Os projetos de residência artística selecionados para o Rumos Itaú Cultural em 2016 refletem a diversidade da produção nacional contemporânea. Coletivos recém-formados, instituições com décadas de estrada e artistas independentes baseados para além do eixo Rio-São Paulo buscam se aprofundar em linguagens, trocar conhecimentos e expandir suas experiências.

De Rio Branco, capital do Acre, Cidade de Múltiplos Mapas é uma parceria entre o Grupo de Teatro Beco do Mijo e o Grupo Aguadeiro, de música e performance, para o desenvolvimento de oficinas que aprofundarão a pesquisa em suas respectivas áreas de atuação.

Já o projeto de Murilo Henrique Jacintho consiste em uma residência de quatro meses na Espanha, onde desenvolverá a série Todas Mujeres, que inclui um documentário com depoimentos de suas personagens.

Para concluir o trabalho Ciclo Amazônico – iniciado em 2013 –, a artista Juliana Notari pretende desenvolver na capital paraense e seu entorno duas novas videoperformances: Utinga e Combu.

O projeto Morrinho, criado em 1997 no Rio de Janeiro, volta-se para São Paulo, Brasília e Manaus onde propõe a realização de oficinas de construção de maquetes e criação de curtas-metragens para crianças de comunidades de baixa renda.

E, por fim, não exatamente um projeto de residência, Capacete 7200, de Helmut Batista, tem como objetivo documentar e disponibilizar na internet a rica experiência de quase 20 anos de residências artísticas internacionais no Rio de Janeiro com o projeto Capacete.

Conheça mais sobre os artistas e os projetos contemplados nesta edição do Rumos.

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Cidade de Múltiplos Mapas

Em 2013, o conto escrito pela acreana Florentina Esteves inspirou um coletivo de atores e músicos da Universidade Federal do Acre (Ufac) a criar o espetáculo homônimo que conta a história de uma moradora de um cortiço na região do Segundo Distrito, na capital Rio Branco, nos anos 1940. Nesse período, a cidade vivenciava o segundo ciclo da borracha e a personagem acompanha a desapropriação de seu bairro, habitado por trabalhadores pobres, boêmios e prostitutas, onde seriam construídas as estalagens para abrigar os “soldados” proletários que atuavam na coleta do látex e a consequente exclusão social que resulta desse cenário.

“É um texto que fala sobre a cidade e sobre a vinda de imigrantes, algo semelhante ao que Rio Branco viveu nos últimos anos com a chegada dos haitianos”, explica o ator, e um dos idealizadores da montagem, Quilrio Farias. Ele e outros alunos da Ufac uniram-se para montar a peça, que acabou extrapolando os muros da universidade e se transformou num projeto ambicioso, de união de artistas com intensa atuação local. “Eu fazia parte de um grupo de teatro de rua, o Vice-Versa. Já o [grupo] Aguadeiro tem um trabalho experimental que trata a música num formato performático”, diz ele.

Famoso na região, o Grupo Aguadeiro é uma banda que mescla ritmos brasileiros, dança, performance, literatura, circo e teatro, e tem nos vocais a cantora Maiara Rio Branco. Entre suas criações, Indocumentados é um show itinerante no qual o público dialoga com temas como migração e urbanização.

A seleção do texto da escritora Florentina Esteves, explica Farias, foi também uma decisão política: “O Norte ainda sofre muito preconceito. Por isso, escolhemos um conto contemporâneo, que trata de nossa cidade”, afirma. Juntos, instrumentistas e atores desenvolveram a encenação que mistura dança, música e performance, e que foi exibida em todo o circuito cultural do Acre.

O espetáculo do agora Grupo de Teatro Beco do Mijo permitiu aos artistas desenvolver questionamentos sobre o próprio método de encenação. “Tentamos fugir da interpretação caricatural mesmo no papel de bêbados e prostitutas. Buscamos humanizar esses personagens.”

O projeto Cidade de Múltiplos Mapas surgiu da necessidade de encontrar apoio para aprofundar esse encontro criativo. “Atuamos com quase nada de dinheiro”, desabafa Farias. “Nos encontramos por ideologia, porque gostamos de criar juntos, mas isso estava se tornando praticamente inviável”, diz ele, que comemora a seleção pelo Rumos. “Graças ao programa de residência, nos próximos sete meses poderemos nos dedicar a estudar e discutir para dar maior profundidade ao nosso trabalho”, afirma.

