por Duanne Oliveira Ribeiro

 

No processo do projeto Poesia Contra a Violência, a literatura se transfigura: é pertencimento, é prática viva, é coisa cotidiana. Organizado pelo poeta Sérgio Vaz, consiste em levar saraus para escolas de áreas periféricas de São Paulo. Em agosto, acompanhamos uma dessas visitas, que aconteceu em meio a um festival de cultura da Escola Estadual Professor Luís Magalhães de Araújo, no bairro Jardim das Flores, na capital paulista. No pátio repleto de cadeiras de plástico, os alunos se apinhavam na frente do palco, onde outros dançavam. O som da música abafado denunciava a festa enquanto entrevistas eram feitas em uma sala de professores.

“Eu estou elétrico, cara”, revelou Sérgio. “Eu gosto de sentar ali para ver o clima. E aí aquele bagulho vai tomando eu. Daqui a pouco é outra pessoa, irmão.” A fala do poeta tem a prosódia típica do subúrbio de São Paulo: um abandono da concordância verbal da norma dita culta, ritmo e ênfase particulares, além de certas expressões tradicionais. Naquele momento, dizia, ele “se preparava psicologicamente” para a apresentação: “Quando eu entrar ali é outro papo. Aí é nós com nós. Aí some a vaidade, some preconceito, some hipocrisia. Aí é nós, cara. É nosso povo”.

Sérgio é também criador do Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), fundada em 2001. Segundo ele, o Poesia Contra a Violência já acontecia desde 1998. Foi incorporado à Cooperifa e realizado de forma esparsa até 2010, quando voltou com mais força. O projeto funcionava de forma voluntária, às vezes, a escola auxiliava com transporte. “A ideia”, explica o poeta, “sempre foi fomentar a literatura, ser parceiro da escola, ser parceiro dos professores. E entender que, se a gente escreve sobre a periferia, a quebrada tem que conhecer o nosso trabalho. Não justifica você falar de algo que não conhece e de pessoas que também não te conhecem”.

Impactos e Parcerias

É comum que os saraus do Poesia Contra a Violência contem com participações especiais – nesse dia, o convidado era o poeta e rapper Renan Inquérito, que se disse herdeiro de Sérgio, “fruto da semente que ele plantou”. Ainda mais: “Eu comecei a fazer poesia por conta de pessoas como ele. No interior de São Paulo, faço um sarau que é espelhado na Cooperifa. Nós não inventa roda de nada, tá ligado? Nós só bebe da fonte e tenta levar um pouquinho para outros lugares”. Era a primeira vez que Renan, que também é professor de geografia, vinha se apresentar em uma escola a convite de Sérgio, embora já tivesse ido em outras ocasiões.

Quem trouxe o projeto para a Luís Magalhães – e elaborou o festival cultural – foi o coordenador pedagógico Donizete da Silva Fernandes, conhecido como Tom. Professor de matemática com um histórico de direção de jovens na Igreja Adventista, Tom organiza anualmente eventos para que os alunos “mostrem habilidades diferentes daquelas de sala de aula: escrever, compor, dançar, pintar, expor”. Teve contato com a literatura marginal – gênero em que são incluídos escritores como Sérgio Vaz, Chacal e Férrez – como professor da sala de leitura da Escola Municipal Oliveira Viana, no Jardim Planalto, em São Paulo, onde também atua. Viu nisso um material que precisa ser conhecido: “Não é porque é da periferia que é ruim, que é descartável. Da periferia só sai violência, as coisas ruins. A mídia não mostra as coisas boas. E tem coisa boa na periferia”.

