Patrimônio cultural e industrial: perspectivas e ações de preservação
06/02/2018 - 11:00
Em entrevista, o professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Ronaldo Rodrigues, apresenta os conceitos de patrimônio cultural e industrial, apontando para possibilidades de resgate do passado recente e para a preservação da memória.
Rodrigues compartilha conceitos de sua ampla pesquisa sobre a questão da preservação do patrimônio industrial e fala ainda sobre a atuação do Comitê Brasileiro de Preservação do Patrimônio Industrial, do qual é o atual presidente.
Confira.
A preservação do patrimônio industrial é um tema recente no Brasil. Em que consiste o conceito de patrimônio industrial, o que ele busca e qual é a importância de preservar entes desse tipo?
Vou começar pelo conceito construído em 2003 pelo The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage (TICCIH), órgão vinculado ao International Council of Museums and Other Sites (Icomos). Ambos avaliam os patrimônios culturais mundiais e os reconhecem segundo a Unesco.
De acordo com a Carta de Nizhny Tagil, documento do qual se origina o conceito, temos que “o patrimônio industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de tratamento e de refino, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infraestruturas, assim como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação”.
A importância em preservar consiste na possibilidade de conservação de uma memória industrial e social que representa uma relação entre pessoas, empresa e sociedade, a qual se traduz, em muitas situações, em identidade individual e coletiva.
Em 2004 foi criado um comitê nacional para a preservação do patrimônio industrial. Qual é o objetivo da criação do comitê? Quais são os principais desafios e conquistas até o momento?
A ideia de criação do comitê foi desenvolver uma primeira possibilidade de inserir a temática da arqueologia industrial e do patrimônio industrial nos meios acadêmicos e buscar um reconhecimento desse tipo de patrimônio pelos órgãos de preservação do patrimônio cultural.
As conquistas são múltiplas, pois, apesar de o tema ainda ser pouco reconhecido, percebe-se nos últimos anos maior visibilidade acerca da sua importância e da sua aplicação, em temáticas voltadas para trabalhos e encontros acadêmicos. Há também sementes plantadas no Iphan (órgão de preservação do patrimônio cultural nacional), que já publicou entrevistas e reportagens voltadas para o patrimônio industrial, além do reconhecimento em diversos âmbitos – federal, estadual e municipal – de exemplares do patrimônio industrial, seja ele material ou imaterial.
Realizamos encontros no Brasil em três oportunidades: em 2004, em Campinas, ocorreu o I Encontro Nacional sobre Patrimônio Industrial, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); em 2009 foi conduzido o II Encontro Nacional em Patrimônio Industrial, no Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo, onde também realizamos, em 2012, o VI Colóquio Latino-Americano sobre Preservação de Patrimônio Industrial, assim como o III Seminário Internacional sobre o Patrimônio Industrial e Cultural Ferroviário da Seção Temática de Estudos sobre Patrimônio Ferroviário do TICCIH e o III Encontro Nacional sobre Patrimônio Industrial. Estivemos presentes desde 2004 com vários trabalhos nos Colóquios Latino-Americanos (2004, no Peru; 2007, na Argentina; 2013, no México; e 2017, em Cuba) e nos encontros internacionais do TICCIH (2006, na Itália; 2009, na Alemanha; 2012, em Taiwan; e 2015, na França), bem como em outros encontros sobre patrimônio industrial na Argentina, no Chile, na Espanha, na Itália, no México, em Portugal e outros países.
Temos buscado, também, dar visibilidade ao tema do patrimônio industrial nas redes sociais, entre elas o Facebook (comunidade TICCIH-Brasil), o Instagram (@ticcihbrasil) e o Twitter (@ticcihbrasil), além da construção do site do comitê brasileiro – por ora em manutenção –, cujo endereço é patrimonioindustrial.org.br. Por fim, cabe destacar o grupo de pesquisadores brasileiros, docentes e profissionais independentes que têm se dedicado a estudos no campo do patrimônio industrial e da arqueologia industrial.
Como se dá a atuação dos diferentes órgãos de preservação do patrimônio no que concerne ao patrimônio industrial? Existe alguma legislação que verse sobre como e quando preservar?
Podemos avaliar que a preservação do patrimônio industrial acontece em diferentes âmbitos dos órgãos. As instâncias municipal, estadual e federal, em muitos casos, reconhecem exemplares como de importância para a memória e a história culturais. Como legislação específica brasileira, não temos cartas que tratem diretamente do patrimônio industrial, mas citamos a própria Constituição Federal, que se dedica ao conceito de patrimônio cultural brasileiro e o define como sendo “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico” (artigo 216).
