Encontra-se em fase final de digitalização o acervo pessoal de um dos mais importantes nomes da cultura brasileira contemporânea: Lucio Costa (1902-1998), arquiteto cuja atuação determinou novos rumos, abriu caminhos e ajudou a estabelecer o movimento moderno no país.

“Percorrer esse acervo é percorrer a cabeça de uma pessoa muito difícil de enquadrar em uma direção só. Tem pessoas que olham mais o arquiteto, tem pessoas que olham mais o urbanista, mas com ele não dá para separar em compartimentos, porque é tudo junto e ao mesmo tempo, e uma coisa interage com a outra e sempre com absoluta, total e completa liberdade. Ele é a pessoa mais livre que eu já vi de perto ou de longe, em todos os sentidos”, diz Maria Elisa Costa, arquiteta, urbanista e filha de Lucio Costa, no filme O Risco – Lucio Costa e a Utopia Moderna, documentário de 2003 dirigido e coescrito por Geraldo Motta Filho.

“Lucio era uma pessoa plural, com um pensamento abrangente e rico, coerente mas diversificado”, conta ela. “Além do trabalho escrito – sempre manuscrito – sobre arquitetura, patrimônio histórico, filosofia, ele tinha o hábito de anotar no papel que encontrasse a sua frente o que lhe vinha à cabeça, como se o pensamento saísse pelo lápis... Junte-se a isso a ausência de vocação para organizar seus papéis...”, brinca.

Maria Elisa foi a primeira a ver, em um pedaço de papel, o estudo para o projeto de Brasília. “Eu era estudante de arquitetura quando houve o concurso para o plano piloto. Meu pai fez o plano piloto sozinho e em casa. Para as pessoas entenderem um pouco a relação dele com Oscar Niemeyer, eu uso muito a coisa da música. Meu pai escreveu a partitura da música, contando que teria um excelente, um extraordinário intérprete, que era o Oscar.”

“Tive o privilégio de ter sido estudante nos tempos de JK, tempos da bossa nova, do cinema novo. Quando foi lançado o concurso para o plano piloto, ao lado das críticas ferozes e da descrença da velha guarda, a mocidade saboreou o clima de liberdade, alegria e confiança no futuro”, lembra Maria Elisa.

Ela recorda que, inicialmente, Lucio chegou a ser convidado para participar de uma equipe, mas recusou o convite. “Ele se inscreveu sem dizer a ninguém. Um dia, me chamou: ‘Vem cá que eu quero te mostrar uma coisa’. A ‘coisa’ era Brasília! Com um estudo desenhado (já na escala de 1:25 mil e com várias anotações manuscritas), ele foi me explicando, tim-tim por tim-tim, como seria a cidade”, conta. “Lembro que, quando ele terminou a conversa, sua camisa estava encharcada de suor, e certamente não apenas por causa do calor do verão carioca: aquela havia sido a primeira vez em que expressou em palavras a alguém sua criação solitária.”

O caminho profissional percorrido por Lucio Costa foi singular. Como o pai, engenheiro naval, morou na Europa de 1910 a 1917. Foi lá que Lucio, nascido em 1902 na França, cursou o ensino médio. De volta para o Rio, foi matriculado pelo pai na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA).

Formado em 1924 no curso de arquitetura e pintura da ENBA, em 1930 – com apenas 28 anos – foi convidado pelo governo Vargas para assumir a direção da escola e reformular o ensino na instituição, sendo professor de Oscar Niemeyer, com quem dividiria diversos projetos a partir de então. Niemeyer, aliás, iniciaria sua carreira como estagiário no escritório de Costa.

Em sua rápida passagem pela diretoria da ENBA – a experiência durou pouco mais de um ano, de 1930 a 1931 –, Lucio Costa remodelou o curso de arquitetura com base nos princípios modernos vigentes na Europa, inaugurando o movimento moderno na arquitetura brasileira. Esse novo modelo repercutiu entre os estudantes, alguns dos quais se tornariam grandes nomes da área, inclusive o próprio Niemeyer.

Entre as principais obras de Costa estão o projeto do edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde Pública, atual Palácio Gustavo Capanema, e o Parque Guinle, ambos no Rio de Janeiro, o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York e o plano piloto de Brasília, um dos marcos do urbanismo no século XX.

Sobre o projeto do Ministério da Educação e Saúde Pública, Maria Elisa lembra: “Convidado pessoalmente para fazer o projeto, Lucio Costa resolveu dividi-lo com outros jovens arquitetos imbuídos do mesmo desejo de renovar a arquitetura no país. E conseguiu que [o arquiteto e urbanista francês] Le Corbusier viesse ao Rio como consultor da equipe”, conta. “A generosidade desse gesto deu frutos: a arquitetura brasileira nunca foi tão fértil como no período entre 1930 e 1960, e o Ministério foi o primeiro edifício sobre pilotis, com fachada envidraçada, efetivamente construído no mundo”, avalia.

