por Tiago Barbosa D'Ambrosio

 

O Observatório entrevistou Raphael Daibert – pesquisador, produtor cultural e ativista – e Todd Lanier Lester – artista e organizador de redes colaborativas –, fundadores da plataforma cultural Lanchonete.org, projeto criado em 2013 para durar pouco mais de cinco anos. Agora, depois dos primeiros quatro, o coletivo se concretizou em um espaço físico, uma lanchonete de fato – ou boteco, desses tradicionais da capital paulista – onde nos encontramos para conversar. O estabelecimento está localizado na área comercial do edifício Residencial 14 Bis, na Rua Paim, Bela Vista, centro de São Paulo. Parte de um projeto site-specific, servirá como base para Raphael e Todd realizarem atividades e conhecerem e serem reconhecidos pela comunidade.

Chamado de Treme-Treme, o modernista Residencial 14 Bis possui 499 apartamentos, onde moram 1600 pessoas. Junto com os edifícios Demoiselle e Caravalle, formam o conjunto Santos Dumont, criado em 1955 pelo arquiteto Aron Kogan. Com área comercial no térreo, é completamente aberto para a rua, sem grades ou portões.

Confira o papo com Raphael e Todd, em que falam sobre projetos, planos, as questões das cidades contemporâneas e o papel da arte na resolução de conflitos sociais.

Todd e Raphael (Foto: Paulo Bueno)

O que é o coletivo e como começou? Por que trabalhar com o tema de cidades?

Raphael Daibert – Funcionamos como uma plataforma. Eu e Todd somos membros fundadores, junto com Lorena Vicini e Isabel Gandía, mas temos muitas pessoas que colaboram de diferentes formas, por isso somos um coletivo de umas 30 pessoas. E aí dependendo do projeto, as pessoas vão sendo agregadas.

Todd Lanier – Trabalhamos com uma pergunta sobre direito à cidade. Mas não sabemos o que constitui esse direito. Sempre gostei de cidades. Vim para São Paulo em 2005 e tive o desejo de voltar muitas vezes. Conheci Raphael em 2008 e nos juntamos a outras pessoas para construir esse projeto que simplesmente nos permite a curiosidade. Eu gosto de projetos artísticos duracionais (com duração específica) e já havia feito outros antes. Mas foi uma loucura, porque nunca soubemos se teríamos espaço ou recursos para isso, havia o risco da incerteza.

RD – A primeira coisa que fizemos foi um lançamento dentro da 10ª Bienal de Arquitetura [realizada em São Paulo entre setembro e novembro de 2013], que explicava os objetivos e informava estarmos abertos para que as pessoas ajudassem a resolver o que o projeto seria. Trabalhamos com o projeto Cidade Sem Fome, da extrema zona leste, que cria hortas comunitárias. Fizemos uma caminhada pelo centro que terminou na Ocupação São João com uma performance de Thiago Gonçalves, a Acarajé+Gravura. Fizemos uma roda de conversa no Sesc-Pompeia em que colocamos essas questões sobre gentrificação, sobre o que a gente pretendia enquanto plataforma e projeto com duração de cinco anos. E agora chegamos nessa etapa, quando vamos focar num espaço, numa comunidade específica, e voltar a todos os temas que tratamos esse tempo.

De onde vem o nome Lanchonete?

TL – Veio da pergunta: “Como as pessoas vivem e usam a cidade? De que diferentes formas elas fazem isso?”. Conheceríamos melhor as pessoas se tomássemos tempo para isso. Vejo isso nas lanchonetes: as paredes se abrem, convidam as pessoas a entrar e, se você não gostar de uma, pode ir a outra logo ao lado; se fica numa esquina, você pode atravessá-la, é um corta-caminho. Existe algo a mais em poder ocupar uma delas e usar de maneira simbólica. O que estamos tentando fazer é mantê-la como algo cotidiano, mas que também cause aquela curiosidade de “Ei, o que é isso?”.

O que significa ser uma plataforma cultural? Que tipos de questões vocês se propõem a trabalhar?

TL – Plataforma é uma palavra ampla o suficiente, um termo guarda-chuva, para explicar que se há algo que possamos fazer sobre qualquer tópico é o que vamos fazer. Não somos uma instituição, não temos uma missão, só seguimos a vibração da cidade. Para isso temos que jogar o jogo. Temos uma Pessoa Jurídica, nos candidatamos à Lei Rouanet, ao ProAC, ao Rumos Itaú Cultural, a financiamentos internacionais. Fazemos residências artísticas, exposições, conferências, publicações – como o livro que está saindo agora, 'Cidade Queer, uma leitora'. Esses são nossos suportes para fazer a coisa acontecer. Temos um apartamento no Edifício Copan para residentes, que não são só artistas: são também ativistas, arquitetos, curadores, estudantes, professores. Ano passado tivemos residentes do Zimbábue, da Guatemala, do Haiti, da China, do Canadá, dos Estados Unidos, do Panamá, do Equador, do Egito, do Líbano, do Senegal, da Colômbia e outros.

