Por Jessica Orlandi

Quando os diretores Isabel Joffily e Pedro Rossi decidiram conhecer o senhor sírio que vendia salgados árabes perto do local onde moravam, não imaginavam que por meio dele entrariam em contato com os personagens de seu próximo filme, Depois da Primavera. O longa-metragem, o primeiro projeto em que o casal – sócios na Coevos Filmes – assina a direção junto, tem como tema o processo de aculturação de dois jovens sírios no Brasil e trata dos efeitos do choque cultural nas relações familiares.

“Moramos no Leme, no Rio de Janeiro, e há dois anos e meio, na esquina da nossa rua, um senhor sírio chamado Mohssen começou a vender salgados árabes”, conta Isabel. “Eu e o Pedro passamos a comprá-los e a desenvolver uma relação com esse senhor. Volta e meia perguntávamos a ele o que estava acontecendo na Síria e ficamos com vontade de fazer uma entrevista filmada para entender melhor a situação naquele país, mas do ponto de vista de um local. Só que, como ele não falava português muito bem, tivemos de chamar um tradutor para nos ajudar.”

Foi assim que os cineastas conheceram, em 2014, o jovem sírio Adel Bakkour. Cursando química na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele, que havia chegado ao país dois anos antes com o irmão mais novo, Hadi Bakkour, se mantinha com uma bolsa de pesquisa no valor de 800 reais por mês e morava em uma barraca no corredor do alojamento dos estudantes da instituição. “O Adel foi fazer a tradução da conversa com o senhor Mohssen, mas acabou virando personagem do filme”, explica Pedro. “Nós achamos a vida dele muito interessante para contar a história dos refugiados sírios no Brasil.”

Adel (à direita) e Hadi Bakkour, refugiados sírios que vivem atualmente no Rio de Janeiro, são os personagens centrais do documentário | Foto: divulgação
Adel (à direita) e Hadi Bakkour, refugiados sírios que vivem atualmente no Rio de Janeiro, são os personagens centrais do documentário | Foto: divulgação

 

Os irmãos Adel e Hadi, atualmente com 23 e 22 anos de idade, nasceram em Aleppo, a segunda maior cidade da Síria – e a mais atingida pela batalha entre rebeldes e soldados do regime de Bashar al-Assad. Chegaram ao Rio de Janeiro na condição de refugiados e com a expectativa de trazer os pais ao Brasil quando possível. Diferentemente do irmão, Hadi foi morar com outros refugiados sírios em uma igreja católica em Botafogo e trabalhar como motorista para uma empresa de turismo de um senhor libanês, sonhando em ser ator e em cursar uma universidade.

“De alguma maneira, Adel e Hadi não reforçavam a ideia que nós temos dos refugiados”, diz Isabel. “Um fazendo química na UFRJ e trabalhando com pesquisa; o outro tentando entrar na faculdade – o que aconteceu em 2016. E eles conseguiram se estabelecer, se relacionar, se misturar com as pessoas aqui.” O pai dos rapazes, Abdo Bakkour, de 80 anos, chegou da Síria em dezembro de 2015. “Agora, o grande evento do filme é a vinda da mãe [Lawahez Diab], de 65 anos, que nunca saiu do seu país natal”, conta Pedro. “Vamos buscá-la no Líbano ou na Turquia, com um deles, entre março e abril de 2017. Não será nada simples, já que as duas fronteiras estão bem complicadas de ser ultrapassadas.”

Ainda de acordo com os diretores, o documentário mostra a história dessa família que se divide, fica sem contato durante anos e espera pelo dia do reencontro. “Adel e Hadi vieram para o Brasil com uma idade em que as transformações físicas e emocionais já acontecem. E mudaram completamente aqui”, diz Isabel. “O pai deles, quando os revê depois de três anos, enxerga filhos completamente modificados. Nós estamos em contato com os irmãos há mais de dois anos, filmando pontualmente e tentando captar esse olhar.”

O Brasil como destino e as primeiras transformações

Segundo Isabel e Pedro, os irmãos Adel e Hadi deixaram a Síria porque participaram da Primavera Árabe e das manifestações contra o governo de Bashar al-Assad. “As transformações começaram a acontecer nesse momento em que eles passaram a se manifestar politicamente”, diz Pedro. “A vida dos dois ficou inviável na Síria, e o senhor Bakkour, que é uma pessoa de mente aberta, um intelectual que tinha uma condição financeira boa, decidiu que eles deveriam deixar aquele país.”

Apesar de todas as diferenças culturais, sociais e religiosas, a escolha do Brasil como destino para os irmãos se deu porque, tempos atrás, o pai deles tivera uma ligação com o país. Assim que conseguiram se estabelecer no Rio de Janeiro, os meninos foram morar em um apartamento na Ilha do Governador, que montaram especialmente para receber Bakkour.

“Esse apartamento é como uma pequena Síria”, comenta Isabel. “Ali eles falam árabe, fumam narguilé e convivem com esse senhor de 80 anos e suas lembranças. O filme vai ter mais ou menos esse cenário. Vai mostrar esse ponto de encontro da família – que espera pela chegada da mãe para decidir qual será o rumo de todos –, sua vida no Brasil e de que forma essas transformações exteriores podem provocar ruídos internamente, e vice-versa.”

Outra transformação relevante apontada por Pedro foi a mudança religiosa pela qual Adel e Hadi passaram. “Eles são sunitas, mas se dizem ateus agora”, explica. “Aqui eles se libertaram de alguma forma; se permitiram não ter uma prática religiosa.” O longa mostra ainda fotos dos irmãos na Síria. “Essas imagens revelam como eles se transformaram também fisicamente”, conta Isabel. “Obviamente, o aspecto físico é uma coisa menor, mas de certa maneira transmite o que está acontecendo por dentro.”

A vida no Brasil e as mudanças que estão por vir

De acordo com os cineastas, Adel e Hadi estão totalmente adaptados ao país e completamente inseridos social e culturalmente. Hoje, ambos trabalham como professores, dando aulas de língua árabe na ONG Abraço Cultural – onde os cursos são ministrados por refugiados de diversos países. Hadi deixou o apartamento que dividia com o pai e o irmão mais velho para viver com a namorada, que é brasileira.

Segundo Isabel, é muito interessante ouvir Adel e Hadi falando sobre algumas das nossas questões, como a violência, já que vieram de uma guerra. “Eles têm um olhar muito sensível e não convergem sempre nas opiniões”, conta. “Um deles considera que o ideal é que a guerra na Síria acabe de uma vez por todas, mesmo que Bashar al-Assad tenha de permanecer no poder. O outro acha inconcebível manter o presidente em seu cargo, mesmo que a guerra continue.”

O reencontro da família Bakkour, que vai decidir não só o destino de Adel e Hadi, mas de todos os seus integrantes, está previsto para o primeiro quadrimestre de 2017. O documentário deve ser lançado no segundo semestre do mesmo ano.

Veja também

Em primeira pessoa, diante da obra

“Todo mundo é capaz de criar”, diz a documentarista Renata Druck ao descrever o workshop Projeções, que aconteceu em agosto no Itaú...