então fiquei vagando e vagando dentro da minha experiência de existência querendo enxergar o que ocorre ali, onde o intensamente claro é ofuscante, e o que teriam as imagens a ver com isso. O vórtex da consciência antagonicamente idêntico em fisicalidade ao seu igual oposto, que seria o não ver, a não imagem, o escuro, onde não se vê.
E que fique claro: estou falando sobre linguagem, porque estamos presos dentro dela e não tenho a ingenuidade de falar sobre algo que está para além de si. É a prisão da forma que define os limites do incomensurável, e não o contrário.
Daí, ser poeta me ajuda. Sempre escrevi, mas faz alguns anos que comecei com poemas muito curtos, ou imagens abstratas de imagens. Mais precisamente, isso começou em 2018, durante o intenso período em que me dediquei a criar uma curadoria para a 33ª bienal de São Paulo. Um dia, como quem vai desenhar, escrevi. E assim, como num raio, estavam prontas. Eu me deparei com as minhas incógnitas, mas elas estavam em forma de imagem ou afirmação. Esses poemas são curtos, mas enormes em tamanho; são poemas-imagens. Essa série se chama As abstratas; vou incluir alguns registros dessas fotografias aqui, desses poemas expostos como escolhi na Bienal. Lá eu afirmava: isto é o roteiro da minha tragédia, meu texto curatorial. São poemas, mas é fotografia, porque fotografei as folhas escritas com carvão, daí a vocação do poema para ser imagem abstrata, para devir imagem.
Visto que desde criança eu escrevo, as pessoas apostavam: “Vai ser escritora a Sofia”. Eu poderia mesmo ter sido poeta ou escritora, mas acho que foi ficando pouco falar da linguagem com palavras. Que fique claro: o que chamo de linguagem é muito maior do que a fala e a escrita. Tem outras. As linguagens sonora e visual, por exemplo. São o que estrutura a compreensão do som que se escuta e da imagem que se enxerga. Sem a linguagem, som é ruído e imagem é vibração de cor. Tenho que falar como cheguei a essa compreensão, mas não vai ser agora.
Eu só penso a partir disso. Eu venho sendo artista só para tentar falar disso. No começo da faculdade eu escrevia, esculpia e desenhava, mas um dia caí na fotografia como se tropeçasse em direção a uma poça de água bem rasa. Foi distraída que me tornei fotógrafa. Caí e, nesse espelho tênue do mundo, fui entrando num vertiginoso profundo. A cultura, o estado do significado, a coisa na frente da coisa. De novo: a coisa na frente, não atrás. Não dentro. Porque ver é invisível. Ver é linguagem. Ver é lamber o que se vê, e o gosto que tem a coisa é o que entendemos disso.
E eu quero entender sobre a cegueira, então, com os meus olhos, fico lambendo as coisas que vejo, sorvendo a existência delas para tentar adivinhar o que são.
Hoje eu sei que nunca fui fotógrafa, a palavra para o que sou estou inventando. Talvez eu seja uma imagética, melhor, entendi agora: sou uma “imageta”. Uma espécie de poeta, em vez de narradora. Não escrevo o visível, uso as imagens para virá-las pelo seu próprio avesso. É muito difícil apresentar a cegueira que recai na experiência de ver. Consigo num átimo, por um triz faço ver a cegueira, e logo depois voltamos a apenas ver – digo, ver a narrativa linguística que recai na experiência de enxergar, de ver/ler sentido no que se vê. Não faço fotografias como romances (a imagem ordenada internamente como um espaço-tempo com intenção de se fazer afirmar). Eu busco a sutil violência do espaço ou do vazio, a bruma fantasmática que separa e ancora a experiência. Aquilo, o entre das coisas que se afirmam.
Eu preciso falar disso, é a única coisa de que preciso falar. Então, vou fazer um apanhado de tudo o que já falei mil vezes. E também porque me entedia um pouco a visão de que eu trabalho, às vezes, com apropriação. Acho isso milhões de vezes ingênuo. Quem acha assim não entendeu nada. Ou, pelo menos, não entendeu uma coisa: como “imageta”, quero ter a cegueira.
A coluna Revelação convida curadores, pesquisadores e outras pessoas interessadas nos debates que a produção de imagens pode suscitar para escrever sobre fotografia.