Memória, Acervos e Gestão | Instituto Sergio Rodrigues
01/11/2016 - 15:58
por Marcel Fracassi, Rafael Bensi e Laerte Fernandes
Como parte de suas ações relacionadas aos processos de recuperação, organização e digitalização de acervos, o Itaú Cultural realizou, nos dias 25, 26 e 27 de outubro de 2016, o encontro Memória e Gestão de Acervos: Arte, Arquitetura e Design.
Aproveitando a ocasião, o Observatório e o Centro de Memória, Documentação e Referência do Itaú Cultural conversaram com representantes de algumas das instituições que participaram do evento. A primeira dessas conversas foi com a equipe da associação sem fins lucrativos que preserva o acervo de Sergio Rodrigues (1927-2014), nome fundamental da arquitetura e do design brasileiros.
Fundado em 2012, no Rio de Janeiro, o Instituto Sergio Rodrigues ainda facilita o acesso do público – principalmente estudantes e pesquisadores – à produção do arquiteto e designer. Confira a entrevista.
Como surgiu a ideia de reunir o acervo?
A iniciativa partiu do desejo que o próprio Sergio Rodrigues manifestou nos seus últimos anos de vida, depois de se dedicar por mais de seis décadas à sua carreira, que nos legou aquilo que podemos chamar de “gesto inaugural" de um "mobiliário brasileiro", em termos substantivos. Como sempre, com ele estava sua esposa, Vera Beatriz, que hoje preside o Instituto Sergio Rodrigues e tem sido o esteio de nossas atividades para preservar a memória deste magnífico homem e criador. Há tempos os dois já sentiam a necessidade de organizar os documentos e disponibilizá-los a estudantes e pesquisadores. Depois da morte de Verônica Rodrigues, filha de Sergio, que trabalhava diretamente com ele nos projetos, a necessidade tornou-se imperativa para que as informações de grande valor histórico não se perdessem. Nesse momento muita gente próxima na vida e na profissão de Sergio se organizou para somar todos os esforços possíveis.
Quais os critérios utilizados para o recolhimento dos materiais?
Criamos algumas categorias com focos bem delimitados, Sergio as aprovou e passamos a classificar mais de 25 mil documentos que estavam em seu escritório de trabalho, acumulados desde o começo dos anos 1970. Sergio nem se lembrava de boa parte deles. Foi uma dádiva poder ter iniciado esse processo com o criador daquilo tudo e com o apoio técnico de profissionais das áreas de arquivo e museu. Identificamos também que uma série de obras de arte, pela delicadeza do suporte, deveria estar em museus, por isso iniciamos parcerias muito proveitosas com o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu de Arte do Rio e talvez até o Museu de Arte de São Paulo.
Como se dá o tratamento técnico do acervo?
Ele engloba trabalhos de pesquisa, documentação e conservação. O processo de organização do acervo contemplou uma extensa pesquisa para que as categorias criadas refletissem a forma com que os documentos foram acumulados pelo artista, pois entendemos que esse é um dado essencial no conjunto e também objeto de estudo. Além disso, realizamos um inventário e uma catalogação salvaguardando os metadados dos documentos através de um banco de dados. Quanto à conservação dos materiais, fizemos a adequação básica do ambiente original e acondicionamos os documentos num mobiliário técnico, de forma a preservar e conservar a integridade física de cada um deles. Concomitantemente aos processos de conservação e pesquisa, digitalizamos parte do acervo, pois compreendemos que o meio digital, além de democratizar o acesso, possibilita a conservação dos documentos em outro suporte, evitando sua fragilização decorrente de sucessivas manipulações. O tratamento técnico do acervo é um processo contínuo, já que a pesquisa e a análise documentais, assim como a conservação e a disponibilização ao público, nos trazem sempre de volta mais informações e aprimoram a organização taxonômica e a classificação dos itens.
Qual é a política de difusão do acervo?
Contamos com um banco de dados on-line com mais de 10 mil itens digitalizados – no qual o pesquisador pode acessar gratuitamente o acervo e divulgá-lo em palestras interativas em universidades –, com o nosso site bilíngue, nossas mídias sociais e newsletters. Em breve, queremos que a casa onde Sergio mantinha seu escritório seja restaurada com base no seu projeto original, dos anos 1970 – época em que o artista saiu da empresa que fundara com outros investidores, a mítica Oca, para começar uma carreira de designer autoral. Esse espaço físico dará condições para que os pesquisadores tenham contato direto com toda a documentação. Também manteremos ali o mobiliário, centenas e centenas de peças que Sergio criou – algumas delas, ícones da cultura brasileira, serão mantidas em exibição nas suas primeiras versões ou até mesmo em protótipos. Em 2017, uma parte do acervo já será publicada numa versão fac-símile.
Há uma política estratégica do acervo?
