por Marcella Affonso
“É como um sopro renovado de crença no homem, sabe?” Foi com essas palavras que, emocionada, a atriz Tânia Farias, do coletivo de teatro porto-alegrense Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, descreveu a experiência vivida pelo grupo na mais recente edição do festival de teatro latino-americano e caribenho Maio Teatral, promovido entre os dias 11 e 20 de maio deste ano em Cuba pela Casa de las Américas. A viagem foi a última das etapas de investigação sobre a cena teatral da América Latina realizadas pelo coletivo como parte de Caliban – Apontamentos sobre o Teatro de Nuestra América, encerrando os processos do projeto contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016.
Apresentando a figura de Caliban – personagem da peça A Tempestade, de William Shakespeare – como símbolo dos povos latino-americanos marginalizados pelo colonialismo europeu e pelo imperialismo norte-americano, o projeto resultou na criação e na difusão do espetáculo de rua Caliban – a Tempestade de Augusto Boal. A peça teve como base uma releitura do dramaturgo brasileiro Augusto Boal do texto de Shakespeare, adaptação que, por sua vez, partiu de um estudo realizado pelo cubano Roberto Fernández Retamar sobre o personagem. O espetáculo foi apresentado uma série de vezes em Porto Alegre pelo programa Rumos e percorreu o país através do circuito nacional Palco Giratório, promovido pelo Sesc. Em abril de 2017, o projeto rendeu ainda a apresentação de um seminário na capital gaúcha sobre a investigação realizada.
Terra do responsável por tornar Caliban um símbolo identitário das populações marginalizadas latino-americanas e do pensador e político José Martí, criador do termo “Nuestra América”, Cuba foi escolhida desde o início para sediar a fase final do projeto. Mas não só por isso. A ida ao país foi vista pelo coletivo como uma possibilidade de troca de conhecimento entre o grupo e os artistas cubanos, que, como explica Tânia, ainda estão entendendo o que é o teatro de rua. “Pouquíssimos teatristas cubanos se dedicam a pesquisar esse espaço como possibilidade cênica, então o Ói Nóis poderia, de alguma forma, levar sua experiência para dialogar com a deles”, conta. O teatro de rua, de linguagem popular e fruto de manifestações políticas, é uma das três principais vertentes do trabalho realizado pelo coletivo brasileiro, ao lado do chamado teatro de vivência – em que o espectador participa da cena – e do trabalho artístico-pedagógico realizado com a comunidade local.
O Ói Nóis passou 11 dias em território cubano, circulando pelas cidades de Havana, Pinar del Río e Matanzas para a realização de oficinas, intercâmbios com grupos teatrais locais e apresentações da performance Onde? Ação No 2 e de Evocando os Mortos – Poéticas da Experiência, desmontagem de Tânia que refaz o caminho realizado pela atriz na criação de personagens emblemáticos.
Teatro de Nuestra América
Um seminário sobre o projeto foi apresentado em Matanzas, mas por inviabilidade logística/financeira o espetáculo Caliban não pôde ser levado ao festival, como estava previsto inicialmente, sendo substituído por Onde? Ação No 2. Essa escolha, no entanto, não se deu por acaso. Apresentada pela primeira vez em 2014, ano em que se completaram 50 anos do golpe civil-militar instaurado no Brasil, a performance – uma alegoria sobre os desaparecidos políticos que provoca reflexões a respeito das barbáries promovidas pela ditadura militar – traz um tema que, segundo a atriz, é marca do teatro realizado na América Latina.
“Se a gente precisasse apontar um tema identitário do teatro latino-americano, com certeza teria a ver com esses períodos críticos e de cerceamento à liberdade que são os das ditaduras militares”, observa Tânia.
A preocupação em fazer um teatro que trate de outras questões pertinentes à atualidade também foi identificada pelo grupo como uma peculiaridade do teatro latino-americano, conforme analisa a atriz: “Acho que as cenas do Ói Nóis eram diferentes das cenas que a gente viu lá, que eram todas diferentes entre si, mas acho que esse compromisso foi algo que encontramos em diversos trabalhos de diversos teatristas e grupos cubanos”.
Por fim, Tânia chama a atenção para o fato de que, ainda hoje nos países colonizados, muito se fala sobre a história e a técnica do teatro europeu, mas pouco se sabe sobre a própria cena teatral, ainda que seja extremamente qualificada e significativa. Nesse ponto, cita como exemplo o trabalho realizado por Paulo Flores, ator e um dos fundadores do Ói Nóis. “Fico pensando em quantos outros teatristas importantíssimos, mestres da cena, existem e dos quais a gente não sabe quase nada”, lamenta.
Um marco pessoal e artístico
Para Tânia, conhecer mais profundamente a cena cubana e conviver com as pessoas que trabalham na Casa de las Américas – do meio teatral ou não – foi uma experiência transformadora como teatrista e como pessoa. “Dialogar com essas pessoas e entrar em contato com um povo muito bonito, caloroso, competente, aguerrido e solidário foi uma lição”, comenta.
Conforme ela explica, o diálogo com os outros criadores sobre o teatro feito na América Latina e no Caribe representou ainda um marco para a trajetória do coletivo, que em março deste ano comemorou 40 anos de existência e resistência, uma história marcada pelo engajamento político e pela independência em relação ao mercado. “Posso dizer que estamos realmente gratos pela possibilidade de ter realizado esse projeto. Que o Ói Nóis, com 40 anos e tantas dificuldades financeiras como está atualmente, possa vir a realizar outros projetos com essa relevância”, conclui.