por William Nunes de Santana
Há um mês a música brasileira perdeu um dos grandes: o cantor e compositor baiano Moraes Moreira (1947-2020), membro dos Novos Baianos, com uma extensa carreira solo e uma discografia que não só ajudou a definir a nossa identidade musical, mas também fez dessa expressão artística uma ponte para evidenciar os tantos brasis existentes.
O pesar é maior quando vemos que Moraes era ainda um artista ativo. Exemplos não faltam, como a recente reunião com o grupo que o consagrou e o seu último trabalho solo, Ser Tão (2018), no qual reforçou sua relação com a literatura de cordel. Ou até mesmo na sua última interação com o público através da sua conta no Instagram – veja aqui os versos que ele deixou.
Para celebrar a obra e a vida de Moraes Moreira, conversamos com Tom Zé, Marcus Preto e Alemberg Quindins.
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Tom Zé e Moraes Moreira: mestre e aprendiz; e vice-versa
Em entrevista por telefone, o cantor e compositor Tom Zé lembra a sua relação com um jovem Moraes Moreira, naquele momento tão perto e tão longe de ser o artista que conhecemos. Para Tom Zé, Moreira – como ele carinhosamente o chama – tinha muito mais vocação do que ele. “Eu conheci o Moreira em 1965, se não me engano, quando um moleque comprido – bem menino ainda – entrou na minha sala na Universidade Federal da Bahia dizendo que queria tocar violão. Conversa vai, conversa vem, ele falou que era compositor e cantou uma meia dúzia de músicas – que nunca foram aproveitadas, já que eram de principiante, mas havia ali o embrião de um compositor. Então comecei a lhe ensinar violão”, conta. “Depois da primeira aula, ele passou um mês estudando. Se fosse simplesmente um curioso, voltaria com as lições mais ou menos compreendidas, mas ele realmente estudava. Desde o começo ele tinha a tendência de tocar bem o instrumento, tanto que eu dava uma aula por mês e o deixava experimentando à vontade. Depois de quatro aulas eu já tinha ensinado tudo o que sabia.”
Foi Tom Zé quem também apresentou Moraes ao poeta Luiz Galvão, ajudando a formar uma dupla que, pouco tempo depois, iria compor canções que seriam sucesso Brasil adentro. “O Moreira uma vez se queixou que não era bom em escrever letras, então lhe contei sobre o Galvão. Ele me mostrava letras muito interessantes e eu o incentivava a escrever. Eu sabia que Galvão estava em uma pensão em Salvador e falei com Moreira para eles se encontrarem.” Pouco depois disso, Tom Zé recorda ter encontrado o grupo dos Novos Baianos praticamente formado, já com Galvão, Moreira, Paulinho Boca de Cantor e Baby Consuelo, “todos juntos cantando coisas bem impressionantes, eu fiquei admiradíssimo”.
Mestre e padrinho da banda, Tom Zé ainda deu aquele empurrãozinho quando os Novos Baianos estavam dando os seus primeiros passos. Foi ele que, em São Paulo, aconselhou João Araújo, pai de Cazuza, a dar uma chance à banda. “Eu soube que o Carlos Imperial tinha levado os Novos Baianos para o Rio de Janeiro e pedi, pelo amor de Deus, que João escutasse esses meninos. Na segunda-feira seguinte todos eles já estavam em São Paulo”, lembra.
Em 2017, Moreira homenageou o seu mestre na canção "Obrigado Tom Zé", na qual agradece por toda a história que conhecemos hoje. Quando pergunto do que ele mais gostava em Moreira, Tom Zé diz que o amigo “era uma pessoa de caráter, o que no mundo da música não são muitos. Cada pessoa nasce com a sua própria natureza, primeiro com a sua capacidade de especulação, depois é que vemos a dimensão do que aquilo pode se tornar. E Moreira tinha uma dimensão muito sofisticada. O olho para colocar o dedo na coisa certa; todo aquele tipo de vida não burguesa que a turma dos Novos Baianos tinha era algo bastante inovador. Ou quando ele se interessou pelo Carnaval, toda a coisa do trio elétrico, e fez muitas músicas que foram sucesso de carnavais ao longo da história”.
“Tudo isso é Moraes Moreira”, afirma Marcus Preto
Em 2007, a revista Rolling Stone elegeu Acabou Chorare, segundo trabalho dos Novos Baianos, como o maior disco brasileiro de todos os tempos. Para o jornalista e produtor musical Marcus Preto, mesmo que eleições como essa não sejam definitivas, há discos que conseguem captar o espírito do tempo em que foram feitos. “Normalmente, os artistas que conseguem isso estão em sua potência máxima de criatividade, arrancando do aqui e do agora (e não de referências passadas ou alheias) o material para construir sua obra”, diz.