Durante esse período, os artistas participarão de oficinas de linguagem corporal e performática e de iluminação e terão um espaço para remontar seus espetáculos. “Queremos apresentar o resultado para a comunidade. Vamos continuar na luta.”

Retrato de Cola

Numa manhã de abril de 2015, os muros de Leme, interior de São Paulo, amanheceram cobertos por retratos gigantes. Eram homens e mulheres que encaravam a câmera com expressões de desconfiança, surpresa e curiosidade. Reproduzidos em preto e branco sobre um fundo ultracolorido, formado por dezenas de recortes de revistas, dona Isabel, seu Sidnei, seu Anderson e outros senhores e senhorinhas pela primeira vez despertavam para si a atenção dos moradores dessa cidade localizada a 189 quilômetros da capital São Paulo. Mas, até aparecer estampados no espaço público, esses personagens eram apenas um número. Todos eles são moradores de rua que passam despercebidos mesmo no cotidiano de um município de 100 mil habitantes.

“As pessoas se questionavam sobre os retratos e, de repente, todos passaram a fotografar e compartilhar as imagens”, conta Murilo Henrique Jacintho. Ali, diz ele, nascia o Retrato de Cola, estudo que começou como um experimento técnico, de colagem e reprodução de fotografias em grandes formatos, e acabou se transformando num engajado trabalho de arte de rua. “Foi uma maneira de dar voz a quem não tem. Esses retratos empoderam idosos em situação de abandono, sem teto. Pessoas que se sentem invisíveis”, acredita ele.

De Blanca, cidadela na província de Murcia, na Espanha, onde realiza seu projeto de residência artística premiado pelo Rumos, esse lemense de 26 anos se prepara para espalhar seus retratos pelo mundo. Formado em jornalismo, Jacintho tem uma trajetória ligada às artes e atua como radialista, professor, artista plástico, fotógrafo e cantor.

A concepção das imagens em grandes dimensões coladas sobre as páginas de revista, que funcionam como uma moldura tridimensional, tomou forma para resolver um problema: Jacintho queria fazer retratos gigantes, mas não tinha dinheiro para a impressão. Por isso, passou a imprimir as fotos em 30 folhas de sulfite que, juntas, revelam a imagem. Solucionada a questão, faltava um conceito. Foi aí que o amigo e fotógrafo Lucas Rafael entrou em cena. “Ele sempre gostou de retratar moradores de rua e idosos. Utilizamos esses registros nas colagens”, diz o artista.

Batizada de (In)visível, a série foi a primeira de uma sequência que inclui manifestos poéticos questionando relações de poder e padrões estéticos, entre outros temas. “É um projeto efêmero, submetido às ações das pessoas, da chuva, do sol ou ao desgaste do tempo”, diz Jacintho.

A residência, afirma ele, inaugura uma nova fase do Retrato de Cola. No instituto espanhol de investigação e criação contemporânea AADK ― Centro Negra, Jacintho desenvolve a série Todas Mujeres, na qual, além de fotografar “mulheres em situação desprivilegiada”, irá produzir um vídeo dando voz às personagens. “Muita vezes, esse é o único retrato que elas terão na vida”, defende.

Utinga e Combu

Não é de hoje que a artista visual pernambucana Juliana Notari usa o próprio corpo para discutir temas como vida, morte, tempo, evolução e o poder do feminino. Em 2013, foi selecionada para participar do salão Arte Pará e resolveu fazer uma série de videoperformances chamada Ciclo Amazônico, que estabelecia uma relação visceral entre natureza, obra, público e ela mesma: “Fiquei impressionada com a potência da natureza e da cultura da região”, conta ela.

No ano seguinte, Juliana foi contemplada com o 1º Prêmio Funarte Mulheres nas Artes Visuais e realizou uma residência de seis meses na cidade de Belém, no Pará, que resultou em duas videoperformances. Em Soledad, ela limpa um mausoléu abandonado à exaustão e tem sua roupa branca impregnada de limo. Já em Mimoso, ela é arrastada por um búfalo que seria castrado em seguida. Após a castração do animal, Juliana come seu testículo cru ― uma prática local transformada em ritual pela ação artística.

