Artistas Mulheres Contemporâneas no Acervo destaca produções de criadoras presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando-se ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Claudia Andujar
Vertical 12, da série Marcados, 1981/1983
ampliação fotográfica analógica com gelatina de prata sobre papel fibra [tríptico]
56 x 37,5 cm cada foto
Acervo Banco Itaú
Imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural

por Duanne Ribeiro

Os indígenas nessas fotos estão prestes a se tornar informação. As placas numeradas presas ao pescoço de cada um somadas ao registro imagético fazem com que possam ser inscritos em um cadastramento e, assim, em algum tipo de circuito de administração. Esse processo, ao mesmo tempo que garante certa apreensão dessas pessoas, dispensa outras percepções: são dados que a fotografia guarda, quase como um excesso: a seriedade desafiadora do primeiro homem, os olhos fechados no menino magricela, o meio sorriso do último no tríptico.

Veja também:
>> Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do Itaú Cultural
>> 
Identidade, política e cultura indígena na atualidade, no Mekukradjá

Para que servirão esses registros? Com que objetivos se forma uma base de dados sobre essas pessoas? Não sabemos disso num primeiro contato com as fotos. Sabemos só que os retratados estão à disposição de alguma técnica – para o bem ou para o mal, são marcados, como atesta o nome da série de que fazem parte. A autora da obra – a fotógrafa Claudia Andujar – soube indicar essa profundidade: a primeira exposição de alguma dessas imagens, em 2005, chamava-se Marcados para Viver, Marcados para Morrer. Em pauta, está essa ambiguidade.

O primeiro sentido – marcados para viver – é o da história da criação dessas fotos. Desde 1971, quando partiu para a selva amazônica com a proposta de realizar um ensaio sobre os Yanomami para a revista Realidade, a fotógrafa havia desenvolvido forte convívio com os indígenas (neste perfil de Beatriz Jucá, lemos essa história). Nos anos 1980, ela retornou à região com alguns médicos, em uma expedição que intencionava vacinar os nativos. Eles sofriam de uma epidemia disparada pelo contato com o homem branco, após políticas iniciadas pelo governo federal.

Essas políticas tomam forma a partir de 1968, segundo o Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas, relatório da Comissão Nacional da Verdade. Editado pelo governo militar, o Plano de Integração Nacional (PIN) estimulava a “ocupação da Amazônia”, “representada como um vazio populacional, ignorando assim a existência de povos indígenas na região”. Remoções forçadas, contatos sem precaução, massacres armados marcam os desdobramentos do projeto. Sobre os Yanomami, Jarbas Passarinho – ministro do Trabalho e da Previdência Social de 1967 a 1969 e ministro da Educação de 1969 a 1974 – testemunhou em 1993:

Logo que o Projeto Radam evidenciou a presença de ouro no subsolo, e a Perimetral Norte levou o acesso até a terra milenarmente ocupada pelos Yanomami, que aconteceu? A morte de mais de 50% da tribo de Catrimani, causada por gripe e doenças, que não são mortais para nós, mas o são para índios não aculturados. Não foi só nessa tribo, mas em várias outras, onde se deu a presença dos garimpeiros. Eles poluíram os rios com mercúrio, afastaram a caça pelo barulho, provocaram a fome e a desnutrição dos índios, enquanto contra nós avolumava-se a acusação de que praticávamos o genocídio. Não era exagerada a denúncia.

Dessa forma, as fotos de Marcados foram feitas para a expedição que procurava se contrapor a esses danos – identificam os indígenas que seriam o objeto da campanha de vacinação. Foram publicadas pela primeira vez em 1982, com textos de Claudia, no relatório da Comissão pela Criação do Parque Yanomami. A série, no total, tem 82 imagens. Levadas ao campo artístico em 2005, como anunciamos, recebem outros sentidos, referências ao marcados para morrer. É o que notam Daniela Nery Bracchi e Paula Soares, quando dizem que é feita aí “uma alusão claramente intertextual entre a marcação que buscava preservar a vida dos indígenas e outros retratos nos quais as pessoas recebem um número e são identificadas antes de serem mortas”. Nesse sentido, pode-se lembrar o impacto do Holocausto na história de vida de Claudia.

Nascida na Suíça, a fotógrafa cresceu com a família paterna, de origem judaica, na Transilvânia, entre a Romênia e a Hungria. Seus familiares foram deportados para os campos de concentração nazistas de Auschwitz e Dachau – apenas um tio, que havia emigrado para os Estados Unidos antes da guerra, e ela e sua mãe, que haviam fugido para o país natal, sobreviveram. É, assim, a partir de uma experiência intensa do que significam as relações entre as populações e o poder, entre os números e as pessoas, entre esquecimento ou seleção e memória, que ela fotografa.

Claudia Andujar lançou as obras Amazonia (1978), com o fotógrafo George Love, Mitopoemas Yanomami (1979), Missa da Terra sem Males (1982), Yanomami: a Casa, a Floresta, o Invisível (1998) e A Vulnerabilidade do Ser (2005), entre outras. Fez parte entre 1978 e 1992 da Comissão pela Criação do Parque Yanomami e entre 1993 e 1998 do Programa Institucional da Comissão Yanomami. Saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

Veja também