Alguns ainda transcendem a questão do tempo e são capazes de criar uma escola ou renovar uma estética. “Acabou Chorare é, sem dúvida, uma dessas peças. Ele teve a sorte de ter sido legitimado pelo passar do tempo. As décadas de 1990 e de 2000 foram muito importantes para o redimensionamento desse álbum, que não era tão valorizado até então. Isso acontece sempre, mas ainda há muitos discos à espera do descobrimento e do devido reconhecimento para poder começar a influenciar pessoas. Mas quem está consagrado está consagrado para sempre. Quem escuta Acabou Chorare daqui para o futuro tem exposta uma forma completamente particular de compor, tocar e viver música.”
Apesar de não ter trabalhado diretamente com Moraes Moreira, Marcus comenta a relação do compositor baiano com Gal Costa, de quem é diretor artístico. “Gal foi banhada por Moraes desde o princípio. No show Fa-Tal, ela fazia 'Dê um Rolê', que os Novos Baianos tinham acabado de lançar em compacto. E, no bis, ela apresentava 'Tinindo Trincando' (infelizmente isso não está no disco), que só sairia no ano seguinte”, recorda. “Em alguma medida, Gal foi madrinha da banda e dos parceiros Moreira e Galvão, apresentando-os a um público bem maior do que aquele que tinha comprado o LP É Ferro na Boneca.” Marcus complementa que a relação entre as obras de ambos ficou ainda mais íntima na virada dos anos 1970 para os 1980. “Gal foi a voz mais potente a propagar a série de frevos baianos escrita pelo compositor; entre todos, 'Festa do Interior' foi o sucesso mais avassalador, provavelmente a música mais tocada de Moraes Moreira de todos os tempos.”
“Parece contraditório, mas, quanto mais brasileiro Moraes se torna, mais sua música fala ao grande público”, observa Marcus Preto.
Sobre a versatilidade de Moraes Moreira como compositor, Marcus aponta o encontro dos Novos Baianos com João Gilberto como ponto-chave, não somente para a banda, mas para a sua futura carreira solo. “O primeiro álbum dos Novos Baianos, É Ferro na Boneca, é um disco de rock. Psicodelicamente brasileiro, pós-tropicalista, cheio das nossas idiossincrasias – mas essencialmente roqueiro. Isso dura só um disco. A partir de seu encontro com João Gilberto, não só Moraes, mas todos os demais integrantes se transformam completamente. Acabou Chorare é o fruto dessa iluminação. Ali eles percebem o samba como um caminho para alcançar uma música universal”, explica. “Logo em seguida, sobretudo na carreira solo que chegaria três anos depois, Moraes se tornou figura central na modernização do frevo, que estava em baixa em Pernambuco. A partir de suas experiências com guitarra baiana com o trio de Dodô e Osmar, ele trouxe de novo esse gênero à luz popular, compondo obras-primas como 'Pombo Correio', 'Chão da Praça', 'Bloco do Prazer' e 'Festa do Interior'.”
Quando situamos o artista na geração mais recente, é possível enxergar a sua influência e o seu legado em muitos outros, “de Otto a Marcia Castro, do BaianaSystem a Teago Oliveira, o excelente jovem compositor da banda Maglore”, comenta o produtor musical.
E, se você quer ouvir três álbuns essenciais de Moraes, Marcus Preto dá a dica: Moraes Moreira (1975, Som Livre), Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira (1979, Som Livre) e Bazar Brasileiro (1980, Ariola).
A música como instrumento de pertencimento
Quando Moraes Moreira lançou o LP Coisa Acesa, Alemberg Quindins [hoje gestor cultural e cocriador da Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, em Nova Olinda (CE)] nunca iria imaginar o impacto que uma música teria em sua vida. A faixa é "Essa Casa", que fecha o LP em questão. “Meus pais compraram o LP por causa da faixa-título, que abria aquele disco de 1982. Essa música tocou demais onde eu morava, em Goiás, especialmente no Carnaval. Todo mundo ouvia nos rádios, fitas cassete e LPs. Mas havia uma música no lado B que me chamou muito atenção, eu tinha por volta de 17 anos. Quando eu ouvi 'Essa Casa', não parei mais. É uma música com versos muito imagéticos”, lembra.
Dez anos se passaram quando, em 1992, Alemberg e sua esposa, Roseane, criaram a Fundação Casa Grande, que proporciona formação social e cultural a crianças e jovens. A fundação, que nasceu da restauração de uma casa, ganhou uma identidade: bandeira, uniforme para as crianças e um hino. “Eu trouxe a música de Moraes Moreira para ser o nosso hino. Dez anos depois ela voltou como uma ferramenta de educação, de pertencimento”, conta.
Todo dia 19 de dezembro, quando se comemora o aniversário da fundação, o hino é cantado por todos. “Existe um canto da nossa casa onde a letra da música está gravada, junto ao nome de Moraes Moreira”, diz Alemberg. A homenagem chegou ao cantor, que fez questão de mandar uma mensagem de agradecimento. “O bonito dessa história é como uma música serve de expressão de significância de um território, cultuada dentro de uma instituição e usada para a educação de crianças. De certa forma, nós imortalizamos essa música”, conclui o gestor.