Para concluir o Ciclo Amazônico, Juliana propõe agora residência artística na capital paraense e seu entorno para realizar duas novas videoperformances, em processo de desenvolvimento: Utinga e Combu.

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Utinga é o nome do parque estadual criado em 1993 com o objetivo de preservar ecossistemas da região. Em um dos lagos do parque, cenário escolhido para a performance, há um sumidouro – dispositivo para controlar a liberação de fluxos de água ― com um enorme furo circular. Em frente a esse espaço, a artista vai se deitar nua, permanecendo na mesma posição durante 24 horas, enquanto um registro em vídeo marcará o nascer e o morrer do dia, as mudanças na paisagem e em seu corpo e o movimento das águas.

A Ilha do Combu, distante cerca de 15 minutos de Belém por barco, dá nome à segunda videoperformance proposta pela artista. O lugar é ocupado por árvores centenárias como a samaúma, conhecida pelos indígenas como mãe sagrada da floresta, que chega a atingir até 90 metros de altura com tronco de até 3 metros de diâmetro e apresenta, de acordo com a medicina popular, o poder de fazer mulheres engravidarem.

Juliana Notari ― vestida de branco como uma enfermeira e portando uma maleta com espéculos de aço inoxidável, sangue de boi e sementes de árvores locais ― sai à procura da samaúma. Ao encontrá-la, utiliza algumas fendas naturais de seu tronco para banhá-las com o sangue, introduzindo com o instrumento uma grande semente no seu interior, garantindo-lhe simbolicamente a imortalidade.

Foto-estudo-videoperformance-Utinga---Juliana-Notari

Em ambas as obras, o vídeo não é utilizado apenas como mero registro da ação, mas sim como ferramenta que atua na performance: “É o campo em que eu consigo me realizar. A partir das vivências surgem os trabalhos, que têm essa narrativa que eu já trago. Utinga e Combu requerem uma equipe, um trabalho em conjunto. O que era até então solitário, feito em museus e galerias, ganha outros acessos. Estou mais aberta para o meio”, conclui.

Projeto Morrinho

“Tenho orgulho de dizer que faço um trabalho que fala sobre as favelas”, conta Cirlan Oliveira. Ele e Ranieri Dias são sócios fundadores do projeto Morrinho Revolução Artística, que ultrapassou os limites da comunidade do Pereirão, no Rio de Janeiro, ganhou status de arte, consagrada nos principais salões do mundo, e agora será replicado com crianças de comunidades carentes de São Paulo, Brasília e Manaus.

Tudo começou em 1997, quando os irmãos Cirlan e Maycon Oliveira, então com 14 e 8 anos, se reuniram com mais oito garotos e começaram a recolher os restos de material de trabalho do pai, pedreiro, para construir uma espécie de maquete da comunidade em que viviam.

Logo, tijolos quebrados ganhavam cor e, ao lado de bonecos e carrinhos de brinquedo, a realidade da favela passou a ser representada em histórias que contavam cenas do cotidiano com riqueza de detalhes. Os bailes funk, os churrascos na laje, as conversas da vizinhança e até a chegada do caveirão, nome popular do carro blindado usado pelo Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro).

“A comunidade era barra-pesada e as pessoas não entendiam o que estava acontecendo. Achavam que era apologia às facções criminosas, mas era só um retrato do que a gente via, um escape da violência para ocupar a mente”, explica Cirlan Oliveira.

As maquetes foram crescendo e, em 2001, chamou atenção dos documentaristas Fábio Gavião e Markão Oliveira, que emprestaram seus equipamentos e iniciaram com os garotos uma série de oficinas audiovisuais, transformando os enredos em curtas-metragens. Dessa iniciativa nasceu a TV Morrinho, produtora de curtas-metragens, documentários autorais e vídeos institucionais que hoje contabiliza mais de 40 vídeos no YouTube.

