São Paulo Carinhosa é um programa da Prefeitura de São Paulo que faz parte da Política Municipal para o Desenvolvimento Integral da Primeira Infância na Cidade São Paulo e conta com a coordenação de Ana Estela Haddad. Junto ao programa De Braços Abertos voltado a tratamento e resgate de usuários de crack desenvolve ações culturais com usuários beneficiários do programa e suas famílias. Trabalhando a partir da perspectiva da ressocialização, trabalho remunerado, alimentação,  moradia e com orientação não violenta o programa aposta também na cultura como ferramenta de combate a dependência química. Confira a entrevista onde Ana Estela Haddad comenta as ações culturais que a São Paulo Carinhosa desenvolve junto ao De Braços Abertos.

Ana Estela Haddad é professora Associada do Departamento de Ortodontia e  Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo. Possui dez anos de experiência em gestão pública, trabalhou nos Ministérios da Educação, da Saúde, ajudou a implementar o Prouni e atualmente coordena a São Paulo Carinhosa.

Quando surge e com qual propósito o programa Política São Paulo Carinhosa?

A política municipal São Paulo Carinhosa – criada, por meio do decreto Nº 54.278, em 28 de agosto de 2013 – tem por objetivo promover o desenvolvimento infantil integral e fortalecer os vínculos afetivos familiares. Leva em consideração as crianças em suas múltiplas interações, relacionamentos e vínculos com a escola, a família, a comunidade, os serviços de saúde e de assistência, a cidade, a Vara da Infância e Juventude, entre outros. A visão holística assumida por essa política requer que todos os espaços de interface com a criança sejam promotores do desenvolvimento infantil, envolvendo as dimensões física, cognitiva, social e emocional.

Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente esteja vigente desde 1990, sabemos que não conseguimos ainda garantir todos os direitos fundamentais para todas as crianças, em especial àquelas de famílias em situação de maior vulnerabilidade social. Evidências científicas no campo da neurociência comprovam que nos três primeiros anos de vida estrutura-se a arquitetura cerebral, que serve de base para as etapas subsequentes do desenvolvimento. São comprovados também os efeitos devastadores das situações de negligência ou violência vivenciadas na primeira infância. Essas foram as razões de desenvolvimento do programa, que se somaram à convicção da importância de implementar no município uma política que foi inicialmente criada e priorizada em âmbito nacional pelo Brasil Carinhoso.

O São Paulo Carinhosa desenvolve ações culturais em parceria com o programa De Braços Abertos, visitas a equipamentos culturais, oficinas etc. Conte um pouco dessas ações.

O programa De Braços Abertos tem em comum com o São Paulo Carinhosa a característica de terem sido formulados e implementados com base na intersetorialidade, conjugando e integrando esforços de diversas secretarias municipais. Uma das iniciativas do São Paulo Carinhosa foi fazer uma aproximação e escuta com as gestantes do De Braços Abertos. Algumas eram usuárias de crack e estavam em tratamento para reduzir o uso. Outras não eram usuárias e estavam lá para apoiar seus companheiros usuários. A Secretaria Municipal de Saúde deu seguimento ao acompanhamento e pré-natal dessas gestantes.

Outra situação observada foi que, nas férias escolares, as crianças passavam mais tempo num ambiente inóspito e adverso. Então, em parceria com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Assistência Social, a Secretaria Municipal de Educação, por meio da Diretoria Regional de Educação do Ipiranga, a Subprefeitura da Sé e a Secretaria Municipal de Cultura promovemos passeios culturais aos CEUs, sessões de cinema e contação de histórias. Em todas as atividades, os pais deveriam, preferencialmente, estar junto com seus filhos, de forma que a atividade fosse também um momento de aproximação, afetividade e busca de outros significados e dimensões na vida familiar. A contação de história foi tão benéfica que foi também estendida para grupos de adultos. Um dos casos foi o do senhor José, carroceiro, usuário de crack, que relatou ter passado a se interessar por livros quando recebia o material descartado pelas pessoas. Deixou de rasgá-los, passou a lê-los, demonstrando impressionante conhecimento em uma roda de leitura com mediação de uma professora de literatura da Universidade de São Paulo (USP), que atuou em trabalho voluntário. Ele relatou também que, ao saber da roda de leitura, naquele dia deixou de usar o crack para poder participar.

A partir dessas ações, como você enxerga os diálogos e vínculos estabelecidos entre os usuários e suas famílias?

Tivemos, por exemplo, esse relato de um beneficiário do De Braços Abertos: os passeios culturais com os filhos melhoraram sua convivência com eles e promoveram sua reaproximação com a esposa, de quem estava separado.

A atriz Kiara Terra, que promoveu várias sessões de contação de história com crianças no De Braços Abertos, deu o seguinte depoimento: "As crianças chegam com a ideia de que não têm família. Na construção da história coletiva, descobrimos que elas têm, sim, famílias, não igual as dos livros, mas têm. Buscamos desconstruir essa ideia do ideal".

Qual a importância da cultura no processo de ressocialização dos usuários do São Paulo Carinhosa?

A cultura é fundamental na vida de qualquer pessoa, desde a infância e sempre. Por meio da cultura nos expressamos, encontramos nossa identidade, processamos nossos sentimentos e nossa relação com o mundo. Isso pode ser alcançado por meio do nosso contato com a produção de vários artistas, mas é também possível alcançar o estímulo à energia criativa e a capacidade de também produzir cultura. Às vezes, a dor e o sofrimento podem ser transformados em força criativa por meio da cultura. A cultura tem papel fundamental na coesão social. Ela é fundante e deve caminhar articulada com a educação. É importante que isso seja cultivado e estimulado desde cedo.

Uma experiência transformadora foi desenvolvida pelo São Paulo Carinhosa em parceria com a Secretaria Municipal de Educação. Foram implementados 154 parques sonoros em Centros de Educação Infantil (CEIs) e Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs). Desde muito cedo é possível estimular o contato das crianças com a diversidade sonora que nos rodeia e identificar os “cotidiáfonos” – objetos sonoros do uso cotidiano.

O parque sonoro é uma ideia motivadora, um pretexto que possibilita a investigação acerca dos sons, a abertura para o novo. A relação da criança com o objeto, transformação do objeto em instrumento, interagindo, atuando e imaginando – a exploração sonora, rítmica e melódica. Para participar, devemos reeducar antes a nós mesmos, que vivemos em um mundo sonoro, mas raramente paramos para ouvir os sons que nos cercam. Cabe à professora observar e oferecer à criança "um encorajamento delicadamente equilibrado", apoio para enriquecer sua experiência. Alguns depoimentos:

“Meu filho mudou lá em casa... tudo é som!” (Mãe de um aluno da educação infantil)

“Agora eu sou uma banda.” (Clara, 5 anos)

"Quando a contação de história começava, os pequenos pegavam os brinquedos sonoros para que esses objetos fizessem parte da história. A hora da história ganhou mais vida, mais alegria." (Uma professora)