RD – Os projetos se dão por meio das urgências, dos temas mais contemporâneos – trabalhamos muito com questões relacionadas à moradia, ocupações, assim chegamos nas comunidades imigrantes, e assuntos como comida e segurança alimentar (foram parceiros a Gastromotiva, o Cidade Sem Fome, o Instituto Goethe e os movimentos de moradia).

TL – Com os movimentos de moradia trabalhamos fazendo hortas verticais. Nos últimos anos, hortas urbanas se tornaram um assunto quente no mundo todo. É um hobby de classe média, uma moda. Mas, se você quer que isso tenha algum significado para movimentos de justiça alimentar ou de soberania alimentar, surge um conjunto de questões. Sabíamos que pessoas da Ocupação São João trabalhavam com jardins em janelas e que havia o desejo de construir uma horta coletiva. Então trabalhamos com eles e com o Cidade Sem Fome para criar uma oficina de quatro dias, na ocupação, com metade das vagas para público geral e a outra metade para pessoas dos movimentos de moradia. Não foi a mera criação de uma horta, foi a criação de um espaço pedagógico focado no aprendizado do que plantar e de como cultivar. Assim unimos pessoas dispostas a compartilhar sobre esse tema e misturamos pessoas de dentro e de fora do movimento de moradia. Estamos muito interessados na delicadeza das coisas que fazemos.

RD – Percebemos, com esse trabalho, que é a partir da vivência, do contato e da relação com as pessoas que você começa o trabalho. É uma forma de fazer produção cultural que não é impositiva. É um ganho para as duas partes. Aprendemos muito com a São João, com os artistas que convidamos para as residências e com as atividades que fazemos juntos. O jardim vertical foi um sucesso. Depois de finalizado, perceberam que o lugar não tinha iluminação suficiente, então trocaram para outro onde está até hoje.

Horta na Ocupação São João (Foto: Marina Rago)

Podem nos contar um pouco sobre outros projetos que vocês vêm realizando?

RD – Recentemente tivemos a pesquisa do fotojornalista Pierre Michel Jean, relacionada à comunidade haitiana no Brasil. Ele veio de Porto Príncipe para acompanhar membros da comunidade e descobriu que muitos estão fazendo o caminho inverso [saindo do Brasil em direção ao norte do continente]. Essa residência gerou o site Episódio Haiti. Ano passado, fizemos também um projeto ligado à permacultura e arte ou regeneração do verde na cidade – foi uma ponte entre o quintal do Instituto Goethe e o resto de São Paulo – chamado Zona da Mata. Também tivemos Cidade Queer. Além desses três projetos, recebemos um pessoal da Universidade de Princeton (Estados Unidos) que veio ter uma vivência pela cidade guiada por nós. Em 2014, recebemos o Jakub Szczesny, arquiteto e artista polonês, para nossa primeira oficina, Desenvolvendo Identidades, em que os moradores da Ocupação São João refletiam sobre como eles se viam dentro daquele prédio, como viam a própria história e traduziam isso em bandeiras que, no final, foram hasteadas na fachada do prédio, como um discurso de “a gente mora aqui e esse é o nosso lugar”.

E quais são os próximos planos?

TL – Nós vamos continuar com esses temas, mas não como programas. Cada ano fazemos uma reconfiguração de objetivos. Nos primeiros quatro (2013 a 2016), não tivemos um espaço próprio; agora teremos um espaço com foco nessa comunidade [do 14 Bis na Rua Paim]. Falamos sempre que nosso foco é o centro das cidades – de São Paulo especificamente, mas para fazer um diálogo com outras cidades. Esse ano teremos mais foco ainda. Se você fosse acompanhar todo o projeto, desde o início, veria que as questões foram ficando cada vez mais estreitas. Este espaço se tornou uma âncora, mas também vamos usar todas as conexões dos últimos quatro anos, porque o espaço não existe apenas na Rua Paim. Gentrificação obviamente é algo que opera aqui, mas nos permite olhar para toda a cidade: temos um dos maiores terminais de ônibus da cidade aqui perto; e você vê que o crescimento de capital está relacionado à paisagem, começou no topo e agora está descendo. Então, o que sentimos é que tendo um lugar nosso durante dois anos vamos ter algo muito claro para dizer no final. Tínhamos um acordo que, se nunca encontrássemos a locação certa, o projeto aconteceria de qualquer jeito. Passamos 18 meses conhecendo Tarcísio [de Oliveira Carvalho, piauiense que há 25 anos administra o boteco agora adquirido pelo Lanchonete.org] antes de começar a parceria. Nós queremos que o primeiro evento que fizermos aqui, dia 9 de abril, seja com ele e não apenas no lugar dele. Tem uma sutileza em como fazer isso.