Tomadas as expressões do patrimônio cultural como elementos de cunho científico, artístico e tecnológico, de expressões do criar, fazer e viver do homem, além de conjuntos urbanos ligados às indústrias, como as vilas operárias, entre outros elementos de valor histórico e científico, tem-se uma identificação entre o patrimônio industrial e o patrimônio cultural.
No Brasil, vemos antigas fábricas e espaços industriais sendo ocupados por centros culturais, espaços de educação e museus, como o Sesc Pompeia, onde galpões de uma antiga fábrica tiveram seu espaço recriado por Lina Bo Bardi. Há também exemplos no Centro de São Paulo. Você acredita que esse é um dos caminhos a seguir para a preservação desses espaços? Quais outros caminhos podem ser propostos?
A reutilização de espaços industriais é múltipla em suas possibilidades e oportunidades. Temos exemplos em diferentes campos que compreendem desde a utilização privada, de residências individuais e coletivas, até o reúso para o desenvolvimento de novas empresas empreendedoras, voltadas para setores de tecnologia e novos negócios, hoje as start-ups.
Entretanto, o que se percebe, de maneira geral, é a reutilização para áreas comerciais, shopping centers, ou mesmo o processo de retrofit, ou seja, reutilização e revitalização dos edifícios (e demais espaços) para usos relacionados à cultura, de centros de cultura a museus, de bibliotecas a espaços de lazer.
Deve-se destacar que esse entendimento popular para a área industrial reflete apenas parte do patrimônio industrial, que envolve muitos outros elementos, materiais e imateriais – para exemplificar seu caráter multifacetado. As possibilidades de reúso ou reconversão dos diferentes elementos de expressão do patrimônio industrial são observadas na transformação em elementos de uso social e coletivo – tais como escolas, centros de saúde, centros de lazer, centros de cultura –, no uso privado (residências individuais e coletivas) ou mesmo como local de trabalho coletivo, instalação de empresas e fins comerciais.
A preocupação que deve ser priorizada consiste na manutenção da memória do lugar, na sua função e preexistência, a fim de que se preservem a memória e a história do passado ali construído e a história do lugar.
A preservação do patrimônio industrial em sua expressão física, ou seja, edifícios e prédios, compreende um alto investimento. Como você vê a participação de empresas privadas nesse espaço? Quais caminhos são possíveis?
A ideia de preservar edifícios e equipamentos industriais de grandes dimensões compreende uma visão parcial das diferentes formas de expressão do patrimônio industrial. Os elementos edificados que se formam a partir da fábrica (ou indústria) também fazem parte do conjunto patrimonial e se encontram intimamente ligados à memória industrial e empresarial.
Além disso, o fato de limitar o olhar patrimonial aos grandes edifícios impede de observar outras formas de expressão da cultura material e da memória empresarial por meio das diferentes empresas e conjuntos que se identificam com o patrimônio cultural de determinado lugar. Assim, pequenos comércios, conjuntos residenciais, clubes, elementos ou complexos de lazer e esportes, como cinemas, teatros e clubes, também compreendem formas de expressão do patrimônio cultural e devem ser não somente preservados, mas conservados como parte da memória de um passado (e mesmo presente) industrial.
No que concerne à preservação e às ações necessárias, o papel cabe tanto ao setor privado quanto ao público, assim como à comunidade em que [o patrimônio] se encontra. O setor público, em sua estruturação, como regulador de obras públicas também está inserido no corpus do patrimônio industrial. Ainda hoje, alguns países, como a Espanha, realizam seus congressos com a denominação de patrimônio industrial e obras públicas e têm como elemento de discussão e debate a relação entre público e privado no âmbito do patrimônio industrial.
Tem-se dessa maneira uma necessidade de percepção da preservação e da conservação do patrimônio industrial sob diferentes perspectivas, desde a ideia de reúso/reconversão de edifícios industriais de grandes dimensões até elementos antes pertencentes a diferentes expressões edificadas, como pequenas estações ferroviárias.
Em São Paulo temos o caso do tombamento da Vila Maria Zélia, uma vila industrial inaugurada em 1917 pelo empresário Jorge Street para os colaboradores de suas empresas. O estudo para seu tombamento começou em 1985, com veredicto final em 1992. O que esse caso pode nos ensinar quando pensamos em políticas de preservação de patrimônio?
