Por João Cezar de Castro Rocha

Resumo: O banco de dados do programa Conexões Itaú Cultural guarda uma surpresa que permite nada menos do que reavaliar completamente o conceito de brasilianista. Até a primeira década do século XXI, tratava-se quase sempre de um estrangeiro dedicado ao estudo das coisas nossas. Contudo, hoje, uma mudança impactante se verifica: numa proporção crescente, o novo brasilianista também é... brasileiro! Quais as consequências desse deslocamento para a história do controvertido conceito? Eis o que se discute neste artigo.

 

O programa Conexões Itaú Cultural completa dez anos em 2017. Seu principal objetivo consiste em produzir um mapeamento, o mais completo possível, da presença da literatura brasileira no exterior. Tal mapeamento é realizado por meio de um questionário, cujas respostas formam o banco de dados que constitui o eixo do projeto.

O levantamento inicial, propiciado pelos 347 questionários respondidos, permite propor análises inovadoras relativas às modificações mais importantes ocorridas no âmbito dos estudos dedicados à literatura brasileira no exterior – desde o privilégio crescente de uma abordagem interdisciplinar até novos enfoques na formação definidora do brasilianista.

De fato, neste artigo, tratarei somente das profundas transformações no perfil tradicional do brasilianista, cujas consequências refletem na própria definição da cultura brasileira e seus primórdios – discuti essas consequências em outro artigo, Da Brasiliana aos Brasilianistas.

A formação de um brasilianista

No seu atual estado, o banco de dados do programa sugere a necessidade urgente de ampliar, ou mesmo reformular inteiramente, a noção de brasilianista, como resultado dos questionários já respondidos. Esse ponto é central e merece algum detalhamento, pois representa uma das principais contribuições derivadas do Conexões Itaú Cultural.

Comecemos com uma rápida arqueologia do conceito.

No passado, em geral, o brasilianista dedicava-se aos estudos brasileiros quase sempre de forma exclusiva. Hoje em dia, sobretudo entre os representantes das gerações mais jovens (nascidos a partir da década de 1960), o modelo que predomina é o dos estudos latino-americanos, em chave comparativa – aspecto que demanda a ampliação do horizonte do mapeamento.

Um caso paradigmático é o de Mary Elizabeth Ginway, da Universidade da Flórida (EUA). Eis como ela começou a pesquisar literatura brasileira: “Estudava literatura latino-americana (hispano-americana) e comecei a estudar a língua e a política do Brasil no terceiro ano do curso de graduação”. Pedro Meira Monteiro, da Universidade de Princeton (EUA), possui projetos que contrastam as expressões culturais e literárias do Brasil e da Argentina. Florencia Garramuño, da Universidade de San Andrés (Argentina), publicou um livro estudando o tango e o samba em paralelo: Modernidades Primitivas. Tango, Samba y Nación. Pablo Rocca, da Universidade da República (Uruguai), embora não trabalhe com a literatura brasileira como a fonte mais importante de sua pesquisa, cada vez mais incorpora a literatura e a cultura brasileiras – aspecto evidente em seu livro Ángel Rama, Emir Rodríguez Monegal y el Brasil: Dos Caras de un Proyecto Latinoamericano. De igual modo, seu projeto de pesquisa, Traducir Brasil, revela-se exemplar. Assim ele é descrito no questionário: “o problema da tradução de Machado de Assis, Lima Barreto e outros escritores da virada dos séculos XIX e XX: o diálogo cultural entre Brasil e o Rio da Prata”. De igual modo, a resposta de Victor K. Mendes, da Universidade de Massachusetts Dartmouth (EUA), acerca de seus primeiros passos como “brasilianista” abre novas portas a serem exploradas: “A partir de 2000, iniciei a preparação de uma série de cursos comparatistas das literaturas luso-afro-brasileiras”. Em suma, o mapeamento do Conexões Itaú Cultural deve acolher essa transformação no campo de estudos, adotando uma noção mais “flexível” para a definição de brasilianismo e, portanto, do brasilianista.

Há mais a ser dito sobre o tema.

Um conceito e seus descontentes

Em importante artigo acerca do tema, Fernanda Peixoto Massi esclareceu a origem do vocábulo:

Brasilianista é termo que (ainda) não faz parte de nenhum dicionário, mas que todos por aqui sabem o que significa. De modo literal, refere-se ao especialista estrangeiro em assuntos brasileiros. Trata-se de uma noção cunhada no Brasil, usada pela primeira vez em 1969 por Francisco de Assis Barbosa em apresentação ao livro de T. Skidmore, Brasil: De Getúlio a Castelo, ainda que alguns atribuam sua origem à imprensa dos anos 70.[1]

O Dicionário Houaiss, contudo, incorporou o termo, definindo-o assim:

Brasilianismo: estudo de ou especialização em temas brasileiros (esp. por parte de estrangeiros).

Por extensão, a voz brasilianista pôde ser dicionarizada deste modo: “diz-se de ou estrangeiro especializado em assuntos brasileiros” (grifo nosso). Tal definição supunha certa desconfiança em relação à própria atividade de pesquisa da cultura brasileira por parte de estrangeiros, sobretudo por parte de pesquisadores norte-americanos. Por exemplo, no X encontro da Brazilian Studies Association (Brasa), ocorrido em Brasília em julho de 2010, Moacyr Scliar recordou corretamente que essa desconfiança foi parcialmente alimentada pelo clima de repressão política, dominante na época.

Uma digressão se impõe.

