Timóteo Scrypnik, filho de Anna Ambrosichuk e de Mitrofan Scrypnik, nasceu em 1901 em Hotim, na Rússia. Chegou ao Brasil em 1933, ao atravessar a fronteira com o Uruguai. Provavelmente não estava só. Era integrante de uma companhia artística formada pelos “cossacos russos, combatentes da grande guerra e expatriados daquela nação, após movimento revolucionário de 1918”, conforme deixa ver carta assinada por certo Ivan Pavlechenko, chefe desse grupo. O Cossacos de Kuban, que percorreu por terra mais de dez anos quase todo o Brasil, do Sul ao Norte, se exibiu “em diversas localidades, inclusive nas capitais, com seus trabalhos de equitação, nos moldes dos exercícios da Cavalaria dos Cossacos Russos, e com um conjunto vocal que tão calorosos aplausos arrancou de grandes assistenciais em todos os recantos do território brasileiro”, segundo o documento.
O texto, datado de 20 de abril de 1943, seguiu do município de São Caetano à Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, no Recife, com um propósito: solicitar salvo-conduto para que o grupo prosseguisse viagem. A carta pertence ao prontuário funcional de número 28.063, que está relacionado a um conjunto de fichas produzido pela extinta Delegacia de Ordem Social e Política de Pernambuco (Dops/PE) e dedicado, exclusivamente, à identificação e controle de artistas em trânsito pelo Estado entre os anos de 1934 e 1954. Ao todo, são 403 fichas, com seus prontuários correlatos, que repousavam nos arquivos da Dops/PE desde 1991 sob a salvaguarda do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (Apeje) até caírem sob os olhos da pesquisadora, jornalista e produtora Clarice Hoffmann.
O que, à primeira vista, essas fichas pareciam revelar? “A investigação preliminar sobre a documentação apontou para a existência de uma movimentação cultural no Recife protagonizada por sujeitos aparentemente desconhecidos e por artistas cujas vidas e obras se confundem com a história do circo, do teatro, da música, do rádio e do cinema brasileiros”, conta Clarice. Para conhecer esse capítulo até então adormecido da história da arte no Brasil, Clarice idealizou o projeto Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, que com o apoio do Rumos Itaú Cultural fala de artistas que criaram táticas de resistência à repressão do Estado durante o período de 1934 a 1958.
O fichário que dá acesso aos prontuários começa na letra M. Estima-se que o início do alfabeto tenha se destruído, provavelmente por efeito da água, pois muitas das fichas estão manchadas. Nele estão as estratégias de convívio com um regime repressor do então Estado Novo de Getúlio Vargas, como o caso da bailarina e contorcionista Rita Helene Gouillaux. Como a documentação deixa ver, diversas dúvidas pairam sobre a sua real identidade. Rita nem sempre declarava aos investigadores os mesmos dados. Às vezes era casada, outras vezes solteira. Às vezes doméstica, outras artista. Usou inclusive nomes falsos, Jacque Line Rolland foi um deles.
Essas pequenas histórias aparentemente comuns revelam outro lado interessante: a cena cultural, embora vibrante, e que se dava entre paredes de cabarés, teatros, salões de festas, hotéis, mesas de cartomantes, circos e cassinos, não foi abafada apenas pela repressão policial. As narrativas reveladas pelo conjunto de fichas mostram que o cenário também foi ignorado pela intelectualidade da época em um momento em que se discutiam as faces políticas e artísticas do movimento modernista, em São Paulo, e sobretudo regionalista, cujo centro foi o Recife. Não que festas e farras fossem escondidas. Anúncios de jornais da época pesquisados por Clarice e sua equipe, como a própria documentação acessada por ela, mostram que até mesmo o interventor Agamenon Magalhães frequentava a cena ao receber homenagens em teatros.
Objeto central do projeto, a documentação produzida pela Dops sobre os artistas daquela época terminou por permitir a passagem de pessoas do passado rumo ao presente. São fantasmas, portanto, cujas histórias de vida, para existir, precisaram se chocar contra o poder.
São russos, argentinos, italianos, espanhóis, polacos, húngaros, pessoas fugidas de estados de exceção em seus países e que viram no Brasil possibilidade de dias melhores. Aproximadamente 60% dos nomes fichados são de brasileiros, muitos cariocas ou paulistas. “Nas fichas e prontuários produzidos pela Dops/PE, quando visualizados lado a lado, encontramos a estranha vizinhança da bailarina de salão com o pugilista, do cantor de rádio com o malabarista circense, dos dançarinos cossacos russos com transformistas”, conta Clarice.
O resultado do trabalho será um site com acesso a uma parte significativa dos documentos, aliados a textos e fotografias que mostram os rastros mágicos das histórias de cada um dos homens e das mulheres artistas, que tiveram a vida sitiada pela Dops/PE (mas também pelo Deops/SP e pela Dops/RJ, posto que estavam em trânsito).
O site Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos abrirá espaço, por meio de uma convocatória, para que artistas enviem projetos que possam, por outras linguagens e inspirados na documentação, ressignificar a maquinaria discursiva criada pela polícia sobre essas pessoas.
São fragmentos, trechos de cartas, fichas de identificação, cardápios de restaurante, pequenas anotações, fotografias que podem subsidiar novas pesquisas ou servir de matéria bruta para que artistas construam narrativas tendo como base esse material.
Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos pretende ser, portanto, um livro aberto a colaborações. A intenção não é necessariamente recontar a história à luz do contemporâneo, mas formar “uma antologia de existências. Vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras sem nomes, juntadas em um punhado de palavras”, como escreveu o filósofo francês Michel Foucault, em seu trabalho intitulado A Vida dos Homens Infames, texto que, como a própria trajetória dos artistas mundanos, inspira esse projeto.
Os passos do trabalho podem ser acompanhados no blog obscurofichario.com.br.