por Encontro com Espectadores – Beth Néspoli

 

Intrinsecamente convivial, desde o processo de criação até a recepção, a arte teatral será sempre afetada pelos movimentos da cidade. Evidentemente haverá poéticas mais ou menos porosas, porém mesmo as que buscam se descolar das demandas de seu tempo histórico, mesmo essas, dificilmente passam incólumes às crises que atingem os seus receptores. No último domingo de maio, quando a greve dos caminhoneiros que paralisou grande parte do país parecia ter chegado ao seu ápice, a relação entre o teatro e o campo social esteve no centro do debate da 20ª edição do Encontro com o Espectador, no Itaú Cultural, em São Paulo.  

O Incrível Mundo dos Baldios: Henrique Mello e Ivam Cabral em cena | foto: Andre Stefano

O tema não surgiu por mera coincidência, fruto da dificuldade pontual de locomoção na metrópole naquela tarde. Ao contrário, seria mesmo incontornável, uma vez que os convidados ao encontro eram o diretor Rodolfo García Vázques e o ator Ivam Cabral, fundadores da companhia de teatro Os Satyros. Prestes a celebrar 30 anos, nascido em São Paulo em 1989, esse grupo – que chegou a ter sedes em Portugal e Curitiba antes de se instalar definitivamente na Praça Roosevelt em 2000 – possui criação estética moldada pela abertura ao trânsito das pessoas que habitam o entorno de seu espaço de atuação e à diversidade de modos de ser e de estar no mundo.

Em determinado momento da conversa, mediada pela crítica Maria Eugênia de Menezes, Rodolfo abordou a semiótica para falar sobre o modo como trabalha com os signos expressivos na cena. Por exemplo, o uso de um espelho no espetáculo Cabaret Transperipatético. Curiosamente, porém, a relevância de um signo teatral – a cortina – surgiu em outro momento do diálogo, quando o diretor comentou como um transeunte desavisado da Praça Roosevelt pode entrar no Espaço dos Satyros e chegar ao palco sem enfrentar obstáculos, uma vez que não há portas separando a área de atuação da rua, apenas algumas cortinas pretas. Passagem essa concretizada pela travesti Phedra de Córdoba (1938-2016), que entrou para o elenco do grupo muito antes que as políticas afirmativas e os movimentos identitários colocassem a questão do “lugar de fala” no centro do debate sobre a representatividade no espaço público e, consequentemente, nos palcos.

Também não por acaso, na plateia do encontro estavam participantes das ações pedagógicas promovidas pelo grupo e ainda atores e atrizes dos espetáculos atualmente em cartaz nos seus dois teatros. O Incrível Mundo dos Baldios, escolhido como foco da discussão, estreou em março no Espaço dos Satyros, e a longevidade da temporada – a previsão é que só saia de cartaz em agosto –, assim como o número de sessões semanais – de quinta a domingo (no mês de estreia era de quarta a domingo, com duas sessões aos sábados) –, chama atenção por contraponto no panorama da cena, uma vez que na cidade de São Paulo raras montagens ultrapassam o tempo de dois meses em cartaz.

Como a divulgação boca a boca ainda é a mais eficaz para lotar salas teatrais, o encurtamento das temporadas tem forte potencial para intervir no esvaziamento da cena, em muitos sentidos. Um dos riscos é o da redução das plateias ao público afetivamente envolvido, aquele composto de familiares, amigos e parceiros de ofício. A presença massiva desse espectador cúmplice pode empobrecer as poéticas, pela ausência da recepção crítica que sempre exige algum distanciamento. Ao contrário, longas temporadas, ao menos potencialmente, podem atrair parcela mais ampla de público.

Na plateia do Encontro com o Espectador estava parte dos 14 intérpretes baldios – identificação poética dada pelos Satyros a grupos historicamente marginalizados e silenciados. A transexual Márcia Dailyn, que interpreta uma cantora maranhense entusiasmada com o pequeno milagre da gravação de um CD, foi uma das primeiras a chegar ao Itaú Cultural, onde acompanhou o debate com visível atenção, sentada na primeira fileira. Algumas poltronas atrás estava o ator Roberto Francisco, que assume o papel de um velho palhaço abandonado em um asilo e cuja relação com o grupo foi comentada por Rodolfo no transcorrer da conversa, que, como em todas as edições, foi gravada em áudio, será transcrita, editada e publicada no site Teatrojornal – Leituras de Cena, responsável pela ação Encontro com o Espectador, com o apoio do Itaú Cultural.

Juliana Alonso, Lorena Garrido e Fabio Penna em cena de O Incrível Mundo dos Baldios | foto: Andre Stefano

Ainda estavam presentes performers do Cabaret Transperipatético, que estreou recentemente na Estação Satyros, também na Praça Roosevelt. Trata-se de uma montagem composta inteiramente de não cisgêneros, ou seja, de pessoas que constituíram sua relação com o corpo a partir da negação dos padrões culturais de gêneros alicerçados no binarismo homem e mulher.

Projetar um bom debate, eis o critério de escolha do espetáculo a estar em foco no Encontro com o Espectador. Depois de O Incrível Mundo dos Baldios, d’Os Satyros, será a vez de Epidemia Prata, que marca os dez anos da Cia. Mungunzá de Teatro, em cartaz no Teatro do Contêiner, espaço literalmente construído pelo grupo na região da Luz, numa área de trânsito de usuários de crack e moradores de rua, aparentemente baldia no que diz respeito ao interesse do Poder Público, porém cobiçada pela especulação imobiliária.

O título da montagem é uma referência à cor da tinta no rosto de meninos e meninas que fazem malabarismos em faróis ou simplesmente pedem dinheiro em vagões de trens e metrô. A atriz Georgette Fadel, diretora de Epidemia Prata, e o ator, produtor e fundador da Mungunzá, Marcos Felipe, participam da 21ª edição do Encontro com o Espectador, que será mediada pelo jornalista Valmir Santos e acontecerá no último domingo do mês de junho, dia 24, às 15h, no Itaú Cultural.

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