Memória oral como fonte de pesquisa para centros de documentação e memória
14/08/2018 - 11:00
por Marcos Gigante
Na mitologia egípcia, consta que Thamus, rei-deus de todo o Egito, em certa ocasião recebeu a visita de Thot, babuíno símbolo da sabedoria e das ciências. Thot levou suas invenções ao rei, queria mostrar a utilidade de cada uma. Teria inventado as letras, os números, a aritmética, a geometria, a astronomia, o jogo de dados, o jogo de damas. No momento em que explicou as letras, Thot teria dito que estas tornariam os egípcios mais sábios, pois melhorariam sua memória. As letras seriam um elixir para a memória e a sabedoria. Thamus objetou, afirmando que Thot era engenhoso na criação, mas não julgava adequadamente a utilidade da própria invenção. Para Thamus, a escrita traria esquecimento aos egípcios e aos demais homens, pois estes não mais praticariam a memória. Além disso, os homens repetiriam palavras escritas por outros sem sequer as entender. As letras não seriam um elixir da memória, e sim da rememoração, algo apropriado para aparentar sabedoria que não implicaria uma verdadeira sabedoria.
Na Antiguidade, em especial na Grécia, a Memória era uma arte. Era a parte da Retórica responsável pelo armazenamento das informações. A memória era treinável, era uma mnemotécnica, uma arte necessária antes do advento da imprensa. Ser orador era basicamente uma profissão, e a importância desta aumentou. Um orador era capaz de tecer longos discursos de cor, com grande exatidão. Metrodoro de Scepsis, por exemplo, era muito admirado por sua incrível capacidade de memorização. Provavelmente, utilizando-se de imagens de locais inspiradas no zodíaco, conseguia organizar seu discurso com centenas de informações numa sequência exata de exposição. Iria depositando imagens em cada local dos signos do zodíaco – transformava informação em imagem e, depois, no momento da rememoração, a imagem voltava como informação, como frases encadeadas. Era um sistema sofisticado, porque, além dos 12 signos do zodíaco, havia 36 decanos, 3 para cada signo, com 10 segundos planos para cada decano. Ou seja, 360 lugares para armazenamento de informações. Tudo mentalmente.
Num rápido resumo, um longo trajeto histórico da arte da memória, assim como da memória em geral, é recheado de mudanças. Ela ganhará um aspecto fortemente religioso na Idade Média. Assumirá formas esotéricas no Renascimento. O Iluminismo tinha grande interesse em organizar o conhecimento como memória por intermédio de enciclopédias, tendo por embasamento a razão. Teorias da memória com pretensões filosóficas metafísicas viriam no século XIX, por exemplo, com o método introspectivo de Henri Bergson, que investigava a memória como um fenômeno individual. Ela será objeto de estudo da sociologia, no contexto da expansão das chamadas ciências humanas, e, com Maurice Halbwachs, será tomada como um fenômeno sempre coletivo. A antropologia, a ciência histórica, a psicologia social e outras ciências humanas vão se interessar por esse tema de forma enfática a partir do final do século XIX.
Atualmente, não é exigido de cada um de nós que desenvolvamos uma “arte da memória”, tal como era na Antiguidade, pois existem as mais diversas tecnologias da informação e comunicação (TICs). Estas continuam, inclusive, revolucionando o mundo do trabalho. Tornaram-se um dos aspectos mais cruciais das sociedades atuais. As TICs são formidáveis incorporadoras de memórias. Até o formato dos teclados de um computador ou de uma touch screen de um smartphone evoca as máquinas de escrever, por exemplo – são trabalhos incorporados, memórias incorporadas. A memória continua sendo relevante.
Diferentemente do que muitos podem pensar, a memória não é uma repetição do passado, mas o passado oferecido como referência, diante da qual nos colocamos de forma ativa e atualizadora. A memória é dúctil, flexível. Ela é nossa capacidade de reter experiências para posteriores consultas. Permite-nos relacionar eventos atuais com eventos passados. É nossa principal base de apoio para nos relacionarmos com o tempo (cuja conceituação sempre foi difícil), pois diferenciamos intelectual e emocionalmente passado, presente e futuro. A memória nos permite um senso de direção, e é por isso que ela é um campo de luta no qual se confrontam narrativas e formas de circunscrição, “territorializações” ideológicas. Lutamos no presente por projetos de futuro, os quais implicam atualizações não raras vezes conflituosas. Um exemplo rápido é a enorme dificuldade que temos em relação à memória da ditadura militar (1964-1985) no Brasil.
Museus e centros de documentação e memória não são (ou não devem ser) depósitos de coisas “mortas”. Essas instituições ajudam a garantir que a memória continue nos nutrindo e sendo nutrida por nossas demandas de leitura histórica. Queremos nos compreender enquanto nos deparamos com nossas demandas presentes. Não são poucas! Queremos escolher da melhor forma possível o que fazer, como e para onde ir.
A memória mais diretamente ligada à oralidade, a memória oral, tem algumas especificidades diante da memória tomada em sentido amplo. A oral pode ser interpretada como aquela “história viva”, colorida, recheada de sentido grupal – um “quadro social da memória” do qual falava Halbwachs. Ela também pode ser tomada de maneira mais individualizada, como fazia Bergson.
