por Marina Lahr

A arte de contar histórias é, reconhecidamente, uma das formas de cultura mais antigas e importantes na trajetória de distintas sociedades humanas. O hábito da tradição oral pode ser responsável, em sua essência, pela construção da visão de mundo de cada ser humano e pela concepção da identidade cultural própria de um povo. Mas, na realidade moderna atual – de progresso tecnológico e comunicação cada vez mais imagética –, como manter vivos ao longo do tempo os costumes e as heranças nativos, repassados de geração em geração através da fala?

Tal preocupação, muito conectada no Brasil à existência e à subsistência das populações indígenas, comumente fundamenta inúmeras pesquisas e projetos que se destinam a garantir a preservação das culturas nativas. Foi nesse contexto que Charles Bicalho – professor, pesquisador e tradutor mineiro – começou a traçar um caminho de trabalho e parceria com os índios Maxakali, habitantes de aproximadamente quatro territórios no estado de Minas Gerais.

Quando era aluno do curso de letras na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na década de 1990, Charles foi chamado para ser monitor de uma disciplina de leitura, produção de texto e literatura em um programa de implantação de escolas indígenas pelo estado – que se voltava principalmente para a criação de um sistema de ensino diferenciado que proporcionasse o desenvolvimento de métodos próprios de aprendizagem para as comunidades indígenas locais. Como explica o pesquisador, a conexão com o universo criativo indígena foi instantânea e, desde então, muito fértil.

“Na época em que era estudante na graduação, eu desenvolvi um grande interesse por literatura e tradução, então fui participar do Programa de Implantação de Escolas Indígenas de Minas Gerais (PIEIMG). Quando encontrei os Maxakali, que até hoje falam a língua nativa, achei tudo muito fascinante. Como a iniciativa previa o desenvolvimento de material didático, demos início à produção de uma série de livros em conjunto com os próprios índios, para ser usados nas salas de aula”, conta Charles. “Esses materiais continham, em sua maior parte, narrativas e cantos tradicionais dos Maxakali, transcritos a partir de uma perspectiva poética. Já foram publicados, desde 1996, mais de dez livros bilíngues que contêm toda essa mitologia e criatividade maxakali.”

Ilustração do conto de Mãtãnãg, feita por índios Maxakali para o livro Hitupmã’ax (2008) | imagem: divulgação

Preservação multimídia 

As manifestações artísticas indígenas passaram, assim, a ser uma espécie de guia para a carreira de Charles, que fez da colaboração com a comunidade maxakali a base para suas teses de mestrado, doutorado e pós-doutorado. Após uma década de composições puramente literárias, Charles foi convidado a coordenar um curso de formação de professores indígenas. Entusiasta do mundo dos filmes e do cinema, o professor aproveitou o momento para propor uma oficina de audiovisual para os índios, por entender que as histórias poderiam facilmente se transformar em enredos de filme.

A oficina – que abordou a produção de roteiros, a manipulação de câmeras e a preparação de atores – reuniu uma turma de 70 alunos, de 5 diferentes etnias de Minas Gerais, e o projeto acabou gerando um novo livro, editado pela Secretaria da Educação do estado, e também quatro filmes de curta metragem. Um deles, intitulado O Sonho do Pajé, serviu de inspiração para Charles dar continuidade às experiências no universo cinematográfico e fundar, em 2008, a Pajé Filmes, produtora de filmes indígenas que se dedica a trazer à cena audiovisual produções capazes de colaborar para a manutenção da memória ancestral desses povos.

“Do mesmo modo que a literatura, o imagético completa a expressão indígena. Existem coisas que a gente coloca no papel através da palavra e funcionam muito bem. Outras não são dessa forma e se moldam melhor com a imagem. A criação da Pajé Filmes despontou em virtude do desejo de registrar – e preservar – visualmente a tradição literária indígena. Os filmes proporcionam uma expressão moderna, um arcabouço para algo que é tradicionalmente oral e de que, por essa razão, poucos têm conhecimento. As mídias contemporâneas possuem a vantagem de fornecer maior amplitude na disseminação da cultura”, reflete Charles.