Em 2002, uma matéria da revista National Geographic projetou a produção dos meninos, atraindo o interesse de programas de TV e de curadores de arte, que levaram os garotos a lugares antes inimagináveis, consagrando-os como artistas: Bienal de São Paulo, Barcelona, Paris, Munique e Veneza. Esta última contou com uma reprodução do Morrinho em uma instalação de 240 metros quadrados, 13 mil tijolos e uma TV de tela plana exibindo os vídeos produzidos por eles, fazendo com que os visitantes se sentissem dentro da comunidade.

“Nem acredito que o Morrinho vai fazer 20 anos!”, comemora Cirlan Oliveira, que continua a viver na comunidade e nela desenvolve seu trabalho de revolução artística, como gosta de chamar, reproduzindo-o com crianças interessadas em um futuro distante da violência e do tráfico de drogas no próprio Pereirão. “Não tenho por que sair daqui. Cresci aqui, me sustento na favela e trago visibilidade para ela”, conta.

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Agora, o resultado da experiência será compartilhado com crianças das periferias de São Paulo, Brasília e Manaus. Com o material sugerido pelos integrantes do Morrinho (areia, concreto, tijolo e o que for característico da região visitada), as comunidades serão reproduzidas em maquete. A segunda etapa do projeto pretende fabular a vida dos participantes dentro da comunidade construída por eles. “A ideia é fazer residências artísticas com não artistas. A cada microrresidência será realizado um curta-metragem, como uma brincadeira que estimule a reprodução de histórias, representando-as de modo original em sua amoralidade, humor e violência, de encenar sua própria vida”, explica o produtor Lucas Silveira.

Capacete 7200

Quando voltou para o Brasil no fim dos anos 1980, após uma longa temporada morando em diversos países do mundo, o artista Helmut Batista notou um vácuo no cenário cultural. “A situação era muito precária no mundo das artes. Não havia um projeto de residência artística nacional nem internacional”, conta.

Batista decidiu, então, dar sua contribuição para mudar esse panorama. Em 1988, fundou o projeto Capacete, no Rio de Janeiro, para promover residências com artistas nacionais e internacionais. “A ideia era justamente criar um espaço de intercâmbio de ideias entre artistas brasileiros e de outros países, fomentar não só a produção, mas o debate sobre a arte contemporânea”, diz Batista. “Naquela época, quase não tínhamos acesso à produção internacional e o Capacete teve uma função importante, trazendo artistas europeus, latino-americanos para temporadas de pesquisa no país”, conta Batista que, desde o início, teve apoio financeiro de entidades de fomento internacionais, como Mondrian Funds (Holanda), Gasworks (Londres), Fullbright (EUA) e Instituto Goethe (Alemanha), entre outros.

Em seus 18 anos de existência, mais de 400 artistas, curadores, pesquisadores, críticos, filósofos e arquitetos dos mais diversos países participaram das residências de pesquisa e criação do Capacete, incluindo nomes como Marepe, Dominique Gonzales-Forster, Ricardo Basbaum e Andrea Fraser. Agora, Batista pretende documentar toda essa experiência no projeto Capacete 7200, um site que deve entrar no ar em 2018, marcando os 20 anos da iniciativa.

O projeto pretende reunir registros de todos os trabalhos realizados pela instituição. Além das residências, o antigo casarão no bairro carioca da Glória, onde funciona a sede do projeto, abriga também apresentações públicas em diversos formatos, formação para adultos (Escola Capacete) e para crianças (Pequeno Laboratório), cursos abertos e publicações. Um seminário será organizado para discutir os desafios das instituições independentes de ensino de artes, com a participação de diversos colaboradores internacionais, como a curadora equatoriana Manuela Moscosso, a diretora do Macba (Museu de Arte Contemporânea de Buenos Aires) Teresa Riccardi e o escritor boliviano Max Jorge Hinderer Cruz.

O conteúdo do site será produzido e definido de forma aberta e colaborativa, com a participação de diversos artistas e profissionais. “Vai ser um registro fiel do nosso modo de trabalho, por isso estamos envolvendo muitos colaboradores. Mas ainda não sabemos como vai funcionar esse processo de produção. É uma obra em aberto”, diz o fundador e idealizador do projeto.

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