Que evento será esse?

TL – Fará parte da SP-Arte, uma performance intitulada Astros do Baguncinha que acontecerá aqui em frente num domingo à tarde. Queremos nos perguntar se existe mesmo um direito a São Paulo, um direito de estar em São Paulo. Você dirige três horas por dia para chegar ao seu trabalho: isso é certo? É certo não ver espaços verdes na cidade? É um direito ter a chance de morar junto com sua família? O direito à cidade é um conceito marxista dos anos 1960, mas agora o dono de qualquer empreendimento imobiliário vai dizer: “Você tem o direito de morar aqui! Você tem o direito de morar em algum desses condomínios com nome engraçado”. Esse conceito não significa mais nada, porque as pessoas o usam em todo lugar. Mas se for usado como uma pergunta – “qual é o direito à cidade?” – se torna uma questão radical. E nós achamos que isso vai acontecer nos próximos dois anos.

Janta, Cidade Queer (Foto: Paulo Bueno)

Contem mais da relação de vocês com a comunidade do 14 Bis. Quais questões vocês buscam explorar?

TL – As pessoas chamam esse prédio de Treme-Treme. No aspecto literal, porque as janelas são feitas de alumínio e, quando o vento bate, elas tremem e fazem barulho. Mas, simbolicamente, tem uma conotação pejorativa, quer dizer que o lugar é degradado. Sabemos que por alguns anos o Primeiro Comando da Capital (PCC) comandou um dos prédios e isso demorou para mudar. O prédio ao lado, uma construção recente, tem 18 andares com unidades de 36 metros quadrados e o valor de venda dos imóveis sobe 4 mil reais por andar, de modo que no último andar você pode pagar 440 mil reais por um espaço minúsculo, que não foi pensado como residência primária. Isso é uma versão extrema de gentrificação. E a face do prédio que é voltada para o 14 Bis tem desconto. Você pode pagar menos para ser obrigado a olhar para o Treme-Treme. Isso é muito perverso. E se o 14 Bis fosse menor, se tivesse apenas cinco andares, ele teria sido eliminado pelo desenvolvimento da região. Dada a natureza simbólica desse edifício, sua história arquitetônica modernista, a rápida incursão de capital nessa rua, suas diferenças topográficas e sua localização na cidade, imagino que os próximos dois anos da nossa pesquisa vão ser absolutamente ricos no entendimento do que a gentrificação significa. Não se existe ou não – ela definitivamente está acontecendo –, mas o que ela realmente significa? Será que existem táticas – usando os termos de Michel de Certeau [historiador francês do século XX, autor de A Invenção do Cotidiano] – que as pessoas usam para administrar a experiência delas na cidade? Estamos prestes a passar dois anos num profundo processo de entendimento de como essa comunidade se organiza.

A arte pode ser útil para lidar com esses conflitos?

TL – Há um desejo acentuado em relação ao mercado de arte em São Paulo. Tudo acontece aqui: a Bienal, a SP-Arte, o mundo artístico vem para cá. Isso não resolve nada. Nos últimos dez anos, desenvolvemos uma linguagem em torno de arte social e prática social, arte engajada, arte e transformação social. São questões que vieram com a última grande crise econômica, que afetou o mundo todo.

Quando as instituições que fomentam a arte recuam – e elas sempre fazem isso durante as crises –, os projetos mais soltos, de arte pela arte, ficam sem financiamento. Os projetos mais concretos ficam com o dinheiro. É uma perversidade porque certas obras do mercado continuam caríssimas, mas as pessoas que de fato fazem arte, os produtores culturais, ficam sem trabalho. E, ironicamente, esse é o mesmo momento em que a arte se torna a salvação – não à toa o Prêmio Turner [prêmio de arte anual organizado pela Tate no Reino Unido] de 2015 foi concedido a um coletivo de arquitetura [o londrino Assemble, com o projeto de moradia para operários Granby Four Streets, que tratava de regeneração urbana com abordagem sustentável]. Isso é historicamente normal: uma tendência utilitarista depois da crise. Nesse período, se a face pública da arte não for sobre consertar a cidade, consertar os problemas, ela não recebe dinheiro. Porque a arte está recuperando seu poder numa sociedade capitalista.