Acervo

O acervo é constituído basicamente pelos papéis que ficaram em seu apartamento, onde morou desde 1940 até 1998, ano de sua morte. O trabalho vem sendo executado pela Casa de Lucio Costa (CLC), sociedade civil sem fins lucrativos criada em maio de 2000, com o objetivo de preservar a memória do arquiteto, propiciar o acesso público a ela e disponibilizá-la na internet.

Na primeira fase, os documentos foram identificados, classificados e organizados; e os principais originais, higienizados, digitalizados e disponibilizados no site www.casadeluciocosta.org. Na segunda fase, o trabalho foi dividido entre tratamento técnico/acondicionamento adequado de coleções e pesquisa, catalogação e informatização do acervo.

Durante as duas etapas, 547 textos manuscritos foram digitados; 321 desenhos em grande formato higienizados, digitalizados e acondicionados; 1.194 documentos acondicionados, dos quais 321 foram higienizados e restaurados; 20 depoimentos e trechos de entrevistas transcritos, traduzidos, legendados e comprimidos para o canal da CLC no YouTube; 873 documentos organizados e classificados; 1.902 imagens digitalizadas e tratadas; 614 páginas do livro Lucio Costa – Registro de uma Vivência escaneadas; e 592 imagens foram recuperadas para a nova edição da publicação.

Estão hoje em andamento, contando com o apoio do Rumos Itaú Cultural, as fases de digitalização, identificação e classificação da parte remanescente do acervo e, no caso de manuscritos, de transcrição, higienização, restauro e acondicionamento também da parte remanescente do acervo.

“A organização de um acervo como o de Lucio é um trabalho lento. Continuaremos a classificação e a higienização por um bom tempo. Graças ao patrocínio do Itaú Cultural, estamos começando a transcrição dos manuscritos e o restauro digital dos principais documentos”, afirma Julieta Sobral, neta do arquiteto, à frente da CLC.

“Começamos a catalogação em 2005 e podemos dizer que cerca de 78% dos documentos já foram classificados e cerca de 40% higienizados e acondicionados. Vale observar que volta e meia recebemos doações de pessoas ou instituições que tinham projetos, cartas, fotografias dele.”

Com isso, o acervo está em constante formação. “As condições em que se encontram os documentos do acervo são as mais diversas; o restauro básico e estrutural dos mais danificados já foi feito. Restam ainda documentos que necessitam de higienização, restauro e acondicionamento em pastas de papel com PH neutro.”

Ao longo da organização do arquivo, foi confirmado seu grande potencial em termos de propiciar acesso a fontes primárias de informação. Com isso, a Casa de Lucio Costa vem formulando projetos que partem exclusivamente do conteúdo do acervo.

“Realizamos em 2011 o projeto Bloquinhos de Portugal, a Arquitetura Portuguesa no Traço de Lucio Costa – com base em desenhos que ele fez de Portugal e que estavam perdidos havia 60 anos”, conta Julieta. O projeto consistiu em uma exposição e um livro, que ganhou prêmio do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). “Nosso próximo passo é fazer um livro sobre a correspondência entre Lucio Costa e Le Corbusier”, acrescenta.

“Além de contribuir decisivamente para o estabelecimento do diálogo e do vínculo entre tradição e modernidade que caracterizam a nossa arquitetura, e se evidenciam em seus projetos a partir dos anos 1940, a atuação de Lucio Costa não se restringe a sua área profissional: juntamente com os companheiros de geração atuando em outras áreas, seu pensamento livre e abrangente, interessado em arte, filosofia, sociedade, política, contribuiu para a própria formação da identidade brasileira”, diz Julieta.

A neta de Costa conta ainda que ele tinha o hábito de não jogar papéis fora e de sempre deixar qualquer observação, pensamento ou ideia escorregar pela ponta do lápis na forma de rápido registro, anotado no papel que estivesse ao alcance.

Na profusão de papéis que ficaram em seu apartamento, no Leblon, no Rio de Janeiro, tudo é simultâneo: vêm à tona plantas, croquis, documentos, fotografias, projetos, cartas, anotações – dos anos 1920, 1980, 1950, 1930, 1990 –, atravessando o século como se o tempo se condensasse em um mesmo e único momento.

E, junto com isso, sempre, uma imensa e inabalável confiança no Brasil: “O Brasil é um país precursor, acho que vai ser, dará o seu recado no tempo certo”.