obra: Memória da Censura no Cinema Brasileiro
selecionado: Leonor Souza Pinto
Desnorteada, com raiva e se sentindo enganada. Foi assim que Leonor Souza Pinto deixou a sala do cinema Roxy, em Copacabana, em 1982. Ela havia acabado de assistir a Pra Frente, Brasil e estava completamente atônita. Alvo de censura e muita polêmica, o filme de Roberto Farias era finalmente exibido e revelava uma realidade chocante para a então atriz e estudante de teoria do teatro de 22 anos. “Eu saí de lá engatinhando, não sabia onde estava, foi uma grande porrada e isso ficou guardado na minha cabeça: me enganaram, o Brasil não é o que pensei que fosse.”
Não que Lolô, como é chamada pelos amigos, não soubesse do que acontecia naquela época. Ela já tinha vivido pouco tempo antes uma situação traumática, quando os militares invadiram uma sala e expulsaram os alunos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), que tinham aula no antigo prédio da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Flamengo.
Mas Lolô não era da geração que lutou contra a ditadura. Ela tinha apenas cinco anos quando ocorreu o Golpe de 1964 e toda a sua formação educacional já foi marcada pela censura. “Existiam dois países. Um oficial, vendido pelo sistema de ensino e divulgado pelos militares, para o qual eu fui educada. E, por trás dele, existia outro país, do qual eu não tinha o menor conhecimento”, conta.
Exemplo disso era uma foto sua criança, ainda em São Carlos, cidade do interior de São Paulo onde nasceu e morou até os 18 anos, em que aparece ao lado de um adesivo colado no carro de sua mãe com a famosa propaganda da ditadura: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
“A leitura que eu fazia daquilo era feliz, era de que temos de amar o nosso país e quem não gosta dele que vá embora. Não sabia que por trás disso estava todo um esquema de opressão, de matança, de tortura. E, de certa forma, naquelas duas horas de Pra Frente, Brasil, o Roberto desvendou esse mistério para mim, da forma mais brutal possível.”
O que fazer, então, com essa informação? A atriz e pesquisadora demorou 14 anos para encontrar um jeito de digerir “essa coisa, esse bolo” que sentiu ao ver o filme. Foi apenas em 1996, quando morava na França e recomeçava o seu mestrado, que Leonor Souza Pinto juntou o incômodo provocado pelo longa com outra informação que tinha lido anos antes sobre os arquivos da ditadura e teve uma ideia: “Vou vasculhar essa censura”.
Ela começou com a análise da peça Roda Viva, de Chico Buarque. O trabalho resultou em sua tese de mestrado em Letras Modernas, com especialização em teatro, pela Universidade de Toulouse. Ao analisar o material, Lolô identificou que existia uma ligação entre a censura e os eventos que tumultuaram a apresentação do espetáculo – como a ação do grupo paramilitar Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que invadiu o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, e espancou os atores. “A censura em si era uma coisa muito maior do que eu tinha imaginado, ela era parte de um esquema de sustentação do golpe militar.”
Mas era preciso investigar mais a fundo o assunto. Como pesquisa do seu doutorado, Leonor analisou os processos da censura no cinema, selecionando uma grade de pouco mais de 20 filmes, entre os quais não poderia faltar Pra Frente, Brasil. “Provei a minha tese de que a censura não estava apenas a serviço da ditadura. Ela era um dos pilares de sustentação do regime”, revela.
Quando retornou em definitivo para o Brasil, a pesquisadora se sentiu frustrada ao se dar conta de que todo esse trabalho permaneceria com acesso restrito. Até que alguém lhe falou sobre um edital da Petrobrás, ao qual não deu muita bola inicialmente. Um dia antes do prazo final, porém, ela resolveu inscrever a sua ideia de digitalizar e colocar à disposição gratuitamente todos esses documentos em um site. Aprovado, nascia em 2003 o Memória da Censura no Cinema Brasileiro (http://www.memoriacinebr.com.br/), que contabiliza atualmente 14,4 mil documentos entre processos de censura, material de imprensa e relatórios do Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo) de 444 filmes brasileiros.
Desde 2007, no entanto, a iniciativa estava parada por falta de patrocínio. Contemplado no Rumos, o projeto será retomado agora. A previsão da pesquisadora é que o site contabilize 140 mil documentos. Nesta nova etapa, a ideia é digitalizar cerca de seis mil documentos.
“Mesmo sem patrocínio há cinco anos, o site recebe mais de seis mil visitas/mês, do Brasil e de países estrangeiros, sem qualquer publicidade. A documentação suscita o interesse por nosso cinema, inspira projetos de preservação e multiplicou-se em dezenas de trabalhos acadêmicos – desde monografias de fim de curso a pós-doutorados, além de ser utilizada por professores do ensino médio no Brasil”, ressalta.