“Eu faço esse trampo em parceria com a escola”, justificou Sérgio, “porque eu sou o artista e vou um dia só. Então eu também tenho muito respeito com os professores que estão todos os dias aqui, que seguram essa barra”. Nesse sentido, não se trata de querer corrigir a abordagem dos educadores: “Eu não venho com essa de motivar, não venho com essa de como ensinar. Eu estou junto, você está me entendendo? Estou junto do professor. ‘Professor, vim te ajudar. Vou falar de poesia’”. Pelo contrário, é o próprio poeta que passa por um aprendizado: “Quando eu comecei, era extremamente vaidoso, achei que estava mudando alguma coisa – e hoje essa alguma coisa é que está me mudando”.

Essa modificação se dá principalmente no contato com os alunos: “O jovem tem uma linguagem, e essa linguagem se aprende na rua. Não se aprende falando estatísticas, não se aprende lendo jornal, vendo TV. É a rua que ensina, certo? E a literatura, se quiser atingir o jovem, tem que descer do pedestal, tem que falar ‘ela é falsiane’, ‘é da hora’”.

Sérgio parece entender que o que afasta os alunos da arte são essas barreiras de classe e cultura: “Todo mundo gosta de poesia, só não sabe que gosta. A poesia está no funk, no samba, no rap, no sertanejo, não é? É só tirar a música, você vê que está lá a poesia. É isso que a gente vem fazer: desmistificar a literatura, dizer para todo mundo que literatura é uma coisa da hora, que é uma coisa para todos e para todas”. O impacto dessa postura diferente, contou ele, é marcante: “Tem professores e diretores que dizem que muda a aula depois que a gente passa. E hoje acabei de entrar aqui e um rapaz falou: ‘Tal moleque começou a escrever por causa de você, cara’”.

“Quem nunca foi em um sarau”, comentou Renan, “tem um conceito de literatura vindo daquilo que é passado na sala de aula. Quando você apresenta a poesia na sua forma oral, performática, ela ganha uma vida. Não é mais um livro que está ali passivo... é a poesia viva”.

Identidade e Pertencimento

Outra questão importante nesses encontros é a identidade. “Porque”, disse Sérgio, “a gente é da periferia. A gente não está vindo de fora. E a gente não fala da periferia, a gente fala com a periferia. Então tem também um ganho de autoestima o cara ver um autor na escola – quando quase nenhum quer ir – e um autor da quebrada”.

No entender de Renan, isso se aplica ao próprio Sérgio: “O Sérgio Vaz é um poeta vivo, do nosso tempo, que mora a poucos metros desta escola. É uma coisa que fala por si só. Quando o vendedor de carro fala ‘Olha o poeta!’, quer dizer que é uma poesia que está perto do povo, entende? Na minha época de criança, eu ouvia falar de poetas, mas de poetas mortos. Eu não conhecia nenhum poeta pessoalmente. Eu nunca vi um poeta na fila do pão, no meu bairro, na minha rua. Era uma figura muito distante, que a gente achava que existia, sei lá, numa torre. E aí você descobre que não, você descobre que a poesia também pode estar no dia a dia”.

Para Tom, Sérgio “fala com a alma do cara da periferia mesmo. Ele entende, sabe? Ele conseguiu passar isso em forma de escrita. É muito lindo”. O coordenador disse se identificar com a poesia dele porque “a gente, que conseguiu subir um pouco na vida pela luta de estudo, leitura e tudo mais, se vê naquilo mesmo. E, quando não me vejo, eu vejo aqueles com quem trabalho: o amigo, o aluno. A vida do aluno é tudo o que ele escreve mesmo. O ônibus lotado, a dificuldade nas filas para atendimento público, a comida pouca na mesa, a violência aqui e acolá”.

“É isso”, concluiu Sérgio, “eu acho que a literatura tem que descer do pedestal para chegar ao leitor. Se o cara não vai até a livraria, o autor que tem que ir até onde ele está. A velha e boa máxima: ‘Todo artista tem que ir aonde o povo está’. A minha ideia sempre foi esta: fazer com que a literatura floresça. Fazer a minha parte. É muito fácil dizer ‘O povo não lê, o povo não sei o quê’. Os autores querem ir na escola pública?”.

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