Há uma infinidade de autores, além desses, importantes no estudo das teorias da memória, tanto aquela tomada em sentido amplo quanto a memória oral. Eis alguns fundamentais: Iuri Lótman, Boris Uspenskii, ligados à semiótica; Pierre Nora, historiador francês que faz uma essencial discussão sobre os lugares da memória; e Frances Yates, que foi professora do Instituto Warburg, da Universidade de Londres. Também brasileiros, como Ecléa Bosi (psicologia social) e Jerusa Pires Ferreira. O autor deste artigo, de maneira mais modesta, acredita que contribuiu também no tema da memória oral ao discutir o que chamou de “memória avessa”.
O que mais marca a memória oral é o fato de estar bastante “colada” ao sujeito que lembra e ao(s) grupo(s) ao(s) qual(is) pertence e pertenceu. Ela é basicamente interna. Não foi “trabalhada” sob o crivo de instituições, governos, universidades; não foi produzida “de fora” por um historiador que busca, como diria Jacques Le Goff, uma história que seria a “justa medida da memória”. O documento criado a partir da história oral já foi tomado como um documento sem fidedignidade. Foi um longo debate. Ora, a história oral permite a construção de um arquivo vivo mediante a falta de certo tipo de registro. A história baseada nos arquivos “tradicionais” é aquela pautada nos processos de seleção que vão para os arquivos institucionalizados, de acordo com interesses políticos, acadêmicos etc. Isso desloca a questão da fidedignidade para outro nível de discussão.
Os seres humanos vivenciam a história, os processos sociais, políticos, culturais, de forma objetiva, material, mas também de forma subjetiva e intersubjetiva. Sua memória é a maneira como se constituiu como ator, como partícipe nesses processos. Muitos grupos não registram sua trajetória de forma escrita. É na oralidade que residirá essa preciosa memória. O sujeito também se vê (“de fora”), no sentido de que realiza um “balanço” – quer extrair lições, substratos do que viveu; e o faz constituindo-se como memória. Assim é que a memória se aproxima do conselho (memini e moneo): lembro e advirto! A trajetória do sujeito se tornou uma memória oral.
Existe um método (caminho estruturado, portanto) para tornar essa memória uma incrível fonte de pesquisa: trata-se da história oral. Esse método, que chega a ser disciplina acadêmica, módulo de pós-graduação, campo de estudo, precisa ser aprendido e treinado. Vai muito além da entrevista, e é um equívoco considerar que qualquer tipo de entrevista seja sinônimo de história oral. A história oral é um método de produção de um tipo específico de documento: aquele baseado na memória oral. Inclui profundas discussões epistemológicas (reflexões sobre sua própria validade), formas de entrevistar, técnicas de gravação e armazenamento, técnicas de transcrição do oral para o escrito (o que também exige algumas discussões de cunho linguístico). Ainda exige o respaldo de um conselho de ética ligado a alguma instituição de documentação, pesquisa e/ou ensino, com termos de consentimento livre e esclarecido assinados pelos “colaboradores” (entrevistados participantes do projeto).
O método da história oral se divide em diferentes modalidades: história oral de vida, história oral temática, narrativa biográfica, tradição oral, história oral da família etc. Estabelece como forma uma rede de entrevistados com base em conceitos, como os de “comunidade de destino”, “colônia”, “rede”. É algo bastante sistematizado e discutido. Diferentemente do que rezam alguns preconceitos, nada tem de arbitrário. Há ampla bibliografia sobre a memória e a história oral. José Carlos Sebe Bom Meihy é um dos autores mais destacados que trouxeram importantes contribuições para a sistematização desse método. Não raro, encontram-se diferentes usos da história oral; às vezes, abusos também.
O maior potencial desse método é permitir uma leitura profunda da sociedade, pois ele inclui uma fonte de gênero muito próprio: a percepção de quem viveu os processos histórico-sociais, políticos e culturais. Dá total azo à intersubjetividade na constituição das leituras da realidade, na constituição das narrativas.
Enfim, a memória oral, transformada em fonte pelo método da história oral, é um dos mais formidáveis mananciais para pesquisas que pretendam realizar leituras sofisticadas das sociedades, à altura de sua complexidade e de sua heterogeneidade; em especial, da nossa sociedade brasileira, tão irredenta em relação à maioria de sua população, alijada de voz e vez, não raras ocasiões. Portanto, os centros de documentação e memória têm nessa fonte um caminho muito frutífero para oportunizar vez e voz à memória oral dos mais diversos grupos e pessoas. Toda a sociedade ganha com isso, em referências, aprendizados, reflexões, pesquisa, ciência e cultura. Transformar a memória oral em fonte é uma maneira democrática de garantir a voz daqueles que não registram suas trajetórias de forma institucional.
Marcos Gigante é licenciado, mestre e doutor em história pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Com MBA em gestão, docência e novas metodologias, foi professor efetivo na rede pública estadual e tutor on-line de história na Fundação de Desenvolvimento da Unicamp [(Funcamp), especialização para professores da rede pública – Redefor]. Professor no Unicep – Centro Universitário Central Paulista, em nível de graduação e pós-graduação, assim como em outras instituições (palestras e especializações).