Tento não ser ingênuo e acredito profundamente que existe resposta na arte, mas não no aspecto profissional, e, sim, numa perspectiva mais essencial. Como Jacques Rancière [filósofo francês autor de A Partilha do Sensível: Estética e Política] diz: “arte é vida e vida é arte”. Apenas quando separamos os dois, precisamos julgar a arte pelo valor monetário que ela representa. Prefiro ver essa interconectividade confusa. Não estou interessado nos artistas que podem vir para cá. Estou interessado nos artistas que já vivem aqui. Nós vamos consertar algo? Vamos mudar a realidade desta rua e sua hipercomoditização? Não. Uma intervenção artística é uma provocação, é um gesto. Nem dura muito tempo. Vivemos numa cidade muito consciente do mercado artístico, que nunca diria que ocupações são centros culturais. A Bienal nunca vai explicar que grandes lugares da cidade em que arte e cultura acontecem estão em ocupações dos movimentos por moradia. A mesma rigidez que separa as classes no Brasil também impede que nossas formas estéticas sejam vistas em igualdade pela sociedade. Se você está apenas no cenário da Bienal e das feiras de arte, deixa de ver uma enorme parcela do que é a cultura, só vê a minoria dominante.

O que nós fazemos aqui não resolverá tudo. É uma costura entre diversos mundos. Vamos, por exemplo, fazer esse evento com a SP-Arte e temos de ter todo o cuidado sobre como eles vão enxergar essa comunidade e como vão participar. Esse é todo o trabalho; a produção em si é fácil. Mas como garantir que ele não desestabilize o local e a pesquisa que estamos fazendo? Como garantir que não seja uma exploração da pobreza? Esse é o tipo de questão que nós discutimos.

Oficina no .Aurora promovida por Zona da Mata e Parque Augusta (Foto: Mayra Azzi)

Que outras costuras vocês pretendem fazer com esse projeto na Rua Paim?

TL – Existe uma espécie de associação que é parte de um projeto maior, o Fundo Imobiliário Comunitário para Aluguel (Fica). Renato Cymbalista [presidente do Instituto Pólis e professor da FAU/USP] criou o fundo olhando para esse prédio. Ele o descreveria como um modelo antigentrificação de aluguel de propriedade. É um protótipo que tentará comprar apartamentos e estabelecer um limite para o valor do aluguel para mantê-los acessíveis à comunidade que hoje os habita. A Lanchonete está trabalhando junto com eles para garantir que a comunidade faça parte disso, de forma que o filho do Tarcísio, por exemplo, tenha a opção de alugar aqui.

RD – Desde o começo da associação, nós ajudamos a criar fundos e conscientização ao redor do tema. Nossos trabalhos são independentes, mas quando eles começarem a atuar aqui no 14 Bis imagino que os projetos possam se fundir em algum momento.

TL – Depois que os oito prédios da região forem finalizados e que todas as propriedades aqui forem consumidas, de modo que não haja mais novo crescimento, as pessoas ainda vão querer morar aqui. Esse prédio pode facilmente oferecer uma experiência diferente. Eu não acredito que a história da cidade esteja completamente escrita. Não acredito que seja simplesmente “a cidade se gentrifica e empurra pessoas para fora”. Quero acreditar que há soluções que ainda não tentamos. Essa rua [a viela de acesso aos edifícios 14 Bis e Demoiselle, onde fica a área comercial do conjunto] é um dos espaços públicos mais interessantes que já vi na vida. Demorei mais de um mês para saber que as pessoas não andam no meio da rua porque jogam lixo pelas janelas. Essas sutilezas é que revelam a vida local. Pretendemos criar momentos de envolvimento, com a perspectiva maior de atingir pessoas do entorno, da rua, do teatro e da igreja próximas daqui, até do shopping Frei Caneca. A lanchonete é um espaço de encontro. Não faríamos nada nessa rua sem que a comunidade nos conhecesse antes. Uma pergunta que nos persegue durante cinco anos é: “Como você intervém?” Há riscos em intervir. Se uma pessoa da comunidade deixar de vir à lanchonete porque o lugar está estranho, cheio de estrangeiros, perderemos o mais valioso. Há dois lados em tudo. Estamos aqui detendo um ativo que tem valor, que paga taxas, paga manutenção para o condomínio. Essa é a vida dessas pessoas, é a vida de Tarcísio. Independentemente do que aconteceu na Bienal ou em outras exibições de arte, nada importa se não houver diálogo com ele. Eu quero muito que esse projeto aconteça de maneira que ele possa ser o primeiro na fila quando colocarmos o estabelecimento à venda. [Hoje o coletivo aluga o ponto a Tarcísio pelo mesmo valor que pagava anteriormente]. É o que quero dizer sobre entrar de forma ética neste lugar. A importância de um trabalho com duração específica em uma comunidade é que ele tem um prazo para prestação de contas e avaliar o resultado para eles.

Transarau Cidade Queer (Foto: Mayra Azzi)

 

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