por Victória Pimentel

“Ela é uma poeta, uma narradora.” É assim que o cineasta Eryk Rocha define Edna Rodrigues de Souza, protagonista de seu mais novo projeto, um dos 117 selecionados do programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016. Intitulado Edna, o longa se propõe a contar a trajetória de uma mulher brasileira – camponesa, professora e personagem ativa em dois conflitos marcantes na história do país: a Guerrilha do Araguaia (1967-1974) e a Guerra dos Perdidos (1976), ambos episódios da ditadura militar no Brasil.

Eryk conta que a ideia para o filme surgiu durante uma viagem ao sul do Pará, quando ele realizou a direção audiovisual da peça Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos, idealizada por Gabriela Carneiro da Cunha. “Nós fizemos uma pesquisa de campo com as atrizes da peça lá no Araguaia. Nesse momento entrevistamos camponeses, conhecemos a região. E então conheci Edna”, conta.

Os títulos de poeta e narradora que Eryk atribui a dona Edna têm uma razão: desde a adolescência, ela registra sua história de resistência em um caderno de memórias. O que escreve, Edna também narra oralmente – de maneira ímpar, como destaca o cineasta. “Ela tem um encanto nos olhos, uma cadência”, explica. “Não só o que ela conta é poderoso, mas também a maneira como ela conta. É uma forma muito singular e expressiva.”

Interessado em promover uma interação entre o cinema, a história e a poesia no filme, o diretor sugere uma linguagem híbrida, que mistura o ficcional e o não ficcional. Nesse processo, seu maior intuito é tornar o presente mais compreensível através de um diálogo com o passado – com a história pessoal de Edna, que se entrelaça com a história política brasileira. “O que vivemos para chegar aonde estamos agora? A herança da ditadura militar segue viva no Brasil. Ainda há muitas marcas, não é algo do passado”, Eryk pontua. “A história é a única coisa capaz de nos fazer enxergar e perguntar sobre o hoje. É, muito provavelmente, a fonte mais confiável de interpretação da realidade.”

Prêmio em Cannes

Com 38 anos e sete filmes lançados, Eryk conta que realizar um trabalho é sempre uma nova aventura de criação. Ainda assim, motivações, ideias e objetivos em comum não deixam de existir. É o caso de Edna e do recém-premiado no Festival de Cannes Cinema Novo. Mais uma vez, fazem-se presentes os conceitos de história, memória e diálogo com o passado.

Contemplado com o prêmio Olho de Ouro entre 18 documentários, Cinema Novo é um longa que se sustenta, essencialmente, na montagem, com trabalho realizado por Renato Vallone. “Um filme de arqueologia das memórias”, define Eryk. Uma homenagem pouco didática ao movimento cinematográfico brasileiro da década de 1960, o trabalho foi todo construído a partir de trechos, imagens fragmentadas e depoimentos. “Houve um processo de pesquisa muito árduo”, conta o diretor. Ele destaca que foi preciso “descobrir e redescobrir” uma série de filmes da cinematografia do cinema novo, além de realizar uma investigação intensa em acervos de emissoras de televisão brasileiras e internacionais e nos arquivos de familiares de diretores do movimento.

Cena de Os Herdeiros, de Cacá Diegues, um dos grandes nomes do movimento do cinema novo
Cena de Os Herdeiros, de Cacá Diegues, um dos grandes nomes do movimento do cinema novo

 

 

 

Entre as motivações para a realização do filme, que deve ser lançado em novembro no Brasil, está a ideia de se reconectar com raízes – afetivas, cinematográficas e históricas, as quais, vez ou outra, se confundem. Constam no longa trechos de obras de importantes nomes do cinema novo. O pai de Eryk, o cineasta Glauber Rocha, é um deles. Cacá Diegues, Nelson Pereira dos Santos e Leon Hirszman também marcam presença. Segundo Eryk, nomes como esses vão além da potência e da inventividade. “Esses cineastas pertencem a uma geração muito rica, apaixonada pelo cinema e pelo Brasil; uma geração que viveu uma revolução cultural, mas também uma interrupção do processo democrático, um golpe militar e todos os seus desdobramentos”, pontua o diretor, destacando a importância de estabelecer um diálogo entre gerações distantes mas interligadas pela história.

Como em Edna, as questões do hoje seguem como frutos do passado. “Eu quis colocar o cinema novo em movimento. Ver como os filmes continuam dialogando com o Brasil contemporâneo, ver como eles ainda ecoam. Não é um documentário historicista, nostálgico ou romântico, mas sim um diálogo com as energias criativas e políticas desse caldo”, diz Eryk.

Não é a primeira vez que o diretor vai a Cannes. Em 2004, ele concorreu ao prêmio de melhor curta com Quimera, realizado com o artista plástico Tunga. Desta vez, além de arrebatar o prêmio de melhor documentário, Eryk teve a oportunidade de realizar a première de seu filme em uma das mostras do festival. “Foi muito emocionante ver o filme nascer na tela de Cannes, no mesmo lugar onde vários filmes do cinema novo foram exibidos. Foi como se aqueles cineastas renascessem. É uma experiência muito forte”, relata. Ele conta ainda que a atualidade da obra impactou algumas pessoas. “Acho que o filme chega em um momento muito oportuno no país.”

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