O caso da Vila Maria Zélia e outros casos de conservação e preservação do patrimônio cultural, independentemente de sua tipologia, seja ela industrial ou não, carecem de uma política patrimonial contínua que tenha por princípio planos de curto, médio e longo prazos. Em geral no Brasil, salvo raras exceções – como nos estados de São Paulo e Minas Gerais, em que existem órgãos de preservação atuantes com relação à memória e à história dos lugares –, não há uma preocupação em desenvolver planos, propostas e ações permanentes que venham a discutir, propor e aplicar uma política de conservação e preservação do patrimônio cultural, quiçá uma política de restauração daqueles elementos já reconhecidos e tombados nas instâncias federal, estadual e municipal.
Quando desenvolvidas de maneira engajada, com grupos sociais interessados, para além dos órgãos competentes e da própria comunidade, as ações são perpetuadas, mesmo que no longo prazo, quer seja para a preservação do patrimônio cultural de uma comunidade, quer seja para o desenvolvimento de um processo de recuperação e restauração do edifício (ou conjunto), como no caso da Vila Maria Zélia.
Em compensação, devido ao descaso com a questão cultural, com a memória e até com a história dos lugares e dos grupos a eles vinculados, seja uma relação de patrimônio sociocultural ou industrial, percebem-se a descontinuidade e mesmo a inexistência de políticas de preservação e conservação desse patrimônio.
Entretanto, deve-se pontuar a importância de diferentes grupos sociais, como o Comitê Brasileiro para a Preservação do Patrimônio Industrial, em buscar dar visibilidade à necessidade de preservação e conservação de elementos do patrimônio cultural. Há várias iniciativas bem estruturadas de proteção e outras ainda em processo de formação e formalização que expressam a identidade de comunidades ou de grupos sociais com o patrimônio cultural. Inserem-se, ainda, universidades, órgãos públicos e instituições privadas com diferentes enfoques de atuação, sejam elas denominadas amigos do patrimônio, associação de proteção, preservação e conservação (como no setor ferroviário) ou centros de cultura e de memória de empresas.
A questão patrimonial e cultural se encontra, na atualidade, em um lugar de destaque, pois os homens são feitos de memórias e histórias. Se estas não puderem ser preservadas e perpetuadas, haverá um momento em que o passado será algo distante e não identitário e o indivíduo não se verá pertencente àquele lugar que habita.
Em todo o Brasil é possível encontrar edificações deterioradas. Como é possível reverter esse processo e como o cidadão comum pode contribuir para a preservação desses patrimônios que também são locais de memória? Existe um canal para que a população entre em contato com o Comitê Brasileiro para a Preservação do Patrimônio Industrial?
A sociedade contemporânea, assim como suas antecessoras, construiu um presente segundo a afirmação ou a negação do passado. Aqueles elementos do passado que se definiam como parte dos indivíduos, cuja identidade neles se encontrava refletida, foram de certa forma preservados e constituem o patrimônio daquela cultura. Para as diferentes sociedades existem exemplares conservados e não conservados, que podem ser classificados em preservados, deteriorados ou arruinados. Devem-se diferenciar os casos de elementos em ruínas daqueles deteriorados, pois para os primeiros há uma preocupação, em muitos casos, com relação à sua preservação, o que não ocorre para os deteriorados.
A questão de conservação e preservação encontra-se, assim, relacionada à identidade dos diferentes grupos com relação às edificações ou a outras quaisquer formas de expressão do patrimônio. Considerem-se, ainda, as diferentes forças sociais que atuam no interesse da preservação, ou não, como entes de especulação financeira ou de interesses difusos que não se encontram identificados com o patrimônio, mas com a questão econômica; não com uma preocupação social e de memória dos lugares e dos elementos, mas de ganhos monetários e preocupações individuais e particulares.
Com isso, o papel do cidadão, assim como o de órgãos e entidades relacionados ao patrimônio, consiste na construção e no desenvolvimento de uma identidade com relação aos elementos patrimoniais, seja por meio da educação para o patrimônio, seja por meio da participação popular e da inserção de indivíduos e grupos e sua identidade para com esses elementos. A identidade existente entre população e patrimônio define as bases para o seu reconhecimento, a sua conservação e a sua preservação. Quaisquer que sejam os elementos de patrimônio cultural, eles se definem a partir de uma relação de complementação de uma história e de uma memória pessoal e coletiva cuja identidade se faz presente segundo um passado nele expresso (o patrimônio), relação essa que permite perpetuar a existência do próprio homem no tempo – segundo o seu significado, expresso na própria Constituição Federal, em que se tem o patrimônio cultural como uma das formas de expressão, de criar, fazer e viver do homem, seja esse patrimônio as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, os objetos, os documentos, as edificações e os demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais e os conjuntos urbanos e os sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Ronaldo Rodrigues é professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e presidente do Comitê Brasileiro para a Preservação do Patrimônio Industrial Brasileiro.