O triunfo da Revolução Cubana, em 1959, provocou um terremoto nos estudos regionais nos Estados Unidos. Subitamente, recursos mais do que generosos foram alocados para o desenvolvimento de especialistas na América Latina. O desejo nada obscuro era produzir conhecimento confiável a fim de evitar novas revoluções socialistas. Daí vêm tanto o apoio norte-americano à formação de brasilianistas quanto a desconfiança local em relação aos estrangeiros que, muitas vezes, tinham acesso a arquivos que se mantinham interditados para pesquisadores brasileiros.

Nesse sentido, é revelador o caso mencionado por Fernanda Peixoto Massi:

Outro exemplo curioso é um artigo sobre a História Geral da Civilização Brasileira, onde colaboram vários brasilianistas no volume sobre República. Diz o jornalista: “Para orgulho nacional, resta, pelo menos, de que as melhores partes de O Brasil Republicano não foram escritas pelos estrangeiros” (Veja, 1975c).[2]

O levantamento dos 347 questionários revela um panorama muito diferente e que deveria estimular a redação de uma nova entrada nos dicionários!

Em primeiro lugar, o principal local de atuação dos mapeados continua sendo os Estados Unidos. Em tese, portanto, o brasilianista continuaria sendo o estrangeiro dedicado ao estudo de temas brasileiros.

Contudo, se consultarmos o país de nascimento dos mapeados, surge a maior surpresa do banco de dados: 88 dos mapeados nasceram no Brasil; 55 nos Estados Unidos; 28 na Argentina; 25 na Alemanha; 22 na Itália; 17 no México... Ou seja, hoje em dia, o “brasilianista” pode bem ser – muito, mas muito mais do que nas décadas anteriores – um brasileiro radicado no exterior. Esse fato pode ser considerado um dos dados mais inovadores do mapeamento desenvolvido neste projeto.

Uma consequência desse dado merece um destaque especial.

O impacto da literatura brasileira contemporânea

Uma boa surpresa derivada dos questionários já processados refere-se ao grande interesse despertado pela literatura brasileira contemporânea. Decerto, os clássicos são estudados, mas os brasilianistas demonstram cada vez mais uma preocupação maior com o aqui e agora da literatura brasileira – como se a presença majoritária de brasileiras e de brasileiros no exterior estimulasse o desejo de atualização com as circunstâncias imediatas do país. E talvez seja em decorrência desse fator que o número de traduções de autores contemporâneos tenha aumentado, pois – e aqui se trata de outro dado relevante derivado do banco de dados do Conexões – a figura do professor-pesquisador-tradutor é cada vez mais comum, sobretudo entre os brasilianistas das gerações mais jovens.

No tocante aos autores, por assim dizer, clássicos, os mais mencionados nos questionários são: Machado de Assis, com 161 referências; Clarice Lispector, com 144; Guimarães Rosa, com 111; Jorge Amado, com 94; Carlos Drummond de Andrade, com 74; Graciliano Ramos, com 72; Mário de Andrade, com 70. O conhecimento da literatura brasileira no exterior é muito mais amplo e inclui tanto os clássicos quanto – e ativamente – a literatura contemporânea.

Vejamos os números.

Dos 347 mapeados, 297 afirmaram interessar-se especialmente pela literatura do presente. Menciono a seguir os autores contemporâneos mais citados nos questionários: Chico Buarque de Hollanda, com 70 referências; Rubem Fonseca, com 67; Milton Hatoum, com 64; Bernardo Carvalho, com 51; Luiz Ruffato, com 47; o crítico Roberto Schwarz, com 37; Silviano Santiago e Paulo Coelho, com 31. O importante é assinalar o grande leque de leituras: não parece existir, como se imaginava, uma concentração exclusiva nos autores considerados clássicos, mas, pelo contrário, percebe-se uma curiosidade real pela produção contemporânea.

Aliás, a preocupação com a produção do presente determina o norte das atividades do Itaú Cultural na área da literatura. Nessa direção, a resposta de Aquiles Alencar Brayner, curador digital da British Library (Londres), merece transcrição integral: “A literatura brasileira vem conquistando cada vez mais espaço entre o público britânico. O que se nota nas universidades da Grã-Bretanha, por exemplo, é um crescente interesse por parte de alunos e pesquisadores em trabalhar tanto sobre a obra de autores já consagrados quanto sobre a obra de autores contemporâneos que vêm encontrando fácil acesso ao leitor britânico graças às traduções de suas obras, como é o caso de João Gilberto Noll e Rubem Fonseca, para citar alguns nomes”. Berthold Zilly, da Universidade Livre de Berlim (Alemanha), chega a afirmar, contrariando ou ao menos matizando um célebre lugar-comum: “O interesse pelo português é muito grande, e se houvesse mais oferta de curso, haveria mais estudiosos da língua”. Leia-se, nesse sentido, uma passagem do questionário de Victor K. Mendes: “A literatura brasileira contemporânea é a mais vibrante das literaturas em português. Em minha opinião, está ainda longe de ter alcançado o potencial de reconhecimento e de circulação internacional que a sua qualidade e a projeção global do Brasil merecem”.

Coda
O programa Conexões Itaú Cultural ajuda a superar tabus e lugares-comuns. É óbvio que a presença da literatura brasileira no exterior não é dominante, mas, certamente, é maior do que sempre se supôs, e, sobretudo, apresenta potencial de crescimento. E, muito embora não seja missão do Conexões desenvolver políticas públicas, a criação de um banco de dados eficiente deverá permitir a formulação de políticas culturais mais realistas.


[1] Idem, p. 32.


[2] Fernanda Peixoto Massi. Brasilianismos, “brazilianists” e discursos brasileiros. Estudos Históricos, vol. 3, n. 5, p. 29, 1990.

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