por Gilberto F. Martins
GLAUBER MORTO
/.../
O morto está morto
em cima da cama
no quarto vazio.
Como já não come
como já não morre
enfermeiras e médicos
não se ocupam mais dele.
Cruzaram-lhe as mãos
ataram-lhe os pés.
Só falta embrulhá-lo
e jogá-lo fora.
(Ferreira Gullar, em Barulhos)
Recentemente, duas situações funestas ocasionaram o retorno do nome de Glauber Rocha (1939-1981) aos principais veículos de informação do país: o incêndio, em São Paulo, de um galpão da Cinemateca Brasileira, onde estava parte do acervo pessoal do cineasta baiano, gerando justificadas reações de consternação, denúncia e protesto; e a morte de Tarcísio Meira, ator paulista que participou de seu último longa-metragem, A idade da Terra (1980), no papel do aventureiro colonizador português Dom Sebastião.
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As obras fílmicas de Glauber estão repletas de signos de morte e ruína – do mesmo modo que hoje, sintomaticamente atrelados a quadros perenes de mau uso do poder –, decerto em decorrência de sua adesão à estética barroca, na qual aquelas imagens tiveram seu florescimento mais prolífico. Se as cenas que captou no velório e enterro do amigo Di Cavalcanti, em outubro de 1976 – a fim de criar um curta-documentário em homenagem ao pintor –, renderam embates na imprensa e com os herdeiros do artista plástico, as de seu próprio funeral, após ter sido velado no Parque Lage, cenário de Terra em transe, constituem um importante documento cultural, a registrar sua entrada póstuma no restrito panteão de quase-unanimidades-nacionais.
O belo trabalho de Silvio Tendler, Glauber o filme, labirinto do Brasil (vencedor do Festival de Brasília, em 2003), abre-se com parte desse material, flagrando no cortejo ao cemitério São João Batista o abatimento e a incredulidade de personalidades como Darcy Ribeiro, Zé Celso e Waly Salomão, intercalado pela eficiente montagem a trechos dos filmes de Glauber e a depoimentos emocionados de Neville d’Almeida, Nelson Pereira dos Santos, Rubem Gerchman, Jards Macalé, Sergio Ricardo, Helena Ignez, João Ubaldo Ribeiro, Ana Maria Magalhães, Cacá Diegues, Norma Bengell, Paulo Autran e Hugo Carvana, entre outros representantes daquela insubstituível geração de criadores da qual Rocha foi figura de proa.
40 anos depois
Agora que se completam 40 anos de seu falecimento – ocorrido no Rio de Janeiro, em 22 de agosto, horas depois de ser trazido muito doente de Lisboa –, é difícil escrever sobre suas obras sem ceder à tentação de usar adjetivos como polêmico, genial, obsessivo, contraditório, combativo e radical, para definir seu criador. Nenhum dos qualificativos mente ou esgota o retrato e em conjunto ganham força de constelação semântica. Por isso, aparecem todos aqui, antecipadamente, para dispensar o risco de serem mobilizados e se repetirem, enfraquecidos, logo mais à frente.
Em meados dos anos 1950, ainda adolescente, Glauber dirigiu encenações que combinavam poesia e teatro, apresentadas na Bahia pelo grupo Jogralescas Teatralizações Poéticas. E sua incursão pela literatura apenas começava. Quase 30 de seus poemas, escritos entre 1965 e 1981, estão reunidos no volume Poemas eskolhydos de Glauber Rocha (publicado postumamente em 1989). Transitando de motivos políticos (“Sua história segundo sua classe”, ou “Vieram os militares, deram um Golpe!”) a temas metalinguísticos (“A poesia ficou concreta – o país in Cultura!”), os poemas trazem influências de Oswald de Andrade e do Neoconcretismo, prestam culto a Drummond e Tom Jobim, acompanham-se de intervenções gráficas e desenhos do autor... Destaca-se uma paródia, escrita em Roma, ao antológico poema de Manuel Bandeira: “Voumembora pra nenhuma Pasargada / Sou inimigo do rei / Inda não posso ter mulher / Na cama que escolherei / Voumembora destinverno / Numestradiluminada / Anyway Anyway /.../”; ou um poema-piada-malevolente, à moda de outro homenageado, em original manuscrito: “Osval dran da dá / Dó ló só FÁ / Osvaldo d’Andrade / /.../ ME QUÉ CU MÊ /.../”.
Se outro de seus versos sintetiza exemplarmente a produção do poeta bissexto – “O melhor verso é desagregação” –, será a prosa inclassificável de seu livro Riverão Sussuarana (1978) que ostentará a potência máxima de seu pensamento iconoclasta e disruptivo e de sua fala verborrágica, ao mesmo tempo ancestral, vanguardista e experimental. Homenagem declarada a Guimarães Rosa, cujo espírito baixa e se torna personagem para experienciar e recontar episódios da H(eu)ztorya brasileira –marcadamente a Guerra de Canudos, a Coluna Prestes, o golpe civil-militar de 1964 – e da biografia de Glauber e sua família, é também peleja verbal com o Finnegans Wake, de James Joyce, tendo no coldre as armas potentes da oralidade popular colhida nas veredas de cordéis e desafios de repentistas.
Neologismos, citações de várias matrizes, exuberância ornamental, transgressões sintáticas e ortográficas – que implodem o código, arrastam por vezes a inteligibilidade e levam a um lugar de estranhamento e “estrangeirismo” na própria língua – aproximam o romance-rio (ou “poema barroco tropical dialético”) do discurso da quriosa encyclopedia de Qorpo-Santo, da rapsódia macunaímica de Mário de Andrade, das duras traduções-traições dos irmãos Campos, do Kadosh de Hilda Hilst, do Avalovara de Osman Lins...
Em 1957, Glauber Rocha filma o seu primeiro curta-metragem, Pátio, vindo a exibi-lo dois anos depois, em Salvador e no Rio de Janeiro. Assume em 1961 a direção do longa Barravento e a partir daí com Deus e o Diabo na terra do sol (1964), Terra em transe (1967), O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), ou seja, ao mal completar apenas 30 anos, já se incorporara definitivamente ao melhor do cinema brasileiro. Felizmente, sobre tais obras-primas há hoje farta bibliografia teórico-crítica. E sua presença nas plataformas de streaming e em outras mídias dá sinais claros de sua permanência e atualidade. Celebremos!
Gilberto Figueiredo Martins é professor de literatura na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis, desde 2006, e autor do livro Estátuas invisíveis – experiências do espaço público na ficção de Clarice Lispector (Edusp/Nanquim, 2010).