Sim. Para nós, todo o acervo requer uma política estratégica, e poderíamos resumi-la nas seguintes linhas:
1) Estimular o conhecimento e desenvolver a pesquisa sobre os itens presentes no acervo a fim de ampliar o contato, seja pelos meios acadêmico e universitário, seja pela opinião pública e de especialistas das áreas, dando maior relevância pública para os dados e fontes conservados. Estimular as novas gerações a valorizarem a história e a percepção própria criadas no Brasil através do desenho, do design, do urbanismo e da arquitetura, bem como dos pensamentos que orbitam em torno deles. O constante aperfeiçoamento da classificação e catalogação dos itens, com publicações virtuais e impressas das fontes primárias para a qualificação de informações sobre os objetos de design e a história do design no Brasil. Isso se dá através das dinâmicas geradas pelo conselho curatorial do instituto, de forma ativa, e pelo acolhimento de demandas de pesquisadores e instituições para que tenham contato com os itens do acervo. Atualmente, o instituto tem conseguido manter uma equipe de técnicos e pesquisadores estagiários para desenvolver atividades constantes nessa direção em conjunto com o conselho curatorial. Estamos desenhando uma proposta de bolsa de estudos anual para manter um pesquisador residente no convívio com a documentação e a equipe, a fim de estimular também a produção de "ensaios de interpretação" sobre os assuntos com que temos afinidades conceituais e históricas, bem como mapear bibliografias e fontes secundárias que estejam ligadas com as nossas coleções.
2) Garantir a perenidade e a segurança do acervo através de projetos de classificação, conservação e acondicionamento técnico, melhorando progressivamente as condições físicas de guarda (reserva técnica) na consulta dos itens documentais do acervo (atendimento público). Isso vem acontecendo há quatro anos, desde que foram iniciadas algumas melhorias no espaço da casa em que Sergio Rodrigues mantinha seu escritório de criação e projeto, destinando o primeiro andar do imóvel – hoje propriedade dos herdeiros – para a alocação da coleção constituída pelo instituto através da doação de mais de 25 mil documentos feita pelo próprio Sergio Rodrigues e por sua esposa. Atualmente estamos somando esforços com parceiros para o desenvolvimento de projeto técnico e endowment, com captação de recursos, visando à aquisição do próprio imóvel em que o instituto funciona, expandindo a atividade para o conjunto estabelecido em todo o terreno, e a construção de uma unidade de segurança para a estocagem dos documentos em condições ideais e com devido isolamento das outras áreas de atividade (reserva técnica especializada).
3) Trabalhar em rede com outros institutos, acervos e coleções congêneres para desenvolvimento e consolidação de metodologias e de boas práticas, buscando aperfeiçoar e corrigir sistemas e ferramentas usadas; garantir a preservação dos itens de forma racionalizada e estabelecer parcerias para digitalização e conservação dos dados em suporte digital. Atualmente, o instituto tem trabalhado em projetos específicos com órgãos como a Universidade de Brasília, o Ministério das Relações Exteriores, a Casa de Lucio Costa e a BEI Editora para integrar itens das bases de dados e colaborar na troca de documentos, visando principalmente à publicação e ao compartilhamento dos acervos mantidos, sejam referentes ao próprio Sergio Rodrigues, sejam sobre personalidades e criadores que com ele desenvolveram projetos comuns, sejam ainda sobre o "modernismo brasileiro" em design e arquitetura.
O acervo conta com algum apoio financeiro, alguma política de incentivo?
Além de doações individuais e de empresas, tivemos o apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro e do Governo Federal em algumas iniciativas através de editais e da renúncia fiscal. O principal apoiador hoje é o Itaú Cultural, que garantiu, com aportes regulares nos últimos três anos, a nossa capacidade técnica de empreender nas direções essenciais, fundamentalmente para dar tratamento total ao acervo e fazer as primeiras publicações de dados. Atualmente estamos planejando um funcionamento financeiro lastreado por um endowment, até para que o instituto possa sobreviver nas sazonalidades e nos imprevistos, principalmente por não podermos parar os trabalhos quando estamos nos intervalos entre um projeto e outro. Como todos sabem, esse é o principal drama diário das instituições e um dos limites dos projetos incentivados. Acreditamos muito na capacidade que nosso projeto tem de manter seu curso e gerar sustentabilidade, principalmente porque estamos mantendo um custo fixo bem baixo e nossa meta é não crescer demais nos gastos para não gerar contratempos. Fazer as coisas bem e de maneira mais econômica possível é o essencial para quem lida com uma ação de longuíssimo prazo como a nossa.
Qual é a situação atual dos acervos no Brasil?
Temos poucos acervos preservados em condições ideais no Brasil, nossa cultura de garantir a memória com fontes primárias é muito frágil e recente. Soma-se a isso a falta da consciência, por parte da iniciativa privada, de que esse trabalho é estratégico no desenvolvimento social, histórico e econômico do Brasil, de que ele é fundamental para que o país se realize democraticamente como uma nação contemporânea. Mas acreditamos que o nosso pequeno e preciso trabalho com este acervo que está em nossas mãos é o que fará a diferença, pois não há nada de grande e eterno que não surja de uma pequena crença cotidiana naquilo que há de melhor e de mais belo na criação humana, e Sergio nos garantiu com sua vida esse imensurável legado.