Expansão criativa

A Pajé Filmes se firmou no cenário audiovisual a partir da produção de documentários e trabalhos que passaram a ser divulgados internacionalmente – com filmes traduzidos para o espanhol e o inglês. Charles conta que, no portfólio da produtora, já se somam 15 filmes entre produtos ensaísticos e materiais integralmente finalizados. As produções, que até 2016 se limitavam a filmes documentários sobre os rituais maxakali, passaram a ganhar outros contornos a partir das restrições características do cinema live-action.

“As histórias fantásticas que os Maxakali têm, os mitos, as narrativas são situações que substancialmente não podem ser reproduzidas na vida real. Sem recursos como os dos grandes estúdios, percebemos que os contos mitológicos só poderiam ser contados a partir das animações, que suprem as necessidades existentes na produção de cenas mais complexas, por exemplo”, esclarece Charles. “Aproveitando que os Maxakali gostam muito de desenhar, pensei que poderíamos fazer então um filme animado. Assim, surgiu nosso primeiro projeto nesse formato, Konãgxeka: o Dilúvio Maxakali.”

A encantada

Aproveitando os frutos do primeiro filme de animação – e em conjunto com o grande potencial cultural do imaginário indígena –, a Pajé Filmes deu início, dessa forma, ao desenvolvimento de um novo curta-metragem de animação. Mãtãnãg, a Encantada – cuja produção é apoiada pelo programa Rumos Itaú Cultural 2017-2018 – dá vida a um tradicional mito maxakali em uma história de amor com toques de espiritualidade e viés transcendental. No filme, a índia Mãtãnãg segue o espírito de seu marido, morto por uma picada de cobra, até a aldeia dos mortos numa tentativa de superar os obstáculos que separam o mundo terreno do mundo espiritual.

A produção do curta envolveu um intenso processo de pesquisa, documentação, edição e pós-produção, todo realizado por Charles em parceria com representantes maxakali. “Inicialmente, nós gravamos, de forma simples, a história com os índios na aldeia, na língua deles; então fizemos um processo de transcrição da narrativa e de tradução para o português; a partir disso elaborei a roteirização”, relata Charles. “Com o roteiro em mãos, inscrevemos o projeto no Rumos e, uma vez selecionados, iniciamos a produção em si. Fizemos os esboços, a concepção dos personagens, as oficinas de animação e ilustração, e gravamos também os cantos que fazem parte da história e os próprios diálogos. É importante ressaltar que o progresso do filme sempre foi acompanhado e aprovado por toda a comunidade maxakali. No final é um trabalho coletivo que ajuda a história a ser construída.”

A importância de fomentar a indústria de filmes indígenas é, para o pesquisador, bem fácil de explicar. “O audiovisual serve de alimento à tradição, como um alicerce cultural que se conecta diretamente com nossas raízes. Esses povos vivem aqui há muito tempo, antes da chegada dos europeus e dos africanos, e possuem uma relação ancestral com a terra. Os Maxakali – assim como os outros povos nativos – possuem manifestações expressivas muito importantes, que precisam ser conhecidas e reconhecidas. Os índios já possuem em si toda a multimídia, com seus cantos, suas danças e sua literatura. Fazer cinema indígena significa promover uma espécie de tradução cultural. A relevância diz respeito ao enriquecimento da nossa própria cultura, com novas histórias, novas manifestações, novos jeitos de se expressar, mas dando a eles também maior espaço, em termos simbólicos. Só temos a ganhar com isso”, finaliza Charles.

*O lançamento de Mãtãnãg, a Encantada acontece em 20 de julho de 2019, no MIS Cine, em Belo Horizonte (MG). Saiba mais aqui.
 

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